2.9.15

A máscara

«Dès que nous voulons distinguer ce qui se dissimule sous un visage, dès que nous voulons lire dans un visage, nous prenons tacitement ce visage pour un masque.» Gaston Bachelard, in préface de Phénoménologie du Masque, de Roland Kuhn.

A leitura de um rosto pressupõe tempo - o tempo de admitir que o que observamos é uma máscara, e que, caso persistamos na observação, para além da primeira máscara, se sucedem outras máscaras...

Ao contrário do que acontece com os encenadores (teatro, cinema) com os psicólogos, os psiquiatras, os psicanalistas, os padres, os fotógrafos e os escritores que se atribuem o tempo necessário à exploração da necessidade humana de disfarce e de dissimulação, eu perco-me na floresta dos rostos, deixando-me a braços com a autenticidade fugaz...

Este comportamento revela uma timidez, um medo inicial, que acaba por inviabilizar o conhecimento genuíno da alma humana. E o que é mais extraordinário é que o medo inicial já é a máscara que combate a solidão...
Como tal, a máscara simula a aproximação e exorciza o horror do nada, o que explica que na hora da partida haja especial cuidado com a máscara derradeira... 

1.9.15

Há um mês...

Mar azul, ondulação fraca; um barco a motor vai sulcando o cerúleo das ondas...
Três palmeiras, cercadas por vegetação rasteira que, em dias húmidos, desabrocha em minúsculos caracóis...
Do lado direito, três casas à sombra de um palmar. E mais à direita, um parque de estacionamento cuja utilidade estará limitada aos meses de verão.
Mais perto, meia dúzia de vivendas, cercadas por jardins bem cuidados, onde crescem palmeiras, figueiras, dragoeiros e outras espécies, preguiçosamente, inomináveis...
A espaços, um ou outro balido desperta quatro galinhas que procuram, sem descanso, as minhocas do dia.
Eu estou sentado diante de um esgalho de uvas, e leio, por algum tempo, Le Réveil des Nationalismes, de Gilles Martinet...

Hoje, verifico que há um mês estava à espera que algo mudasse, mas não: tudo continua na mesma, apenas o mar azul está mais longe... 

30.8.15

O rosto e a máscara de Passos Coelho

Os contribuintes não vão pagar diretamente, mas (...) indiretamente... Consta que este enunciado foi proferido pelo primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho. Estes advérbios serão de predicado, com valor modal ou de frase com valor avaliativo?  
Se considerarmos o contexto da venda do Novo Banco (e da inerente responsabilidade do Governo), embora contrariando a norma gramatical, vejo-me obrigado a considerar estes advérbios de frase com valor avaliativo.
Como o que interessa é vender o Novo Banco, e Passos Coelho, que já sabe que os milhões da compra não pagam o valor investido pela Banca nacional, pública ou privada, na salvação do BES, decidiu agora colocar a máscara da honestidade, dizendo aos portugueses que estes terão que pagar, mas não de forma direta...
Que alívio! 
Na verdade, os portugueses, que já pagavam de todas as maneiras, ainda não se tinham apercebido de quão agradável é pagar de forma indireta
O que é que o honestíssimo primeiro-ministro nos reserva para a próxima legislatura? A venda ao desbarato da Caixa Geral de Depósitos?

« Dès que nous voulons distinguer ce qui se dissimule sous un visage, dès que nous voulons lire dans un visage, nous prenons tacitement ce visage pour un masque.»
                                                                                                Gaston Bachelard, Le Droit de Rêver, Le Masque, page 202, PUF

29.8.15

Ler 2666


Na tradução portuguesa, são 1030 páginas de peripécias e de personagens excêntricas, criadas a partir de espaços reais, como a Ciudad Juárez, na fronteira do México com os Estados Unidos, transformada em Santa Teresa: o expoente da exploração capitalista, do assassínio de mulheres, do narcotráfico, do crime em todas as suas facetas, da total perda de identidade…
De certo modo, a cidade das fábricas maquiladoras é a nova face do nazismo, como se, afinal, este tivesse saído da Alemanha para o Novo Mundo, lugar de reposição de todas as taras europeias…
Ler 2666 é também revisitar os infernos da guerra, da degeneração e da decadência intelectual ocidental ao longo do século XX.
Finalmente ler 2666 é ter como guia um narrador que se afasta dos academismos, dos críticos parasitas e sanguessugas, e que vive o mais longe possível dos centros de poder. Segui-lo é, para o leitor, uma verdadeira aventura que lhe consome as energias e que o obriga permanentemente a interrogar-se e a posicionar-se no mapa do mundo, na esperança de compreender por que motivos 2666 é o centro do mundo para Roberto Bolaño.
Talvez, porque o mundo se encaminhe a passos largos para o seu ocaso… 2666 lembra-me as profecias de Vieira e de Nostradamus, centradas no ano de 1666

28.8.15

Ter uma ideia...

Ter uma ideia é um processo difícil! Desde que acordo, realizo várias tarefas e ao fazê-lo ocupo o tempo, sabendo que essa é a melhor forma de não ter qualquer ideia...
No intervalo das tarefas, vou dando conta das ideias dos outros e com tal procedimento esqueço o processo de idealização. Por exemplo, se dou atenção à volta à Espanha, à droga que terá circulado na porta 18 (e em muitas outras portas e postigos!), à notícia de que Pedro Santana Lopes não é candidato a presidente da República, porque não tem dinheiro e teme a língua peregrina do putativo candidato Marcelo, aos sírios que terão sido abandonados num camião numa auto-estrada austríaca às portas da Hungria, à Líbia abandonada pelo Ocidente que lhes matou o ditador para agora aquele território ser a porta do tráfico humano para a Europa... se dou atenção a tudo isto, sem esquecer os familiares, os amigos e os conhecidos, fico sem tempo para ter qualquer ideia...
Claro que posso sempre declarar a minha revolta, o meu desconsolo ou, até, a minha alegria se Nelson Évora faz subir a bandeira nacional em Pequim, mas nada disto significa que tenha tido uma ideia...
E o pior é que quando as tenho, esqueço-as de tal modo que me sinto à deriva.   

27.8.15

Chocados com a morte

A morte é a principal notícia dos dias. Os governantes europeus mostram-se chocados, mas a política que defendem e aplicam é a da morte - fecham as fronteiras, indo ao ponto de as murar; filtram as entradas dos refugiados e, ao mesmo tempo, condenam uma parte significativa da população do sul da Europa à emigração...
Em nome de particularismos de todo o tipo, os governantes europeus nada fazem para combater os inimigos das populações, porque o que lhes interessa é, afinal, o controlo das matérias-primas e manter abertos os corredores que lhes permitam exportar, exportar...
Exportar armas, drogas, medicamentos, metais, máquinas, vestuário e calçado, alimentos...
Os governantes europeus mostram-se chocados, mas a política que defendem e aplicam é a da morte.      

26.8.15

Os títulos são tão óbvios e fraldiqueiros

Por enquanto, ainda dou alguma atenção aos escaparates das livrarias. Só que perco a vontade de entrar: os títulos são tão óbvios e fraldiqueiros!
E quando entro, fico com a sensação de que caio numa das várias dornas que ali foram colocadas para me sufocar. A custo, liberto-me das aduelas, e passo os olhos pelas estantes, fixando-me sempre nos mesmos autores à espera de uma obra-prima... a vista turva-se, incapaz de distinguir a árvore do arbusto, e saio. Respiro fundo e sigo o caminho de regresso aos livros que já li e já esqueci ou, então, que ainda não li.
Saio com uma sensação de vazio e de perda. Mas, de certo modo, saio mais tranquilo porque, de facto, nunca tive o desejo de plagiar ninguém, de ser o que não sou. E como tal, conformo-me com as reflexões de Roberto Bolaño, romance 2666, pág. 901:

«A literatura é uma vasta floresta e as obras-primas são os lagos, as árvores imensas ou estranhíssimas, as eloquentes flores preciosas ou as escondidas grutas, mas uma floresta também é composta por árvores vulgares, por ervas, por charcos, por plantas parasitas, por fungos e por florezinhas. Estava enganado. As obras menores, na realidade, não existem. Quero dizer: o autor de uma obra menor não se chama fulaninho ou beltraninho. Fulaninho e beltraninho existem, disso não há dúvida, e sofrem e trabalham e publicam em jornais e revistas e de vez em quando até publicam um livro que não desmerece o papel em que está impresso, mas esses livros ou esses artigos, se você reparar com atenção, não estão escritos por eles.»