29.8.13

O uso corriqueiro da linguagem

«A linguagem aprende-se melhor, não através dos seus usos corriqueiros, mas através da sua utilização máxima que é a literatura.» Roman Jakobson, Poesia da gramática, gramática da poesia.
 
A democratização dos discursos tem vindo a empobrecer o raciocínio, porque, sendo nós seres de linguagem, em vez da leitura literária, preferimos a gíria e o calão, tão comuns no quotidiano, no cinema e nas redes sociais.
Um destes dias, fui ver esse sucesso de bilheteira que dá por nome " A Gaiola Dourada" e fiquei esclarecido. Um conjunto de atores, de algum gabarito, dá expressão aos estereótipos que nos inscrevem na Europa das migrações (e no mundo!) e, sobretudo, a uma linguagem popularucha que faz sorrir gratuitamente. (Paguei bilhete para ver a boçalidade da minha própria família!)
É certamente por isso que a TROIKA encontra, entre nós, quem a acompanhe na necessidade de baixar os salários, desclassificar os jovens, destruir a classe média e eliminar os idosos.
Com a morte da literatura, vamos deixando de ser capazes de enfrentar as forças que, no essencial, procuram apoderar-se de um território, de preferência, liberto dos seus habitantes, da sua língua, da sua história e da sua cultura.
 
(Tenho de confessar que hoje me arrependo de ter abdicado de ensinar Literatura. Mas, prometo aos meus alunos de Português que irei ser implacável na perseguição dos «usos corriqueiros».)
 

28.8.13

Procuro a notícia

Procuro a notícia, mas ela indispõe-me: um governo fornece números errados para esconder despesas inconfessáveis ou para legitimar soluções contra a dignidade da pessoa; uma instituição internacional não verifica os dados que lhe são apresentados por um governo indigente; um primeiro-ministro proclama que os bombeiros têm à sua disposição todos os meios necessários para combater os incêndios, apesar de só em agosto já terem morrido quatro operacionais; os fogos são provocados por alcoólicos, desempregados e maridos enganados (curiosamente, não há mulheres enganadas!) e agravados pela orografia e pelos ventos; a comunidade internacional prepara-se para atacar a Síria, deixando  o regime no poder... quais serão os alvos, afinal? Jesus beijoqueiro acaba de resolver os problemas que lhe minavam o rebanho, qual Judas!
Esta minha indisposição não faz, no entanto, qualquer sentido e dá-me acabo do coração, embora neste aspeto haja outros fautores que, neste contexto, nem vale a pena revelar...
Por maior que seja a enumeração de notícias, não me sinto mais esclarecido, isto é, não me sinto mais capacitado para ajudar a explicar os comportamentos subjacentes, porque, como dizia o bem documentado e sensato Eduardo Prado Coelho:
«O conhecimento não se reduz à informação; o pensamento não se reduz ao conhecimento; pensar não se reduz a comunicar (...) a verdadeira comunicação e o pensamento autêntico não são a regra, mas a excepção.» Eduardo Prado Coelho, Crónicas no Fio do Horizonte, pp.169-170, edições Asa, 2004.
Chegado a este momento do raciocínio, tudo pode parecer simples: há pouco a esperar de quem nos governa ou de quem nos informa.
O problema são as vítimas! Para os Governos e para a Sociedade de Informação, há sempre alguém que pode ser eliminado e que rapidamente será esquecido. 
 

27.8.13

A indigência é pobreza extrema

« -Temos um produto em que ninguém nos bate: a preguiça.» Conto original de Fernando Campos, O Sonho, in Os Lusíadas, de Luís de Camões, Canto IV, Edição Expresso 2003
 
O hábito de desvalorizar a ação do português leva a que uns tantos iluminados classifiquem os restantes como indigentes. Ora a indigência é, na maioria dos casos, expressão de pobreza extrema. Sabemos, também, que o estereótipo de povo preguiçoso se nos colou à pele ao longo dos séculos, creio que para pôr em evidência a superioridade, o mérito, dos tais iluminados (os heróis lusos).
Nenhum país parece produzir tantos heróis, tantos homens de mérito, como Portugal. Infelizmente, este esplendor gera uma enorme clivagem entre a minoria de heróis e a maioria de preguiçosos, ora considerados indigentes.
Em política, houve (e há) quem defenda que ao estado social não compete apoiar os indigentes, mas estes políticos, que se creem superiores, não sabem que a indigência é a expressão da pobreza extrema a que condenaram uma boa parte da população, pois diariamente lhe retiram a dignidade.
 
O que é preciso entender é que o povo não é preguiçoso! A preguiça, como muito bem mostrou Eça de Queirós, embora sob a capa da ociosidade, é uma caraterística da classe dirigente que, ao não se dar ao trabalho de olhar para as vítimas que vai produzindo, gera a indigência. Esta é efeito e não uma causa, a não ser que passemos a falar de políticos indigentes...

26.8.13

Indícios de incompetência da Segurança Social

Uma senhora, a caminho dos 91 anos, recebeu a seguinte carta da Segurança Social: «Informa-se V. Exª. que é intenção do Centro Nacional de Pensões proceder à suspensão do pagamento da sua pensão, a partir de 2013-11-01, por existirem indícios da perda do direito à prestação que mensalmente que lhe tem sido paga. A manutenção do pagamento da sua pensão está dependente da apresentação a estes serviços de prova de vida..(Documento assinado pela Diretora da Segurança Social do CNP).
 
Lida a carta várias vezes, só me vem à cabeça que a Segurança Social detém indícios de que a senhora terá falecido. Então, escreveu-lhe para quê? E qual será a fonte de tais indícios?
Bom seria que a SS tivesse confirmado a suspeita de falecimento, em vez de desencadear um processo que obriga o visado a deslocar-se à sua Junta de Freguesia, já que as alternativas apresentadas para fazer a referida prova de vida podem ter um custo de 161 € e alguns cêntimos - por exemplo, um atestado notarial, com visita incluída ao pensionista...
Perante a ameaça, e excluídas a hipóteses de a vida da dita senhora ser atestada pelos filhos que com ela coabitam ou pela filha e pelo genro que residem na freguesia vizinha, ou pela via notarial, lá fomos, como o caracol, à Junta Freguesia, onde a senhora foi bem atendida, tendo, no entanto, de saber em que mês e ano chegara ao lugar onde reside...
Uma atitude inclassificável com uma cidadã cujo BI regista um nº situado entre o 650 e o 700. Será que a metodologia deste serviço é suspeitar que todos os portadores de BI até ao nº 1000 já faleceram»?
 
 

25.8.13

Sobre a Ericeira

A Ericeira nunca chegou a ser para mim um destino turístico. Tal não significa que não lhe tenha percorrido as ruas e os pontos de interesse ocasional, sobretudo, Santa Marta, quando as crianças se deixavam levar. Na verdade, a Ericeira começou por ser um hotel e uma piscina... Depois, a Ericeira passou a ser um lugar - parque de campismo -, onde nos instalávamos, primeiro numa tenda, depois numa roulotte e, nos últimos anos, numa autocaravana. De comum, o vento, as rolas, os pinheiros, a caruma, a água fria, os nevoeiros de julho e de agosto, o sol de setembro e de outubro...
O clima é pouco simpático, sobretudo, no verão! Mas, não sei porquê, este é o lugar onde sempre voltamos, como se, nas palavras de Diderot, estivesse escrito lá n o Alto...
Parece, no entanto, que o ciclo está a chegar ao fim. Não é que o lugar, apesar da perda das falésias e da areia, tenha perdido o encanto, mas o tempo, o nosso tempo, não se compadece de nós...
Chegou a hora de dar mais importância ao tempo, de fruir com menos encargos e, sobretudo, com maior qualidade. Claro que a responsabilidade não é só do Tempo, há por aí muitos responsáveis que continuam impunes...Neste como em todos os outros lugares, porque quem faz o lugar somos nós!
/MCG
 
 

24.8.13

A Ericeira já foi mar das rascas

Ciberdúvidas: O verbo desenrascar vem «de des- + enrascar»; enrascar deriva «de en- + rasca + -ar»; e rasca é «deriv[ação] regr[essiva] de rascar». Finalmente, rascar vem «do lat[im] vulg[ar] rasicāre, de rasu-, part[icípio] pass[ado] de radĕre, "raspar"».
Apesar da elaborada explicação, parece-me que, em terra de navegadores e pescadores, será mais apropriado pensar que tal tipo de embarcação - a rasca - não seria assim tão segura, sobretudo quando se aventurava na rota do Brasil.
Um pouco de memória e perceberíamos que muitas rascas não terão chegado a bom porto! Os marinheiros embarcados (enrascados) que tinham a sorte de sobreviver não deixariam de deitar culpas à rasca pela morte dos companheiros!
Afinal, o problema era o mesmo de sempre: a segurança era frequentemente descurada, pois a ganância era lei.
Enrascados desde o berço, tudo serve como desenrascanço desde que a pimenta, o ouro ou o euro caiam nos bolsos...
E já nem vale a pena referir a origem do termo gajeiro (e seu derivado - gajo) que vigiava no cesto da gávea.

23.8.13

Um dia na Ericeira

Ruidosa ou veladamente, o homem mata. Tira a vida um pouco por toda a parte e fá-lo com recurso a todas as ferramentas –  das mãos aos robots, da pedra ao ferro, do fogo ao gás, da  água ao veneno, à droga, ao álcool, ao roubo, à insídia… As formas de matar multiplicam-se dia a dia! Na esfera privada e na esfera pública...
Por seu turno, silenciosamente, a Natureza gera vida coral, mineral, vegetal ou outra, mas fá-lo, indiferente à nossa presença ou ausência, regendo-se por uma norma que nos escapa ou que preferimos ignorar.
No meio, há sempre um gato na espectativa de derribar três ou quatro rolas e estas, argutas, vão saltitando de galho em galho à espera de o cansar.
Para além do pinhal, as águas oceânicas da Ericeira vão engolindo a areia em que, tempos atrás, desfizeram as arribas e, agora, invadem a terra que o homem tão orgulhosamente lhes conquistara…
(...)
Horas passadas, chega o vento atlântico que arrefece o dia e sacode a poeira da terra, deixando enrodilhados, pessoas e objetos.
E ao longe nem uma rasca! E nos intervalos, Crónicas no Fio do Horizonte, de Eduardo Prado Coelho, em tempos lidas na espuma dos jornais... O Eduardo que durante 30 anos se encontrou nas águas de S. Martinho do Porto, mas que, já no fim, citando Joaquim Manuel Magalhães, acusava o «país assassino» de ter destruído aquele, outrora, belíssimo lugar.
(...) Agora, o vento serenou. Apenas os cães dão conta de si, embalando-nos numa acesa disputa.