(...)
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
Este rende munidas fortalezas;
Faz trédores e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz as leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!
Camões, Os Lusíadas, Canto VIII, estâncias 96 a 99
Amanhã, celebra-se o quê? Será que no tempo de Camões ainda havia alguma coisa para enaltecer? De regresso à Guarda, mas não a Jorge de Sena, amanhã ninguém lerá os versos que escolhi e que melhor dão conta do estado em que a nação mergulhou...
Definido o tema - o encantador dinheiro - e o interlocutor, raro, "o juízo curioso", o Poeta constrói anaforicamente o retrato da Pátria: o dinheiro tudo compra, tudo corrompe - realeza, nobreza, clero, ciência, exército, justiça... nem a inocência lhe resiste... nem a hermenêutica foge à manipulação do texto... o próprio povo se deixa endemoninhar...
Camões confessa, mais uma vez, o seu desencanto, sabendo que os juízos curiosos, isentos, são raros porque a isenção só vive naqueles que todos os dias procuram aprender a ler... E quem souber ler estas estâncias reconhecerá que as palavras do Poeta são o retrato da Pátria de hoje e dos homens que amanhã não terão qualquer pejo em citá-lo, mesmo que saibam que o encantador dinheiro lhes comprou a alma.
Autor:MCG
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