O existencialismo na fição de Vergílio Ferreira

O existencialismo na perspetiva de Vergílio Ferreira
Alberto Soares, herói de Aparição, tem como missão comunicar aos outros a sua revelação.
Alguns tópicos
· a única e reiterada questão que estrutura a sua obra: «o sentido da existência pessoal num universo sem sentido.»
· A aparição é descoberta - autodescoberta - do eu como realidade, em sentido primeiro, metafísica…
· O conteúdo próprio da aparição é a consciência, a consciência absoluta da nossa existência como realidade bruta, jato da vida, incontrolável e injustificável, contingência pura e pura necessidade.

  Aparição permite uma leitura:
- Ideológica (rutura com o ideário neorrealista)
- Metafísica (romancista do existencial: a aparição; o alarme do «encontro do eu consigo mesmo")
- Simbólica (romancista de uma espécie de niilismo criador ou de um humanismo trágico: as variações em torno dos temas «música», «pintura» ou das «maneiras de morrer»)

"Todos os jovens camaradas de Vergílio Ferreira tiveram como ele a possibilidade de não se perder, mas poucos possuíam tantos meios para se salvar. Uma sólida e extensa cultura humanística coloca-o muito cedo ao abrigo de soluções verbais simplistas ou simplistamente vividas. Contudo, a mais decisiva das suas defesas foi, por ventura, a experiência contada em Manhã Submersa. É uma das mais comuns aventuras essa do adolescente português a braços com um tipo de educação muito particular. Tal como é contada em Manhã Submersa essa aventura é uma verdadeira experiência da «morte de Deus», pelo menos sob a forma histórica que a vivência religiosa assume na sociedade portuguesa. Tal deceção foi vivida na dupla forma - contemplação do vazio por ela criado em sua alma adolescente e desejo de preencher de novo o lugar do deus morto. Aparentemente, e isso aconteceu a muitos, Vergílio Ferreira ficou à mercê da primeira idolatria. Ela surgiu no plano intelectual, sob a forma de uma ideologia capaz de beber como uma esponja a antiga dor do homem e o mistério da vida. (...) Mas aqueles a que Deus morreu não podem aceitar, com a facilidade dos outros, deuses subalternos, mil vezes mais subalternos.

" Saí do Seminário, como esperava, não sei se por ter ficado mutilado, se por enfim se reconhecer que eu não tinha «vocação». E bruscamente vi-me diante da vastidão de uma vida inteira a conquistar. Era um trabalho enorme para as minhas forças e agora mesmo eu não sei se consegui levá-lo ao fim."

A palavra a Karl R. Popper:
" Tenho afirmado muitas vezes que da amiba a Einstein vai apenas um passo. Ambos trabalham com o método da tentativa e do erro. A amiba tem de odiar o erro, porque morre quando erra. Mas Einstein sabe que só podemos aprender com os nossos erros e não se poupa a esforços para fazer novas tentativas de forma a detetar novos erros e eliminá-los das nossas teorias. O passo que a amiba não consegue dar, mas que Einstein pode, é atingir uma atitude crítica, autocrítica, uma abordagem crítica. É a maior de todas as virtudes que a invenção da linguagem humana coloca ao nosso alcance."

A "aparição" do ser / da pessoa:
Lembro-me de contar algures a aparição desta certeza na vulgar experiência de nos vermos a um espelho: diante de nós está uma pessoa que nos fita, que é um ser vivo, totalizado, que vê, que pensa, que nos olha, nos olha, nos causa pânico, nos gela de pavor até uma obscuridade de raízes. Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro, 1958

(...)E minha mãe mandou-me ao quarto procurar a manta e a almofada dos nossos sonos nos campos. A porta estava aberta, a lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde minha mãe a arrumava. Subitamente, porém, quando ia a erguer-me, eu vi que estava alguém mais no quarto. (...)
Subitamente, meu pai teve uma ideia:
- Onde é que viste o ladrão?
- Ali.
- Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio refletido no grande espelho do guarda-fato.
(...) Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio onde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.
Aparição, 1959 Cap. VI, p. 63-64.

(...) Para o homem vulgar (para cada um de nós também, quase sempre), a vida resolve-se numa presença em, num ser o mundo que existe como por si mesmo, sem pensar-se que é através de nós, sem um regresso à vertigem de estarmos sendo nós, daquilo que somos. E porque a vida é assim, se resolve assim nessa contrafação de eternidade, nessa fácil imitação de uma presença divina, nesse inconsciente e ilusório modo de ser-se quotidianamente um deus - por isso, a morte não tem ainda senão um significado de vida: uma presença de nós para lá dela, esta presença que nos inventamos agora, enquanto vivos, como memória, nela, da vida, como é em nós memória, agora, tudo aquilo que já perdemos - a infância, a juventude. Mas a morte é algo de mais incrivelmente absurdo, porque é o nada inimaginável, a impensável destruição do absoluto que conhecemos na irredutível e necessária pessoa que somos.
Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro, 1958

O problema... e a rejeição de qualquer solução que não seja existencialista
O que é o existencialismo?

Courant philosophique du XXe siècle qui affirme que l'homme est libre, qu'il n'est pas déterminé. C'est ce qu'il fait, ce qu'il choisit, qui le fait devenir ce qu'il est.

Nessa tarde deixara o carro na garagem para lubrificação. Uma lição de Português levou-me à biblioteca, ao pé do Templo de Diana. Chovia, não muito. Aguardei, todavia, que abrandasse. Mas a pressa incitou-me: não era chuva que me ensopasse. Farto de aguardar no limiar da porta, atiro-me, de gola erguida. Mas ao pé da Sé uma brusca descarga pesada, grossa faz-me refugiar no pórtico. No empedrado do largo, a água embate com extraordinária violência, ergue um vapor como se as pedras fumegassem. De vez em quando abranda, mas logo recrudesce, cerrando uma cortina espessa: como a instabilidade de um homem colérico, cedendo, recomeçando. Hesito longo tempo sem saber que fazer, olhando ao lado as caixas tumulares com inscrições góticas, as siglas de alguns degraus, as fieiras pálidas dos apóstolos, desajeitados no alto das suas colunas. Mas, quando um trovão abala toda a cidade, entro instintivamente na Sé. Um vasto silêncio de cúpulas, de largas superfícies nuas afoga-me em pesadelo. As naves estão desertas e mergulhadas na obscuridade de um peso de chuva batendo nos vitrais, prolongando no seu rumor uma memória de catacumbas, de aturdimento e de refúgio. Sigo com o olhar o avançar solene das arcadas até um limite imaginado de uma distância de alucinação, sinto-me despojado de mim, errando em pasmo pelo espaço das abóbadas. Um súbito clarão ilumina os vitrais; o silêncio da catedral, com um sinal antiquíssimo de aparição de deus bíblico. Aguardo o trovão da velha cólera dos céus, relembrando as flechas do templo, erguidas além das nuvens, no diálogo fraterno e solene grandes poderes cósmicos...
E eis que de repente descubro que não estou só: lá no fundo, num ângulo do cruzeiro, uma breve presença de negro destaca-se à luz trémula que desce da lanterna. Avanço pela nave, olho ao lado um instante: Ana!
- Ana!
Ela volta-se devagar, fita-me sem espanto. Vou para ela, sento-me ao pé, Ana banha-me a face do seu olhar ardente, serena mas com o ar estranho de quem me não reconhecesse ou de quem de me visse à distância de um adeus para nunca mais...
- Ana! Que faz você aqui?
Ela olha-me ainda, sem responder.
- Recolheu-se da chuva? Está à espera de alguém?
- Estou aqui - disse por fim em voz baixa.
E foi como se declarasse que estava ali para sempre. Mas eu o sei hoje, Ana, que era bem para sempre, que os caminhos da tua inquietação vinham afinal dar ali. Está uma tarde de tempestade e eu te vejo, Ana, eu te vejo, submissa, rendida ao peso de uma velha condenação, procurando nos despojos de ti mesma a última flor de humildade que te perfume a solidão. E tenho pena de ti.
Vergílio Ferreira, Aparição, 1959.

Conceitos fundamentais sartrianos

· O por-si - maneira de ser do existente humano, que "brota" do nada
· O ser-em-situação - é um existente no meio de outros existentes... não varia, no entanto, a necessidade para ele ser no mundo, de aí ser no trabalho, de aí ser no meio dos outros e de aí ser mortal.
· A consciência, movimento de transcendência na direcção do mundo e das coisas
· A existência: existir, é estar aí, surgir no mundo e aí se forjar - a existência precede a essência: o homem existe primeiro no universo onde imprime a sua marca e, deste modo, se constrói livremente
· A angústia: sentimento de imprevisibilidade da nossa liberdade
· A liberdade, o poder que a consciência possui de se subtrair ao determinismo
O projecto do homem: a sua consciência atira-se para diante dela própria na direcção do futuro.

Categorias essenciais da existência:
· Existência
· Ser
· Transcendência
· O tempo
· O possível
· A origem
· Situações-limite
· Instante
· A existência - a liberdade, a angústia e o nada

A distinção entre essência e existência corresponde à distinção entre conhecimento intelectual e conhecimento sensível. Os sentidos põem em contacto com os seres particulares e contingentes, únicos que realmente existem, ao passo que a inteligência permite aprender as ideias ou essências, géneros e espécies universais, meras possibilidades de ser, em si mesmas inexistentes. Sabe-se, no entanto, desde Sócrates, que o objecto da ciência é o universal e não o particular, quer dizer a essência e não a existência. Platão tenta resolver essa contradição hipostasiando as ideias, atribuindo-lhes a realidade, no mundo suprassensível ou topos ouranoú (lugar do céu). Poder-se-ia dizer que é em nome da existência que Aristóteles critica a teoria platónica das ideias, sustentando que as ideias, ou essências, não estão fora, mas dentro das próprias coisas, as quais, feitas de matéria e de forma, contem, em si mesmas, o universal e o particular, a essência e a existência.
Em oposição as filosofias que se poderia chamar ‘essencialistas’, as filosofias existencialistas partem do pressuposto de que a existência e anterior a essência, tanto ontológica quanto epistemologicamente, quer dizer tanto em relação ao ser, ou à realidade, quanto em relação ao conhecimento. Na perspectiva do existencialismo, as ideias, ou as essências, não são anteriores às coisas, pois não se acham previamente contidas nem na inteligência de Deus nem na inteligência do homem. As ideias, ou essências, são contemporâneas das coisas, são as próprias coisas consideradas de determinado ponto de vista, em sua universalidade e não em sua particularidade. Síntese do universal e do particular, o indivíduo existente é redutível ao pensamento, ou inteligível, na medida em que contem o universal, a essência humana, por exemplo, nesse homem determinado, e irredutível, enquanto particular, esse homem com características que o distinguem de todos os demais e o tornam único e insubstituível.
A afirmação da anterioridade ou do primado da existência em relação a essência, entendida aqui como existência humana, implica uma série de teses que distinguem o existencialismo das filosofias essencialistas. O primado da liberdade em relação ao ser, subjetividade, em relação a objetividade, o dualismo, o voluntarismo, o ativismo, o personalismo, o antropologismo, seriam algumas das características desse tipo ou modalidade de filosofia. O existencialismo não é nem uma teologia, ou filosofia de Deus, nem uma cosmologia, ou filosofia do mundo, da natureza. O existencialismo é, fundamentalmente, uma antropologia, quer dizer, uma reflexão filosófica sobre o homem, ou melhor, sobre o ser do homem enquanto existente.
Na perspectiva antropológica, surgem os temas ou problemas característicos do pensamento existencial. A finitude, a contingência e a fragilidade da existência humana; a alienação, a solidão e a comunicação, o segredo, o nada, o tédio, a náusea, a angústia e o desespero; a preocupação e o projeto, o engajamento e o risco, são alguns dos temas principais de que se tem ocupado os representantes do existencialismo. Para essa filosofia, a angústia e o desespero, por exemplo, deixam de ser sintomas mórbidos, objetos da psicopatologia, para se tornarem categorias ontológicas que propiciam acesso á essência da condição humana e do próprio ser.
A ideia de existência, como já se observou, não é nova. Com a mesma palavra, ousía , Platão designa a essência e a existência, e a crítica de Aristóteles ao idealismo platônico pressupõe o hilomorfismo, ou teoria do ser entendido como existente, feito de matéria e de forma. Platão, sem dúvida, é idealista, mas é uma experiência existencial, a vida e a morte de Sócrates, que o leva a filosofar.
A existência precede a essência, por Jean-Paul Sartre
"Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamos quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria.
Assim, o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim, o homem individual realiza um certo conceito que está na inteligência divina.
No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus, mas não a ideia de que a essência precede a existência. Tal ideia encontramo-la nós um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim, pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza. (...)
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.
Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. (...)
Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens."
Jean-Paul Sartre
"A existência precede a essência". Eis a frase fundamental do existencialismo. Para melhor compreender o significado dela, é preciso rever o que quer dizer essência. A essência é o que faz com que uma coisa seja o que é, e não outra coisa. Por exemplo, a essência de uma mesa é o ser mesmo da mesa, aquilo que faz com que ela seja mesa e não cadeira. Não importa que seja de madeira, fórmica ou vidro, que seja grande ou pequena; importa que tenha as características que nos permitam usá-la como mesa.
No famoso texto O existencialismo é um humanismo, Sartre usa como exemplo um objeto fabricado qualquer, como um livro ou um corta-papel: neles a essência precede a existência; da mesma forma, se imaginarmos um Deus criador, o identificamos a um artífice superior que cria o homem segundo um modelo, tal qual o artífice fabrica um corta-papel. Daí deriva a noção de que o homem tem uma natureza humana, encontrada igualmente em todos os homens. Portanto, nessa concepção, a essência do homem precederia a existência. Não é essa, no entanto, a posição de Sartre ao afirmar que a existência precede a essência: "Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo".
[1] - Eduardo Lourenço, Mito e obsessão na obra de Vergílio Ferreira, Vence, 13 de Maio de 1977, in O Canto do Signo - Existência e Literatura (1957 - 1993), Editorial Presença, 1994
[2] - Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira - Do alarme ao júbilo, in O Canto do Signo - Existência e Literatura (1957 - 1993), Editorial Presença, 1994
[3] - Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a geração da utopia (1960), in O Canto do Signo - Existência e Literatura (1957 - 1993), Editorial Presença, 1994
[4] - Vergílio Ferreira, Manhã Submersa, 1953.
[5] - A amiba reproduz-se assexuadamente - divide-se formando duas células filhas. Uma amiba é semelhante a um minúsculo saco de gelatina.
[6] - Para uma teoria evolutiva do conhecimento, palestra proferida a 9 de Junho de 1989 na London School of Economics.

 Vergílio Ferreira - Espaço do invisível 2, Existencialismo e literatura, Instituto Superior Técnico, 1964.

                "Acresce ainda que o Existencialismo, no fim de contas, se não explica em variadíssimos dos seus aspectos (por exemplo aqueles que mais acentua em Jaspers), pela razão por que se não explica a alegria ou o amor.

                A angústia = consciência infeliz (tema do jovem Hegel), que é genericamente a consciência das contradições. Porém para Hegel, esta "consciência infeliz" não é senão um estádio passageiro para ir mais além.

                A angústia, a inquietação (e já vos anoto que esta inquietação, este constante progredir é um tema existencial), a angústia, a consciência infeliz pode ser encarada como ponto de passagem, e também pode ser encarada como o que em cada momento da progressão nos atinge e nos dói.

                Se a nossa marcha penosa é feita de contradições, se cada época tem a sua verdade, que é absoluta para essa época, mas relativa para uma verdade final que não há, segue-se que uma das reacções possíveis e – reais – ao seu sistema foi não a do optimismo mas justamente a do pessimismo.

                Kiekegaard faz esta afirmação fundamental: " Um eu não cabe num sistema." Porque não cabe mesmo! Um eu é irredutível, e vede bem como a consciência da própria língua o reconhece, pois que o plural de "eu" não é "eus" como o de "pedra" é "pedras": o plural do "eu" é "nós". Quer dizer: nenhum "eu" pode estar a sentir-se como sendo um "tu". O que se está passando em cada um de nós é não só dificilmente cognoscível pelos outros, como impermutável no que se refere ao sentir.

                Um eu não cabe num sistema significa que, paralelamente, há um mundo individual que escapa a uma sistematização.

                Há pois em nós dois mundos: um que é o das verdades genéricas, das verdades abstractas, das puras ideias – e este, realmente, pode comunicar-se e fixar-se em sistema; outro, que é o das verdades vividas, da intimidade de nós, do inefável – e esse é estritamente pessoal. Eis porque Kierkegaard faz essa afirmação escandalosa de que a verdade é subjectiva.

                A "aparição" da evidência

                A angústia não é medo. O medo concretiza-se: tenho medo disto ou daquilo. A angústia, porém, não pode concretizar-se. Que isto se fixe bem claramente, para que a angústia perante a morte não se identifique com o medo. Medo tem-no o animal. Não angústia. E entre os homens só ignorará a angústia quem for inocente ou imbecil. (...) A angústia é pois um sentir indefinido, mas bem característico que se apodera de nós nas circunstâncias mais diversas.

                Para Kiekegaard, Heidegger, Sartre, Jaspers, Gabriel Marcel e V. Ferreira, o centro de interesses é ainda e sempre próprio homem, o indivíduo concreto, começo e fim dos seus problemas, ainda que admitamos, como temos de admitir, que por ele passam os problemas do mundo, dos outros homens.

                O existencialismo repele a ideia de um Sistema.

                Definindo-se pelo ser-com, pela comunicação ou pela sua impossibilidade, afirmando-se pela cooperação ou pelo combate, determinando esse Outro nos homens que nos rodeiam ou no Outro Absoluto da Transcendência, de qualquer modo o Existencialismo fixa e analisa obstinadamente o problema das relações de cada eu com o eu de outrém como nunca se fizera.

                A pergunta básica - o ponto de partida / o ponto de chegada - Quem sou? / Como sou? - O que está em causa é a estrutura radical e original do ser que somos.

                Assim, pois, uma complexa e vária problemática se nos abre em consequência da análise a que submetemos a estrutura do homem:

§  Que é um "eu"?

§  Qual a constituição da consciência?

§  Que é a liberdade, se ela existe?

§  Que é o tempo?

§  Que é o espaço?

§  Tem o homem alguns valores que o orientem?

§  Em que se fundam esses valores?

§  Que é o seu corpo?

§  Será um puro instrumento ou comparticipa do que nós entendemos como a nossa pessoa?

§  Que é a verdade?

             Sim ou não o homem está irredutivelmente fechado nos seus limites?

Sim ou não pode integrar-se numa dimensão transcendente?

Deus está vivo ou está morto?

 Na literatura existencial praticamente não há cadáveres, mesmo quando há mortos (...), pondo-se quase sempre o problema da morte, precisamente a propósito dos vivos.

 Problema - morte / vida

 A meditação da morte não é pois um fim, mas um meio.

 Um outro problema-tipo do Existencialismo é o da liberdade.

A liberdade para Sartre entra na estrutura da consciência.

É a partir do próprio "eu" que se gera todo o questionar. Um Sartre projectará este "eu" para fora, para a rua, para junto dos homens, desenvolvendo um pouco unilateralmente um princípio de Husserl - a "intencionalidade".

 O outro é o tema de Huis-clos.


Definição de Existencialismo por Vergílio Ferreira

 Corrente de pensamento que, regressada ao existente humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar. 

ou

 O existencialismo é uma corrente de pensamento que reabsorve no próprio "eu" de cada um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou preferentemente da sua profunda vivência.

 Aí se implica portanto que nenhum questionar se estabelece em abstracto, de fora para dentro, mas antes se retoma a partir da nossa dimensão original, ou seja, verdadeiramente, de dentro para fora.

 Sobre o significado útil do existencialismo

 (V.F.) Num tempo em que tudo, desde a Técnica à Política, tende a absorver o homem, se não mesmo a suprimi-lo - é esse um dos significados do "novo romance" -, num tempo em que uma vida nada conta, e em que é quase irresistível perdermo-nos de nós entre as pedras e o ruído, o Existencialismo ergue o seu protesto, afirmando que o homem é pessoalmente, individualmente, um valor; que a sua liberdade (...) é uma riqueza... p. 48

 Sobre a problemática existencialista

 Vai do problema da morte ao da angústia, ao da náusea e do absurdo; desde o problema do "outro" ao problema da liberdade; do problema da transcendência divina ao da pura transcendência.

 Sobre o existencialismo nacional

 (V.F.) Eu jamais me disse existencialista, embora muito deva à temática existencial e pelo Existencialismo tenha manifestado publicamente o maior interesse...Refere como exemplos: Herberto Helder (contos); Almeida Faria; Fernanda Botelho; Fernando Namora ( romance Domingo à Tarde); Bessa-Luís ( o problema da comunicabilidade); Maria Judite de Carvalho e Urbano Tavares Rodrigues ( o problema da comunhão ou da solidão humanas); Rogério de Freitas...Alfredo Margarido ( introdutor do novo romance); Artur Portela...

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