29.4.14

O coração de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa trata o coração como um comboio de corda que vai entretendo a razão. A ideia seduz o racionalista que aposta na técnica (na arte) como expressão de uma individualidade singular ou, no melhor dos casos, na desmultiplicação das peças que devidamente agregadas procuram, em vão, reconstruir o puzzle humano.
Para trás, o Poeta deixa um coração estilhaçado e desnorteado. Um coração vítima da razão que acusa de lhe não garantir a imortalidade. Um coração efémero, humano! 

É esta noção de coração que transforma a memória num artifício literário. A infância, o cais, a música, a nora, o gato, o quintal, o teatro, a loucura, a palmeira, Lisboa são lugares revisitados sem vida, sem renovação. Em Pessoa, há memória mas não há recordação, no sentido em que recordar significa fazer voltar ao coração.
A razão não chega  para acordar nem para concordar.
O Português é a língua do coração (cor, cordis) e não da razão. Só podemos acordar, concordar e recordar com o coração cuja pulsão é fonte de vida.

28.4.14

A Técnica abre as portas ao Absurdo

Enquanto que os magos da política criam uma cortina de fogo,
enquanto que os magos da política fingem prestar homenagem a quem os serviu,

eu interrogo-me sobre o alcance do verso de F.P./ Álvaro de Campos, «Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.»

De todos os heterónimos de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos é a assunção da ideia de que o desenvolvimento tecnológico traz consigo o fim da vida gregária tal como foi construída até ao início do século XX. Por outros palavras, o futurismo (a técnica) combate as estruturas coletivas: a igreja, o estado, a família, a educação,  a moral...
Assim, o técnico, ao dar vida à artificialidade, destrói a natureza como criação divina. Coloca-se no lugar de Deus, e encara a realização individual como arte poética, isto é, como técnica, extensiva a todas realizações, a todas as performances... as fronteiras diluem-se, as narrativas fragmentam-se, e perante um universo escaqueirado a colagem torna-se a arte suprema...
Nos bastidores, o encenador, à medida que as personagens sobem ao palco, toma consciência da inevitabilidade trazida pelo modernismo: a infância, a Lisboa antiga, o Tejo de outrora nada significam. A técnica substitui a saudade pelo nada que é tudo, abrindo as portas ao Absurdo...

27.4.14

Escrever, traduzir e viver para os outros

Vasco Graça Moura morreu este domingo aos 72 anos, vítima de cancro.

(…) “Podes partir. De nada mais preciso / para a minha ilusão do Paraíso.” David Mourão-Ferreira

Homem político, culto, trabalhador, eloquente, afável, disponível, Vasco Graça Moura serviu a república, sem esperar recompensa.
Das opções literárias, não esperava benevolência nem compreensão imediata...
De fortes convicções políticas, sabia que os seres vertebrados odeiam as meias tintas e por isso tinha tantos inimigos e alguns amigos...

Verbete incompleto:
Moura, Vasco Graça (Foz do Douro,1942 - Lisboa, 2014) – Modo Mudando (poesia satírica, 1963)[1];  Semana Inglesa (1966); O Mês de Dezembro (1977) Sonetos de Shakespeare (trad.1977);  A Variação dos Semestres deste Ano (1981); Nó Cego (1982);  A Morte de Ninguém; 50 Poemas de Gottfried Benn[2] (1982) Os Rostos Comunicantes (1984); Quatro Últimas Canções (1987); A Furiosa Paixão pelo Tangível (poesia)[3];  Naufrágio de Sepúlveda (1988); Partida de Sofonisba às Seis e Doze da Manhã (1993); Sonetos Familiares (1994) Nó Cego, o Regresso (1982 /2000[4]); Meu Amor, Era de Noite (2001); Enigma de Zulmira (2002); [5]Lacoonte, Rimas Vária, Andamentos Graves (2005); Poesia 2001/2005 (2006)




[1] - Na perspectiva de João Gaspar Simões, Modo Mudando girava, à maneira de satélite, em torno do orbe lírico do poeta de No Reino da Dinamarca ( Alexandre O’Neill). Por seu lado, Nó Cego aproxima-se de Ostinato Rigore, de Eugénio de Andrade.
[2] - Poeta alemão (1886-1956)
[3] - Maria Lúcia Lepecki, no artigo “Tocar de Ouvido”, publicado no DN de 24 de Janeiro de 1988, expõe os pontos convergência etimológica  entre «tangível» [TAG, de que também descendem ‘toque’ e ‘tacto’] e «dizível» [DEIK, cujo primeiro sentido é rigorosamente mostrar]. Estabelecida esta associação, refere «o primeiro traço pelo qual em VGM o dizível-dito se faz também tangível relaciona-se com uma dinâmica de materialização. Qualquer coisa que dá ao lido o efeito de tocável, dando aos corpos falados o efeito de existência como volume, peso, forma e cor.» (…) A função da imagem  «é trazer no mais concreto sinal do mais abstracto, conferir corpo físico – peso, volume, forma e cor, movimento – ao que de «físico» pouco teria…» E ainda: «ficamos nós entre o ver e o ouvir, duplo investimento sensorial  espaço e experiência intermédios onde mora a pessoa, o ser mais profundo, da poesia de Graça Moura.
[4] - reedição com 15 aguarelas de Mário Botas.
[5] - Ver crítica de Miguel Real, JL de 13 de Novembro de 02: vê duas fases na obra deste autor – a fase estético-realista, em que denuncia os mitos arqueológicos da esquerda portuguesa...

26.4.14

Ler para os outros quando não lhes apetece ler...

«Aqueles dias de horror tinham sido um sismo que num ápice abrira e fechara uma fenda do inferno na superfície clara da sua vida.» Natália Correia, A Madona.

À minha frente, Felizmente Há Luar, de Luís Sttau Monteiro. Será que vou reler esta peça para os outros, uma peça escrita em 1961 e representada pela primeira vez em 1969 e finalmente apresentada em Portugal em 1978? Uma peça que vi representar em 1978! Uma peça que já vi representada, pelo menos, uma dezena de vezes, pela Malaposta, pela Barraca...?
Ler para os outros quando não lhes apetece ler! Ler para os outros, quando haveria tanto a dizer sobre 1961, sobre a Guerra colonial e os movimentos de libertação, sobre a literatura e a emancipação dos povos, sobre o lusotropicalismo e a lusofinia,  sobre Brecht, sobre a PIDE, sobre a censura, sobre Humberto Delgado, sobre a maçonaria, sobre a Igreja Católica, sobre a ocupação estrangeira, sobre a perda de soberania, sobre o despotismo e a liberdade, sobre a traição, sobre Carlos César, o encenador! Ler para os outros quando estes preferem não o fazer?
Já não me apetece ler para os outros porque de mim só querem meia dúzia de frases feitas! Ler cansa-me e dizer ainda mais! Dizer uma qualquer receita para o sucesso imediato...
Em vez de ler, procuro quem leia por mim, e registo:  Traços épico-brechtianos na dramaturgia portuguesa, O Render dos Heróis, de Cardoso Pires, e Felizmente há Luar!, de Sttau Monteiro, por  Márcia Regina Rodrigues.

A cada passo se encontra um académico capaz de me substituir com proveito. Temo, todavia, que o não queiram ler...
Ao contrário do que se apregoa, lê-se cada vez menos, sobretudo, diz-se muito menos. E porquê? Porque já ninguém quer ouvir! A não ser a voz das sereias e dos sátiros! 

Hoje, o que me apetece é interpretar o sentido das palavras daquele ministro que se diz tolerante com os velhos militares e os velhos políticos, que ele respeita pela ação pretérita mas não pelo que dizem. 
Sempre desconfiei que a tolerância era uma forma de cinismo e este aguiar nem tira a máscara.    

25.4.14

Neste abril

As flores podem ser brancas ou vermelhas,
as canções podem ser de nostalgia ou de luta, 
as palavras podem ser ou não ser...

O que não se pode esconder: 
as armas de brincar
e os beijos de perfídia

O que não se pode esconder:
o desespero
o desemprego
a doença
a deseducação
a desertificação
a dívida
o despejo
a emigração
a fome

O que não se pode esconder: tudo o que andamos a esconder há 40 anos...

24.4.14

Hoje, as ratazanas, amanhã, os lobos…

Enquanto caminho, penso no curso do dia e recordo  que, num certo momento, associei a «sombra da azinheira» do Zeca Afonso à azinheira sobre qual «Nossa Senhora apareceu aos pastorinhos», na Serra d’Aire. Lembro a música ensurdecedora que se foi levantando nos pátios e o fascínio dos jovens pela lenda que vai sendo tecida em torno do 25 de abril…

A mesa de montagem tem triturado as imagens e as palavras, criando um cenário fabuloso que, infelizmente, impede o sobressalto democrático imprescindível à mudança de uma classe política incompetente. O dia de amanhã, em vez de ser gasto em cerimónias patéticas, deveria  mostrar a revolta de todas aqueles que, nos últimos anos, têm  vindo a ser condenados à pobreza…

E enquanto caminhava, surgiu diante de mim uma ratazana pachorrenta que me trouxe de volta à crueza dos dias. Subitamente, interroguei-me se ela seria  do campo se da cidade… Revisitei Sá de Miranda:

Agora, por que vos conte / quanto vi, tudo é mudado; / quando me acolhi ao monte, / por meus vizinhos defronte / vi lobos no povoado. / Carta A Seu Irmão Mem de Sá.

Neste 24 de Abril, as ratazanas, não sendo fabulosas, estão cada vez mais vorazes…

23.4.14

Pode ter sido bela, irreverente, mas não deveria ser esquecida...

Pessoas há que quando morrem, logo são esquecidas. É o caso de Natália Correia! Pode ter sido bela, irreverente, ter-se colocado do outro lado da barricada... todavia, hoje, não gostei que tenha sido esquecida... Ao editar Novas Cartas Portugueses Portuguesas, em 1972, mostrou a fibra de que era feita.
Essa edição foi apreendida e destruída, mas nem por isso as autoras que acolhera na Estúdios Cor deixaram de fazer o seu caminho, de subir ao Olimpo.
Nas palavras eloquentes de Maria Teresa Horta, a guerra de libertação autorizada pelo esforço heróico do partido comunista visava arrancar a mulher à condição de escrava do pai, do marido, do estado - tudo figuras masculinas, figuras despóticas milenares. 
Curiosamente, MTH parece ignorar que o PC também se estruturava em torno de figuras masculinas, em regra, despóticas.
Vale a pena relembrar que Natália Correia, cedo, se colocou do lado da MÁTRIA, porque bem sabia que havia caminho a percorrer, tal como, involuntariamente, é reconhecido no "monólogo de uma mulher chamada Maria com sua patroa", monólogo esse escrito por uma das três Marias:

«Muito obrigado isto passa, não é preciso chamar o médico, minha senhora, isto passa, até já estou habituada, são uns ataques que me dão, fico assim sem conhecimento, sem alentos e depois torno a mim como boa, pode estar certa, não se aflija e desculpe, não quis assustá-la minha senhora, ora logo o raio do ataque me havia de dar aqui em casa..Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, editorial Futura 1974

Não fossem os mitos urbanos, a empregada que pede desculpa à «minha senhora» seria vista como uma mulher explorada por uma "igual" só que de uma classe social privilegiada. Essa trabalhadora, se ganhasse o suficiente para ir ao médico e à botica, seria despedida. 
Trabalhador pobre, homem ou mulher, não pode ficar doente, não tem dinheiro para transporte, e livre-o Deus, outra figura masculina e despótica, de desmaiar de fraqueza no local de trabalho...

(Texto escrito, numa hora amarga, por um homem que detesta a demagogia, o compadrio e o comadrio...)