6.5.06

1961, a preto e branco

A oportunidade de ver, na Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de 1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.
Em 1961, começava a frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr. Oliveira Salazar.
Muito longe dali, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros. Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.
Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início à guerra do Ultramar como resposta ...
Só muito mais tarde, compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária -fora um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.
E também muito mais tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento do Norte...
Em 1961, quando o luto (o negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também, percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...
Mas será que ainda vamos a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!
PS: Este filme não deve ser confundido com o do realizador Scolari!

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