25.4.19

No 45º ano de abril

No ano passado escrevi:
«No 25 de Abril, continuámos a olhar para trás e, felizes, sentimo-nos superiores aos espectros do Estado Novo...
No intervalo, contentamo-nos com a devassa, sempre invejosos dos sucessos e das malfeitorias dos nossos semelhantes…»

Hoje, verifico que uns foram trabalhar e que outros aproveitaram para celebrar e passear. 
A novidade é que o 25 de Abril já não necessita dos espectros do Estado Novo. A cúria envelheceu de tal modo que o espelho que a reflete se desfaz em cacos, que se pavoneiam pelos palcos que lhes vão oferecendo à custa do erário público…
Interessante seria saber qual é a percentagem dos que trabalham, dos que celebram e dos que passeiam e como é que a atividade deste dia se materializa nas urnas.
Quanto à devassa, à inveja e às malfeitorias, não encontro nenhum indicador de mudança. 



24.4.19

No desconcerto

Cansado. Física e mentalmente.
Passo e palavra desconcertados.
Revê o passado e nota que as vozes de hoje não passam de réplicas de outras vozes, agrestes e acusativas - rejeita o determinismo, mas a evidência insiste em contrariá-lo.
Hesita entre a primeira e a terceira pessoa do singular. O plural desenha-se como arquipélago para onde nunca viajou. Até o género o faz titubear - a hora é de preposição; isto é a 'loja é de cidadão' - dizem que a redução dá votos…
No desconcerto, vislumbra que talvez possa aprender, que 'talvez' é imprescindível, e que ensinar é adiar… porque ao servo apenas lhe é mudado o dono: a herdade continua lá; na herdade já não há ratinho, mas há nepalês… o indígena gasta os dias no jardim autárquico…
E depois, chega a unidade - a grande mentira - nem no início! 

23.4.19

Atordoado

Dizem que o tordo, na época em que as uvas estão maduras, anda quase sempre atordoado.
Esta manhã, olhando aqueles jovens rostos, comecei a pensar que uma boa parte estaria alienada - a consciencialização de que há vida para além do EU tornara-se impossível! Como explicar a 'alienação'? 
De repente, pensei que estariam simplesmente atordoados. Quis acreditar que aqueles jovens eram vítimas de excesso de informação, de notícias falsas… Vítimas? Como os habitantes da Alcaria de Manuel da Fonseca?
Também eu já macerado, sentia-me atordoado. E o meu atordoamento agravou-se ainda mais quando compreendi que não fora informado do falecimento da Isabel Rodrigues… A Isabel que conheci com outros apelidos em tempos distintos - que conheci no ITAU em 1973... A Isabel que se esgotava no seu perfecionismo… e a quem fui dando a mão em tempos difíceis… partiu, para mim, inesperadamente, sem um singelo aceno…

22.4.19

Não vejo a chama...

O medalhão de pescada, apesar de se encontrar no centro da frigideira, não aloura como os que o circundam. Viro-o e o resultado é o mesmo. Não faz sentido… Só depois de observar a posição da chama, percebo que o centro não corresponde ao que eu vejo…
Ainda pensei que a minha labuta tinha um sentido: reduzir o caos. Recordo que, há mais de 40 anos, José Rodrigues Miguéis apostava na «programação do caos»... Ora, a experiência pessoal ensina-me que, na maioria dos casos, a realidade não corresponde nem ao que vejo nem ao que anseio…
Talvez seja por isso que lido mal com as celebrações privadas e públicas, se a distinção ainda faz sentido…
Sinto-me afetado pela desproporção, tantas são as evidências… e por aqueles que, por estes dias, agitam bandeiras de um tempo morto.  

21.4.19

Um dia que fugiu do calendário

Tudo um pouco diferente, sem chuva nem vento, com alguma família mais ou menos azafamada.
Um dia de árdua satisfação, apesar do peso nas pernas e da leve irritação que me assalta as meninges - mesmo agora me vi forçado a destrinçar quem era o Mário Emílio Forte Bigotte Chorão, tudo porque José Régio o menciona na sua correspondência… Começo a pensar que o Régio seria hipocondríaco, versão portuguesa do amado Marcel Proust.
Olho para o que falta, e pressinto que a azáfama ainda não terminou. Os dias de festa são assim: há uns que aproveitam e outros que amargam.
(…) E agora que é tempo de Páscoa, mandou o governo devolver o IRS que cobrou indevidamente…
Ou como escreveu Saramago: «Agora que veio o tempo da Páscoa, o governo mandou distribuir por todo o país o bodo geral, assim reunindo a lembrança católica dos padecimentos e triunfos de Nosso Senhor às satisfações temporárias do estômago protestativo.» O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 306, Porto editora.

20.4.19

Chegada à Portela

Chegada ao aeroporto da Portela, logo perguntou pelo mar - pela cor, pela areia, pela água…
Partimos de imediato para a Ericeira. Chegámos rápido, com a sensação de que a chuva de abril poderá vir a ser insuficiente - apesar do amarelo e do verde, a terra parecia seca, arenosa.
Na Ericeira, muita gente espraiava-se pelas ruas, pelas amuradas e pelas esplanadas… e alguma, deitada nas exíguas línguas de areia, desfrutava o sol e o vento da tarde deste ameno sábado.
(A penumbra esbatera-se!)
Ela desceu ao areal, mergulhou, por momentos, os pés nas águas atlânticas, e regressou em silêncio como se São João Batista acabasse de a libertar de todas as impurezas da Alemanha imperial…

19.4.19

Penumbra

A única palavra-síntese que me dá conta da luz do dia é 'penumbra'. 
Lá fora, o rio-cinza espreguiça-se, incapaz de seguir o seu destino. Preguiçoso, contorna a única língua de terra que avisto, embora a afirmação não seja totalmente verdadeira, pois uma via rápida dá-me conta do fluxo do trânsito que se dirige maioritariamente para Sul… para lá da penumbra…
Nesta sexta-feira, para uns tantos, santa, eu até gosto desta quase sombra, prenúncio de acalmia mesmo se efémera.
E se, afinal, a ressurreição mais não fosse do que a passagem da luz para a sombra? 
Sei que a hipótese é um pouco herética, mas já estou cansado de tanta 'aleluia'...