De um lado, a superioridade; do outro lado, a inferioridade. De um lado, o Eu; do outro lado, o Outro...
A língua é o espelho da relação estabelecida entre os dois lados. A língua é a imagem. A língua é o palco.
A língua é, também, o risco. Falar é arriscado, quando não se tem plena consciência da matriz cultural da palavra.
E assim sendo, o escritor corre o risco de brincar com as palavras sem se aperceber que, ao fazê-lo, está a brincar com o fogo. Há escritores para quem dar nome às coisas e às pessoas de um e do outro lado é suficiente para assegurar a imparcialidade. E fazem-no com tal profusão, com tal realismo, sem dar conta de que o tempo e a distância matam a referência...
Vem esta nota a propósito de uma pequena e inofensiva expressão que encontrei no romance de Teolinda Gersão, "A Árvore das Palavras": « ... a mulher dele é que cozinhava, frango com piri-piri, que também se chamava à cafreal.» Basta consultar uma lista de restaurantes e (ou) de pratos para encontrar o termo cafreal.
E quem é que se interroga sobre o seu significado, a sua origem? Ora, o termo tem origem em kafr que, originariamente, designava os que não professavam o islamismo. No século XVI, os portugueses aportuguesaram-no como cafre, nomeando os indivíduos atrasados que habitavam o interior de África. No século XVIII, o mesmo vocábulo já se refere aos escravos... Em Angola, por seu turno, encontramos o adjetivo cafrealizado, indicando um branco abjeto, miscigenado... Isto é, tudo que deriva de kafr é expressão de desvalorização do Outro...
Podemos ter muitas razões para gostar do frango à cafreal, mas isso não impede que a designação seja uma forma de inferiorização, não do frango, mas, neste caso de quem inventou a receita... certamente, indiana...
E já que referi "A Árvore das Palavras", aproveito para confessar que me parece que o romance bem poderia ter terminado em: «Um país mal governado. Mal pensado. Mas podia-se fazê-lo explodir, para obrigar a pensar tudo de novo. O Velho estava sentado no seu trono - mas não era verdade que podíamos derrubá-lo?»
E na verdade, o Velho foi derrubado e substituído pelo Novo! Só que 50 anos mais tarde, parece que nada mudou. O risco voltou: de um lado, a raça branca; do outro lado, os novos cafres...
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