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15.6.15

A ataraxia na poesia de Ricardo Reis é uma questão mal fundamentada

Definição:
«Constituindo (a ataraxia ) um estado anímico, exprime um ideal de sabedoria, um fim ou telos a atingir pelo filósofo (...) É concebida como uma ultrapassagem racional da demasiada humana vulnerabilidade e sujeição à fortuna e aos acidentes, sejam estes de origem interna, as paixões, sejam provenientes do exterior, como as doenças, a pobreza, as desgraças, o mal físico, ou o desaparecimento de entes queridos.» Rui Bertrand Romão, in Dicionário de Filosofia Moral e Política.

O conceito de ataraxia é fundamental para a compreensão da filosofia de vida de Fernando Pessoa / Ricardo Reis:

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indif'rença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Ricardo Reis, 1/6/1916

(...)

Apesar do que é habitual afirmar-se sobre a indiferença de Ricardo Reis em relação aos acontecimentos exteriores, creio que este heterónimo é mais a expressão do desconforto de Pessoa perante o sacrifício da vida humana (8642 homens) em guerras que nada acrescentam à vida do que uma posição de alheamento da realidade envolvente.
Este poema foi escrito precisamente quando terminou a Batalha da Jutlândia:

Segundo os historiadores, trata-se da mais importante batalha naval da I Guerra Mundial. Ocorreu no dia 31 de maio de 1916, nas águas da península da Jutlândia (Dinamarca), e opôs a frota britânica comandada por Sir John Jellicoe e a frota de Alto Mar alemã do almirante Reinhard Scheer. Tal como outros combates desta guerra, a batalha teve pelo menos duas fases e viria a terminar com a fuga da frota germânica. A dureza do combate fez-se sentir nas baixas de cada lado. Nesse combate os ingleses perderam 3 cruzadores, 8 contratorpedeiros e 6097 homens contra 1 couraçado, 1 cruzador pesado, 4 cruzadores, 5 contratorpedeiros e 2545 homens por parte dos alemães. Contudo, apesar de, aparentemente, as perdas britânicas terem sido superiores às germânicas, depois deste confronto os ingleses tornaram-se senhores dos mares controlando toda a navegação. A tal ponto que, até ao final da guerra, a frota alemã de superfície teve de permanecer imobilizada nas suas bases. (Infopédia)

14.6.15

E toda aquela infância / Que não tive me vem...

«Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar ,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.»

Fernando Pessoa

Ontem, referi que não encontrava grandes motivos para que o Poeta, qual náufrago do presente, se recolhesse no passado. Hoje, retomo a questão para reforçar a ideia de que, para Pessoa, só o presente (criativo) lhe podia trazer plenitude.
O passado é "enigma" e o futuro é "visão"! Nenhum destes tempos lhe pode devolver a infância que não teve ou antecipar o que o coração lhe pode dar - isto é, o alimento de que a razão necessita para poder levar a cabo a sua criação.
(...)
O passado é "enigma" e o futuro é "visão"!
Entretanto é bom não esquecer que em MENSAGEM, o trabalho do vate ´parece querer provar o contrário. Através da mitificação dos heróis, o Poeta aponta a solução para o futuro. Uma solução messiânica. 

13.6.15

As crianças de Fernando Pessoa

Se Pessoa não tivesse sido forçado a abandonar a infância, estaria hoje a celebrar o centésimo vigésimo sétimo aniversário. A hipótese é atrativa, mas absurda, pois o tempo teria deixado de ser mensurável.
Ele bem gostaria que tal tivesse acontecido e por isso fez da vida o estaleiro da arte, o único lugar em que as crianças podem brincar eternamente.
Embora, ao longo dos anos, tenha procurado rumar contra os estereótipos que poluem a "leitura" de Pessoa, a verdade é que a Madalena acaba de me dar a oportunidade de insistir no tópico de que a poesia de Pessoa é anti-romântica, sem ser necessário regressar à "autopsicografia"...
As crianças de Pessoa vivem todas libertas da duração, como se se movessem numa extensão, sem princípio nem fim... Basta pensar no menino Jesus de Alberto Caeiro!
E já agora acrescento que a infância de Pessoa não esteve livre de tristezas e de escolhos.

(...)

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
(...)
Álvaro de Campos

As crianças vivem eternamente!
A infância,em si, é eterna, porque não tem consciência da passagem do tempo (ou da duração). O argumento da nostalgia da infância é arriscado, porque o Poeta não se está a referir à Sua infância, mas, sim, às crianças «que brincam às sacadas altas». 
Para Pessoa, a arte é um estado lúdico absoluto e não um espaço confessional, romântico.

9.6.15

Quantas vezes a memória

«Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente,
Nos conta uma grande história,
Em que ninguém está presente.»
Fernando Pessoa

A memória destes dias é a de um ser verdadeiramente aborrecido que memoriza enormes quantidades de informação para poder realizar umas tantas provas de exame, cujos resultados o deixarão mais perto do insucesso na vida...
Talvez ainda não se possa afirmar que se anda a fingir que se é gente ou que desta história não sobrará ninguém para a contar, mas pela incapacidade de interpretar, pela dificuldade de ordenar e de compor, tudo a leva pensar que o mundo, por estes dias, está virado do avesso. 

Provavelmente, nada disto é verdade, e mais não é do que o cansaço de quem passou 90 minutos numa repartição de finanças às voltas com um anexo G... Para quê contar a história, se ninguém está presente?

2.6.15

O livro único

«Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

É hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.»

Fernando Pessoa, 2.10.1933 

Em frente de uma estreita tira de papel, o Poeta olha uma vez mais as barcaças que deixam o Tejo e, cansado da imagem que de si o espelho reflete, volta ao único tempo que o não pode defraudar - a infância. E é ela que solta as velas por colorir...Por ela, pode mentir (fingir) que as grades da prisão, onde sempre esteve encarcerado, se rompem. Por ela, pode mentir o momento em que deixou de olhar para o espelho e para Tejo... e sorrir. Não, da alheia cumplicidade da criança que outrora foi, mas da suavidade que escorre das palavras que fluem de forma natural para a vida daquele dia de plenitude.  

De nada serve insistir que o Poeta está triste ou está contente e que o canto é de lamento ou de regozijo. Seguir tal caminho é nada entender do ofício poético.


30.11.14

Como uma abelha

«Nascemos sem saber fallar e morremos sem ter sabido dizer. Passa-se nossa vida entre o silencio de quem está calado e o silencio de quem não foi entendido, como uma abelha em torno de onde não ha flores, paira incognito um inutil destino.» Pessoa Inédito, No Jardim de Epitecto

Lembro agora que Fernando Pessoa nos deixou a 30 de novembro de 1935. O Tejo continua o mesmo do amanhecer e do entardecer do Livro das Horas. Embora o Poeta tenha dito que do Tejo se vai para o mundo, a verdade é que o Tejo no-lo devolveu inteiro para que nele pudéssemos descansar nas boas e nas más horas...
Com ou sem flores, continuamos à espera que o gládio se ilumine e nos faça descortinar a praia da Verdade. De tempos a tempos, o sino tange, e nós apressamos os passos inúteis...
Queremos falar, mas não sabemos o que dizer. Esvoaçamos apenas!

Lembro agora o tempo em que, juntos, encetámos um caminho sem lhe conhecer o rumo. Deu os frutos esperados da «besta sadia». Já decorreram 40 anos em que fomos falando mas, na verdade, ainda não sabemos o que dizer... e provavelmente nunca saberemos. A vida não passa de um INTERVALO!

29.4.14

O coração de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa trata o coração como um comboio de corda que vai entretendo a razão. A ideia seduz o racionalista que aposta na técnica (na arte) como expressão de uma individualidade singular ou, no melhor dos casos, na desmultiplicação das peças que devidamente agregadas procuram, em vão, reconstruir o puzzle humano.
Para trás, o Poeta deixa um coração estilhaçado e desnorteado. Um coração vítima da razão que acusa de lhe não garantir a imortalidade. Um coração efémero, humano! 

É esta noção de coração que transforma a memória num artifício literário. A infância, o cais, a música, a nora, o gato, o quintal, o teatro, a loucura, a palmeira, Lisboa são lugares revisitados sem vida, sem renovação. Em Pessoa, há memória mas não há recordação, no sentido em que recordar significa fazer voltar ao coração.
A razão não chega  para acordar nem para concordar.
O Português é a língua do coração (cor, cordis) e não da razão. Só podemos acordar, concordar e recordar com o coração cuja pulsão é fonte de vida.

25.3.14

Pessoa parou no Espírito...

Perante o problema da opção sexual de Fernando Pessoa, custa-me que haja um problema por resolver, sobretudo, nos dias que correm... Nem creio que essa opção pudesse ser feita. Primeiro: faltou-lhe a amizade de Mário Sá-Carneiro. Segundo:  Pessoa parou no Espírito.

De qualquer modo, questionado, decidi consultar "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação" e a páginas 27 e 28 encontro a reposta: 
a) «Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina
b) «A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem (...) são de mulher. As minhas faculdades de relação - a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso - são de homem
c) « Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual frustre. Pára no espírito.»
d) « Sempre me inquietou (...) que essa disposição de temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo.»
e) « Não digo que praticasse a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar.»