Na prova de exame 639 / 2015, surge uma pergunta que me parece mal formulada, pois pressupõe que, de algum modo, o ser pode humanizar a música - «Refira dois traços que contribuam para a humanização da música...»
Na minha interpretação, acontece precisamente o contrário: sem a música, as palavras revelam-se incapazes de libertar o homem do deserto em que habita; as palavras só se libertam se o ritmo interior as ligar.
A missão do ser alienado é, assim, arrancar ao silêncio os acordes capazes de o ligarem aos outros seres e ao cosmos, tarefa que pressupõe a ligação a um tempo primordial ainda não profanado pela palavra do ser...
Só quando a palavra brota do ritmo anterior interior é que a libertação do ser acontece:
A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia
Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra.
A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada
Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa
Por companheira tenho
A voz da guitarra
E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada.
E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Bach, Segóvia, Guitarra, in Geografia, 1967
O que seria do Poeta se prescindisse da guitarra? O que seria de Orfeu se deitasse fora a lira?
Aqui, neste deserto ibérico, o Poeta, à semelhança de outros poetas ibéricos, apenas trocou a lira pela guitarra...
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