27.4.13

O vento frio





O vento frio pôs cobro à aventura em  Escaroupim. Dias antes, explicara que a relação sinestésica despertada pelo vento era, primeiramente, táctil, e só depois, por exemplo, auditiva: «eu escutava (…) os relinchos vítreos do vento…» V.F., Manhã Submersa

Desta vez, não foi necessário soltar os cavalos; o balanço dos pinheiros foi um indicador suficiente para afugentar os mais friorentos.

De qualquer modo, ainda fui a tempo de revisitar a aldeia e, sobretudo, de espreitar a Ilha das Garças. Aos milhares, esvoaçavam para quem as quisesse ver. Infelizmente, as fotos não dão conta da realidade!

(O fotógrafo não chega a ser amador, e o equipamento deixa muito a desejar!)

26.4.13

Ali perto, os jornaleiros



Ali perto do Tejo, uma dezena de cortiços! As abelhas pressurosas contrastam com 4 trabalhadores florestais que, encostados à furgoneta, esperam pela hora de almoço.
Não esperem que eu coloque aqui uma foto desses jornaleiros, pois não quero denunciá-los à entidade patronal. Pareceu-me até que a imobilidade das 11h30  resultava de se terem de tal modo aplicado que o combustível que lhes alimentava as ferramentas de trabalho se esgotara.
 
 

25.4.13

Numa hora…





Uma hora de caminhada. Duas furgonetas em sentido contrário. Numa delas, um casal e, certamente, uma história. Uma história deles que fica por contar por ser só deles. Um motociclista lento dos atalhos e um ciclista que saúda, apressado…

Eu, a pé, desperto para a novidade que, afinal, é apenas mudança cíclica ou sinal de morte prematura. As flores de abril cumprem a função de nutrir as abelhas… e as formigas de abril, indiferentes aos pés que as podem calcar, transportam o pão para galerias que só a elas dizem respeito…

E  eu que sei que abril divide, caminho para o rio oculto até que o caudal barrento começa a espreitar por entre um arvoredo sequioso e impenitente…

Na outra margem, um trator cumpre a função de preparar o terreno para nova colheita, e as aves, intermitentemente, transportam-me para a foz…

24.4.13

Hoje, na Biblioteca central

Em 24 de fevereiro de 2010, no Auditório Camões, Vasco Graça Moura convidou-nos a  ouvir, memorizar e recitar os versos do poeta David Mourão-Ferreira,  porque em cada verso escorre o agora, nas suas dimensões de passado, presente e futuro… E esse é o território da poesia, do ser… e sempre que ela acontece, o paraíso ganha corpo.
Hoje, 24 de abril de 2013, na Biblioteca central, Vasco Graça Moura, num esforço admirável, surge para entregar a cada um dos alunos o livrinho que reúne "O olhar dos Jovens sobre o Amor de Perdição - As Cartas de Perdição". E mais uma vez, o homem de cultura deu conta da necessidade de envolver os jovens na criação a partir da leitura dos «clássicos», incentivando-os a efabular sem constrangimentos, pois só o tempo dirá se também eles, um dia, poderão engrossar a galeria dos clássicos.
Para mim, no entanto, mais importante do que disponibilizar o Centro Cultural de Belém para apoiar e editar novos projetos de leitura e de escrita, foi a oferta à BECRE da Obra Completa de Ruy Belo, foi o apontar do caminho...
Em tempo de parcos recursos, a leitura individual e partilhada pode muito bem ser o caminho!
Nesse sentido, só posso aplaudir as iniciativas do CLUBE LER PARA VIVER.
 
( Os meus agradecimentos aos 22 alunos, aos professores e a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que a exposição CARTAS DE PERDIÇÃO fosse possível.)
 
E já agora um outro caminho possível:
 
«dizem que vais nascer; que há métodos de
determinar-te o sexo. que a tua mãe deseja
respirar o teu sopro, tua mobilidade,
teu mamar; tirar o teu retrato.
 
para quê prever-te o nome ou preparar
roupas rendadas? ninguém há-de cumprir-te
que te cumpras. e tentarão salvar-te a alma
com água e óleo e sal.»
(...)
Vasco Graça Moura, da vida humana 1
PS. O destaque é meu.
 

23.4.13

Ele mora num campo rubro de papoilas

1913-2013 - Cem anos!
O Estado Novo. Para mim, um quarto longe da luz, a disciplina cega; para ele, a masmorra junto ao mar, a disciplina libertadora; certo dia, saí do quarto escuro, e só encontrei sombras; ele fugiu da masmorra para a terra prometida - eu era apenas uma ovelha tresmalhada; ele era o pastor de um novo rebanho...
( e aqui começa a divergência: eu deixara de estar disponível para integrar qualquer rebanho; ele, ortodoxo, disciplinava; eu, heterodoxo, indisciplinava.)
O cravo desabrochou em Abril, e ele regressou para impor a disciplina dos cravos. E eu, olhava à volta, e só via papoilas!
( E a divergência cresceu: o país das rosas de Isabel e das muralhas fortificadas era então o país dos cravos e das muralhas de aço e das rosas templárias. E eu, olhava à volta, e só via papoilas!)
Hoje, atravesso as mesmas galerias que ele calcou, entro na sala 44 e, de súbito, oiço-o, a ler atentamente Raúl Brandão e não a bíblia marxista-leninista-estalinista. Para mim, ele mora num campo rubro de papoilas!

22.4.13

50.000 alunos já viram Felizmente Há Luar!

Mais de 50.000 alunos assistiram à representação de Felizmente Há Luar! pelo grupo dramático A Barraca. A declaração é de Maria do Céu Guerra que, hoje, se revelou feliz com o comportamento dos alunos. Sala atulhada, telemóveis desligados, quase todos! Silêncio, quase sempre!
 
Resta saber se os mesmos 50.000 alunos leram o texto dramático de Luís Sttau Monteiro, se conhecem minimamente a ação do dramaturgo, e se seguem com alguma atenção o desempenho da "alma" da companhia. À entrada, alguém me perguntou qual era o "assunto". Lá fui dizendo que após as invasões francesas, por cá ficaram os ingleses com a missão de criar um exército português... Sempre os estrangeiros a libertarem-nos de outros estrangeiros e a tirar vantagem do negócio. O Marechal B. repetiu-o bastas vezes... e claro desviei para o general Gomes Freire, mas era tempo de subir a escada apertada até à sala 2...
 
Não sei quantas vezes já estive naquela sala, mas sempre que lá vou sinto-a acanhada e perigosa. O texto de Sttau Monteiro tem sido depurado, diria mitificado, de tal modo que, por vezes, fico com a sensação de que algumas personagens ganharam um ar burlesco, apesar da seriedade, mas também  do tom patético, infantil e quase alienado de Matilde, como se o mundo que a cerca só existisse para lhe salvar o marido.
Quanto à regência, desta vez, evitou as alusões ao Estado Novo e à Troika.
Enfim, só não percebi  (ou evito saber) por que motivo o luar (projetado) passou de amarelo a vermelho. Parece que a lua se transforma em sol, em promessa de derradeira libertação! 
Em termos didáticos, urge que os alunos não se fiquem por aqui, pelo espetáculo. Por vezes, a vida está no texto!
 

21.4.13

Um olhar demorado

A linguagem dos elementos, em Vergílio Ferreira, é, por vezes, aterradora. O VENTO bestializado, qual lobo da montanha, surge luminoso e furtivo, prestes a devorar o rebanho de Deus. Nem a montanha nem o rebanho de Deus são explicitados, mas os termos selecionados para  caracterizar a fome do vento apontam na sua direção.

«O vento árido de fevereiro trazia sempre ao Seminário doenças e mau agoiro. Era um vento esguio e furtivo, de pêlo no ar, rebrilhante e facetado muitas vezes de um sol frio de vidro. Recordo muito bem as suas unhas de arame, a sua presença nítida, escanhoada em azul, pura no esquadriado das arestas. Branco e arguto das geadas, tinha uma astúcia fina, penetrando, por qualquer fresta, nos compridos corredores e salões.»

Por outro lado, a recusa das «palavras cunhadas» fá-lo personificar as DUAS LAMPARINAS. Elas ocupam o espaço habitual das «devotas» ou, no melhor dos casos, dos piedosos pastores do rebanho de Deus. 
 
« Duas lamparinas, aos cantos da camarata, oravam recolhidas, de contas na mão, à anunciação da morte.»
 
Finalmente, o pavor do adolescente cresce no SILÊNCIO, também ele bestializado, talvez morcego, à medida que o VENTO, agora, equídeo, se solta contra as vidraças da camarata.

«Um silêncio ofegante, pesado de suor, inchava ao comprido do salão, subindo pelas colunas até às nervuras do teto. Amedrontado, eu escutava ansiosamente todos os rumores da noite, o arfar da doença à minha volta, os passos nos corredores, os relinchos vítreos do vento..

in Manhã Submersa, 1954

Na verdade, o equídeo mais não é do que o «corcel negro» que vinha buscar o Gaudêncio, a mando daquele Deus, que ele ousara desafiar ao questionar a sua existência, libertando António Lopes da incómoda questão, e deixando-o livre para se entregar à incessante busca do que em si se perdera ao entrar no  seminário - a MULHER.