3.2.15

Quem hoje ficou a remascar fui eu...

Na adolescência, acostumei-me a observar as cabras que, fosse no pasto ou no curral, não paravam de trincar. Baixavam a cabeça, abocanhavam, por exemplo, uma ramo de oliveira, e ficavam horas a triturá-lo e a ruminar.
Que me lembre, nunca deram pela minha presença. Olímpicas, cumpriam os dias e as noites e ponto final.
(...) 
Algo hoje despertou em mim esta memória antiga, mas quem hoje ficou a remascar fui eu, pois ainda não perdi de todo o decoro...

2.2.15

Eu místico à força...

Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada.
Ser uma coisa é não ser suscetível de interpretação.
Alberto Caeiro

Que bom se eu conseguisse ser apenas uma coisa!
Eu que fui educado como místico, apesar de contrariado, passos os dias a interpretar textos, comportamentos, pessoas... e quase que não dou atenção às coisas...
Melhor seria se ocupasse os dias só a ver, até porque, ao ouvir, não resisto a discernir o Bem do Mal, como se eu pudesse contribuir para melhorar o imundo mundo em que habito...

Doravante, prometo (promessa mística!) que vou apenas descrever... e já é bastante!
(...)
Hoje, estava o papagaio verde e amarelo no seu poleiro e o pardal comia-lhe a ração. Para mim, a ração era do papagaio, mas para o pardal, o cereal era seu...
Para mim, o pardal afrontava o papagaio, mas o papagaio só parecia interessado nas duas garinas que se insultavam diante dele. E como é que eu sei que o papagaio estava interessado?
Vou ter que voltar ao início da descrição: hoje, no meu caminho vi uma pedra e fui obrigado a desviar-me... O que é que aquela pedra fazia no meu caminho? Quem é que a lá pôs?...
Em princípio, a pedra é uma coisa que existe para que eu a veja e para que eu possa desviar-me dela. Mas será só isso? 


1.2.15

O muro e a enxurrada

Há quem construa muros e quem sinta necessidade de os demolir ou, pelo menos, de os deixar ruir. Com ou sem razão, a evidência impõe dois lados para que possamos lastimar que a VIDA more do lado de lá.
Só quando o sono acontece, entramos nesse reino de ternura e de fartura... Infelizmente, o sono rareia e por isso procuramos a passagem seja através do verbo seja através da droga, autorizada ou não, pouco importa!

Ultimamente, o verbo tem nos anunciado uma nova realidade mágica e farta. As praças enchem-se de virtuosos da palavra, prontos, a num ápice, deitar abaixo o muro da tirania. Já não há tempo para o deixar ruir...

O problema é que este verbo é como a droga: não sabe que vencido o dique logo surge a enxurrada. 

31.1.15

Nada há de essencial no que fazemos...

«Ninguém se pode recordar senão do essencial (...) Aliás, nada há de essencial no que fazemos, apesar de todas as aparências.» Soren Kierkegaard, O Banquete.

Com tantas memórias disponíveis, parece possível compor uma grande quantidade de memoriais. E são tantos os memoriais que a História deixou de dar conta deles, preferindo ceder o lugar a outras ciências da memória... Algumas tão enfadonhas que se propõem repor os fundamentos e outras tão mirabolantes que não se cansam de anunciar futuros ora risonhos ora tristonhos...

Em comum, as memórias, mesmo quando na primeira pessoa, não passam de recordação do outro, à medida do interesse presente. E como tal, as leituras, embora aparentem ser plurais, não passam de projeções pessoais...

Um destes dias, confrontado com a pergunta "se valia a pena ler o que nada diz ao leitor" (no caso, a pergunta era de um leitor de 16/17 anos, obrigado a ler Fernando Pessoa), a resposta que me ocorreu foi ambígua, pois, afinal, eu estava ali a explicar que compreender Alberto Caeiro pressupõe que sejamos capazes de percecionar o mundo com os SENTIDOS, a cada momento... e, consequentemente, a memória não passa de um produto mental...

A verdade é que quanto mais vivemos de aparências mais valorizamos a memória.


30.1.15

O Tímido e as Mulheres

Pepetela (ou a editora?) deu ao romance de 2013 um título que convoca mais a leitora do que o leitor. Por que motivo? Preconceito... Quem escreve é o escritor, mas quem lê é a ...

Heitor, ao contrário do herói da fábula grega, sob a máscara de escritor em início de carreira, vê-se enredado numa teia feminina, em que a figura materna, apesar de distante, parece condicionar a sua relação com as mulheres - Tatiana, Marisa e Orquídea.

De qualquer modo, a teia amorosa não passe de um disfarce para o escritor acertar contas com o passado e o presente. Descreve sem qualquer timidez a avidez, a cupidez e a estupidez que governam Luanda... a explosão demográfica e a consequente expansão urbana são o pasto para a desigualdade social e para a corrida ao ouro por um grupo de aventureiros sem escrúpulos...

No entanto, refém do tempo heróico dos guerreiros libertadores, Pepetela tende a desculpabilizar  os ex-militares, atirando para cima daqueles «que nunca fizeram a guerra... os bandidos urbanos» a responsabilidade pela criminalidade e pela corrupção que grassam na nova Angola...

Lá bem para trás, fica o colono «o deus, o carrasco e o patrão, tudo numa pessoa.» 

Em síntese, Pepetela continua igual a si próprio: descreve com detalhe, por vezes sádico, a vitória da mulher sobre o homem e, sobretudo, mostra-se implacável na análise sociológica da vida económica luandense. Por fim, continua como nenhum outro escritor angolano, a enriquecer a língua portuguesa com vocábulos arrancados às línguas locais: maka, mambo, múkua, moringue, kuribotas, calús, ximbeco, zunga, zungueira, kubiko, jindungo, ngombelador, caínga, bumbanço, kumbú, kamba, zongola, bumbar, xingadela, cassule, kalundú, cacussos, malambas, kimbanda, funji, balado, canhangulo, camanguista, quinda, bassulado, muata-mor, chifuta, bafómetro, njango, kubikos, komba...    

29.1.15

Tagarelice

Os tagarelas estão por todo o lado!

Liga-se a rádio, e ficamos a saber que as moscas são as culpadas das riscas das zebras, já não sei se das brancas se das pretas, sem esquecer os novos olhos da ministra das finanças, que brilham sempre que se veem num engarrafamento...
Entra-se numa sala de aula, e, apesar de sonolentos, os alunos tagarelam ininterruptamente. Nas avenidas do poder, os farsantes cavaqueiam a favor e contra, mesmo que desconheçam o problema...
A toda a hora, a televisão está ocupada por um conjunto de comadres e compadres que dissertam sobre tudo e nada.
Nas redes sociais, a cegarrega é global.

Ponto comum: Já ninguém se ouve...

28.1.15

A lição do estóico na calçada de epicuro

Um pouco de sol... por momentos, chego a rejeitá-lo, pois o excesso de nitidez conduz à cegueira.  
O resto é inverno farto de questiúnculas saudadas por medíocres elegantes de si.
(...)
Talvez pudesse torcer a frase para que a noite surja na sua transparência, mas a noite impiedosa seca o pouco de sol que ainda corre em mim.
(...)
Amanhã é outro dia, mas a noite é sem fim!

O MSR dirá: ó professor, isto é tão triste!..., e eu mais não poderei que sorrir... (a lição do estóico na calçada de epicuro)