5.5.20

O recolhimento

Voluntariamente, tenho vivido no ano de 1936, seguindo o caminho de Saramago. Não é fácil! Mas liberta-me do discurso sentencioso de quem não sabe recolher-se e, desta vez, não me estou a referir à prosa do nobel…
O confinamento como dever cívico soa-me a astúcia política de quem não quer perder ou  quer ganhar votos…
Creio que o recolhimento é a atitude mais sensata e mais desafiante. E, afinal, o José viveu uma parte da sua vida numa ilha vulcânica!

3.5.20

A cor de hoje

Amanhã, sem sair do lugar, o Tejo fica mais perto.
Embora haja quem pense ser possível voltar atrás - viver no passado - eu fico-me com a cor de hoje.
Agora, que passei a ler com a ajuda de uma lupa, sinto que a repetição está a tornar-se fastidiosa, porque mata a novidade…
O fulgor não se repete, apenas acontece.
Talvez seja por isso que me apetece partir, fazer o caminho sem olhar para trás.

O Tejo só ao longe!

Hoje é um daqueles dias em que descer até ao Tejo é proibido. 
Porquê? Por causa da delimitação de freguesias. Quem mora na Portela está obrigado a não atravessar a linha férrea até à meia noite.
Por ignorância ou por vontade de corrigir o destino, muitos desafiam a ordem instaurada… Censurável, talvez! 

1.5.20

Frutos de maio

Abril foi um mês absurdo! Não fosse a fome das aves, a clausura teria virado pesadelo…
Os gráficos de abril, apesar de animadores, foram desesperantes, porque, no essencial, servem para anunciar uma segunda onda… e, apesar de muitos sonharem com o regresso à praia, não estamos prontos para enfrentar este novo bojador.
Talvez maio nos possa evitar o mergulho na outra metade da laranja!
De qualquer modo, maio regressará! Resta saber se queremos voltar com as fores e os frutos ou se preferimos soçobrar no areal.

29.4.20

Faça como o diabo!


  1.  Sintonize um canal de cada vez.
  2.  Não faça comentários enquanto ouve e vê.
  3.  Se considerar que lhe estão a vender uma ideia ou qualquer outro produto, desligue.
  4.  Antes de procurar novo canal, faça uma pausa de pelo menos 30 minutos: converse com quem estiver por perto - mas não demasiadamente - leia um livro, vá até à janela e observe a linha do horizonte.
  5. Se lhe agradar a ideia, vá anotando as suas sensações.
  6. Não diga a ninguém o que anda a fazer.
  7. Não se queixe publicamente.
  8. Contenha as saudações, as efusões e as libações.
  9. Bloqueie todas as comunicações que não lhe sejam essenciais.
  10. Se sair de casa, proteja todos os orifícios e procure os caminhos e as horas de menor movimento.
  11. Não evite o trabalho. Faça-o em segurança.
  12. Não espere que as autoridades lhe digam o que tem de fazer.
  13.  Se se sentir mal, vá ao hospital. Não fique à espera!
  14. Não se comprometa desnecessariamente.
  15. Faça como o diabo, evite a cruz!

28.4.20

O ator secundário

«... a morte devia ser um gesto simples de retirada, como do palco sai um ator secundário, não chegou a dizer a palavra final, não lhe pertencia, saiu apenas, deixou de ser preciso.» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora, p.360

Dizem que  culpa é de um vírus - o protagonista. De facto, as vítimas deixaram de ter nome. Mais não são que dados estatísticos, nos quais não sabemos se podemos acreditar.
Nas guerras ainda havia o cuidado de elaborar listas de nomes para mais tarde se erigirem memoriais, agora escondem-se os nomes como se fossem leprosos.
Já não se sabe se as vítimas deixaram de ser precisas ou se não estarão a prestar um serviço silencioso aos estados de todo o mundo.
Todos os dias se aborda necessidade de por um travão na crise económica, creio, no entanto que essa crise chegou bem antes do protagonista. 
Convém não esquecer que a maioria das vítimas já era apontada como causa da crise. A peste grisalha!

26.4.20

Talvez possamos reencontrar a alma

Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9).
«Todas as coisas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E, sendo que não há no mundo coisa tão grande por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Séneca, que, por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para connosco mais vil que nós mesmos. - Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois, se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale, a vossa alma, que vale mais que o mundo todo, a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque haveis de queimar e porque há de arder eternamente.» Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (excerto), Padre António Vieira

Desconheço o motivo que levou José Saramago a escolher como leitura de Ricardo Reis o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. Suspeito, no entanto, que, para além do calendário de 1936, terá sido a suposta educação jesuítica do heterónimo... 
De qualquer modo, nem Ricardo Reis conseguiu ler mais do que 10 páginas, nem Saramago se deu ao trabalho de indicar o autor do trecho por si escolhido «Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é a vossa própria alma» O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora, pág.260
Não consta que Ricardo Reis tenha tido tempo de visitar o Maranhão, nem que Saramago se tenha perdido no Sermão, a leitura abre-nos, porém, a porta para que, em tempo de quarentena, possamos procurar a alma lá bem no fundo do sertão... para que o gentio Séneca deixe de ter razão.