31.1.14

Na hora do Meco

Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas ― por natureza meus amigos ― que me defendem, me não têm defendido bem. Um ― um inglês chamado Milton ― fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. Outro ― um alemão chamado Goethe ― deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras. Fernando Pessoa, A Hora do Diabo.

No Meco, com praxes ou sem praxes,
a hora era lunar!
a hora era do sonho!
a hora era da brincadeira!
a hora era da imaginação!
De uma imaginação que não cria... e o Diabo foi Deus na onda que pôs termo à vida...
Mesmo assim preferimos o abraço da noite...

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