PRESENÇA - Folha de Arte e Crítica
nº 1, Coimbra, 10 de Março de 1927
I - Literatura Viva ( fragmentos) por José Régio:
Em
Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais
virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira
condição duma obra viva é pois ter uma personalidade
e obedecer-lhe.
(
...) Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte
da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção,
criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a
falta de originalidade e a falta de sinceridade.
(...) Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto às condições do tempo e do espaço. (...)
II - Classicismo e Modernismo ( fragmentos) por José Régio (28/03/1927):
(
...) O que importa é que um Artista possua em si próprio, e por si próprio o
descubra, o seu classicismo. Isto é:
A
conjugação harmoniosa, vibrante, de todas as suas faculdades geradoras.
(...)
Chegamos a admitir a compatibilidade do classicismo
e do modernismo. Por modernismo entendo um certo modo de
personalidade actual - mais fácil de classificar do que de definir. Nenhuma das
principais correntes estéticas contemporâneas sintetiza o modernismo, porque é
a personalidade modernista que as engloba todas: Não obstante algumas dessas
correntes se oporem violentamente, de todas participam as mais características
individualidades de hoje. É que por evolução ou reacção, todas se originam no romantismo. É por natural evolução que
o Dadaísmo o leva às últimas
consequências, acabando por negar a própria Arte no exaspero nihilista da sua
estética rudimentar e complexa. É por natural reacção que o Futurismo repudia toda a
sentimentalidade e toda a estesia - caindo afinal no lirismo do Movimento e na
quasi glorificação da animalidade grosseira. É simultaneamente por evolução e
reacção que o Expressionismo aplaude
toda a excentricidade no seu sonho anti-realista, requintando até à obscuridade
e à infantilidade o seu amor do sintético e do geral. Longe de mim o querer
reduzir o Dadaísmo, o Futurismo, o Expressionismo, a esta caricatura a dois traços. Quero apenas
isolar neles os seus pontos de comunicação
romântica. E quero revelar neles o seu germen absolutista e dogmático. É
por este germen que os maiores Artistas modernos se recusam a caber numa escola e aproveitar toda a riqueza da personalidade moderna. O
próprio exagero destas escolas foi
benéfico - porque autorizou, animou e encorajou audácias mais duradouras e
menos estrepitosas. Mas limitar-se a uma destas correntes ( que valem sobretudo como revelação de tendências ) seria para um artista
incorrer no risco de ficar apenas um caso literário. Eis porque o modernismo superior é individualista e clássico -
tomando agora o termo individualista no melhor sentido, e considerando clássica
toda a obra de Arte em que determinado motivo
encontra o seu meio de expressão próprio, em que as características da
inspiração caracterizam a realização. É assim que para ser clássico, um
modernista deve ser inteira e verdadeiramente modernista.
ALTITUDES Já
bati palmas com brio
À confusão do trajecto Que
fez o meu rodopio De
posições no vazio Inserto
no meu projecto... Então
vi que as pernas vivem Giros dijuntos de teias; Que o tonco e braços revivem O
que as pernas lhe motivem ..., A
cabeça dança ideias. Transe
de pobre coitado, Já
sonhei ser bailarino; Já
me adorei disfarçado Nas
posições dum bailado Requintado
e libertino. |
Vi o fim da confusão Na
cauda das posições Dessa
imota posição Que
é ser joguete na mão Das
minhas revelações... O
meu corpo branco e forte Tinha
a vertigem do enlevo ao
defender-se da morte que
adivinhava na sorte Das
posições sem relevo. Depois
... caí do bailado Como
a ilusão da verdade; Sim!
caí desanimado Quando
fui arremessado Pela
minha humanidade. E
os meus passos de forçado São
tudo revoltas ôcas De
oceano encapelado Que
é mordido pelas bocas Dum
sonhador naufragado...
Adolfo Rocha, PRESENÇA nº 19,
fev. março de 1929 |
BALOIÇO Subo
e desço. Entonteço... Um
repelão de falido. Regateio;
pago o preço E
sigo desiludido... Fala
de sala, baixa, fina, Conta
o porteiro à menina Rica
e saltarica Toda
a minha covardia; E
todos sabem hoje que não sou Homem
do céu! Mas sou, o
que eles não sabem, eu. Eu
desci por meus pecados Que
são muitos e pesados. |
Lá, muito alto, no alto Olhei
a curva da volta E
de medo entonteci... Eu
tinha a minha mão dada com Deus Mas,
sem força, despreguei-me Da
mão de Deus e caí... Todos
se firmam, fortes, à cautela! Só
eu! só eu! havia ter aquela Fraqueza, E
desprezar a certeza Incerto,
dependurado!... Mas
... no meu gesto ousado Há
verdade e beleza... Agora
este orgulho alerta: Hei-de
subir mas de cor; Que
eu deixei a porta aberta Noutra
passagem maior...
Adolfo Rocha , PRESENÇA nº
22 set.-nov. de 1929 |
IBÉRIA Terra. Quanto
a palavra der, e nada mais. Só
assim a resume Quem
a contempla do mais alto cume, Carregada
de sol e de pinhais. Terra-tumor-de-angústia
de saber Se
o mar é fundo e ao fim deixa passar... Uma
antena da Europa a receber A
voz do longe que lhe quer falar... Terra
de pão e vinho (
A fome e a sede só virão depois, Quando
a espuma salgada for caminho Onde
um caminha desdobrado em dois). Terra
nua e tamanha Que
nela coube o Velho-Mundo e o Novo... Que
nela cabem Portugal e a Espanha E
a loucura com asas do seu Povo.
Miguel
Torga, Poemas Ibéricos, 1965 |
A TERRA Como
ondulada capa de miséria A
cobrir de negrura a cor das chagas, Assim
és tu, crosta de velhas fragas Sobre
o corpo da Ibéria. A
VIDA Povo
sem outro nome à flor do seu destino; Povo
substantivo masculino, Seara
humana à mesma intensa luz; Povo
vasco, andaluz, Galego,
asturiano, Catalão,
português: O
caminho é saibroso e franciscano Do
berço à sepultura; Mas
a grande aventura Não
é rasgar os pés E
chegar morto ao fim; É
nunca, por nenhuma razão, Descrer
do chão Duro
e ruim!
Miguel
Torga, Poemas Ibéricos |
VASCO DA GAMA Somos
nós que fazemos o destino. Chegar
à Índia ou não É
um íntimo desígnio da vontade. Os
fados a favor E
a desfavor, São
argumentos da posteridade.
O próprio génio pode estar ausente Da
façanha. Basta
que nos momentos de terror, Persistente,
O
ânimo enfrente A
fúria de qualquer Adamastor. Fernão de Magalhães da Ibéria toda, Alma de tojo arnal sobre uma fraga A namorar a terra em corpo inteiro, Consciência do fim no fim da boda, Fernão de Magalhães que andaste à roda De quanto Portugal sonhou primeiro: Ter um destino, é não caber no berço Onde o corpo nasceu. É transpor as fronteiras uma a uma E morrer sem nenhuma, Às lançadas à bruma, A cuidar que a ilusão é que venceu. Miguel Torga, Poemas Ibéricos |
O renome é o salário do triunfo. O
que é preciso, pois, é triunfar. Nunca
meia viagem consentida! Nunca
meia medida Do
vinho que nos há-de embriagar!
Miguel
Torga, Poemas Ibéricos
LOIOLA É
um pesadelo a ressoar no ouvido: -
Obedece! Obedece! obedece! Num
ritmo de prece, O
eco da remota intimação Ordena
à consciência do presente A
mesma penitente Sujeição. -
Obedece! Obedece! A
razão endurece, A
vontade resiste, Mas,
em nome do eterno E
do inferno, O
cantochão insiste: -
Obedece! Obedece! E
o mundo natural E
universal Que
o sol peninsular doira e aquece, De
repente, aparece Mergulhado Numa
tristeza negra, que arrefece, Num
luar de sotaina, regelado. Miguel Torga, Poemas
Ibéricos |
FERNANDO
PESSOA Oculto
no seu corpo e no seu nome (Aranha
que negava a própria teia Que
tecia), Poeta
da Poesia Sibilina
e cauta, Foi
o vidente filho universal Dum
futuro-presente Portugal, Outra
vez trovador e argonauta.
Miguel
Torga, Poemas Ibéricos
FREDERICO GARCIA LORCA[1] Garcia
Lorca, irmão: Sou
eu, mais uma vez... Venho
negar à humana condição A
humana pequenez Da
ingratidão. Venho
e virei enquanto houver poesia, Povo
e sonho na Ibéria. Venho
e virei à tua romaria Oferecer-te
a miséria Duma
oração lusíada e sombria.
Venho, talefe branco da Nevada, Filho
novo de Espanha! Venho,
e não digas nada; Deixa
um pobre poeta da montanha Trazer
torgas à rosa de Granada! |
Indomável cigano Dos
caminhos do tempo e da ventura, Sensual
e profano, O
teu génio floresce cada ano... Venho
ver-te crescer da sepultura! Bruxo
das trevas onde alguém te quis, Nelas
arde a paixão do que escreveste! Sete
palmos de terra, e nenhum diz Que
secou a raiz, Que
partiste ou morreste! Uma
luz que é o aceno da verdade Abre-se
onde os teus versos vão abrindo... A
eternidade, Na
pureza da sua claridade, Sobre
o teu nome, universal, caindo... E
o peregrino vem. Reza
devotamente, Põe
no altar o que tem, E
regressa mais livre e mais contente... Assim
faço, também!
Miguel
Torga, Poemas Ibéricos |
[
No dia da morte de Miguel Torga, 17. 01. 95.] Chaque jour nous laissons une partie de nous mêmes en chemin. AMIEL Jou,
Murça, 14 de Junho de 1988 -
É terrível, a morte. Tira sentido às palavras, aos gestos, às lágrimas, ao
silêncio. Deixa a vida sem expressão. Miguel
Torga ( 1907-1995), Diário XV. |
Coimbra, 26 de Setembro de 1988. INFORMAÇÃO Cumpriu-se
a profecia. Na
data adivinhada, O
poeta nascia E
seria Uma
humana heresia Desmascarada. E
nem sequer morreu, quando morreu. Deixou
versos a perpetuar O
escândalo universal Da
sua vil presença intemporal No
mundo. E
quem até ao fundo Os
lê, Peca
por consciente conivência Ou
incauta inocência. Miguel Torga, Diário XV |
- Vim aqui
ver-me exposto e explicado aos alunos de uma escola preparatória. Carinhosa e
inteligentemente, de resto. E a recordar no rosto feliz de todos os
professores que me rodeavam o do senhor Botelho quando publicamente me
afiançava ao futuro, e a alegria de todas as crianças que me festejavam a
minha própria alegria infantil nas grandes horas lectivas, esqueci por
instantes as agruras da via dolorosa ali patenteada. Um poeta não tem
biografia. Tem destino. O meu foi talhado no dia longínquo, dum tempo que
momentaneamente me pareceu abolido, em que um velho mestre convenceu um
calejado pai de que uma pena letrada pesava menos do que a rabiça do arado.
Não era verdade. Mas até eu acreditei. E paguei-o caro, como o demonstrava
aquele estendal de provas que para os demais significava uma glorificação, e
para mim era apenas um sudário esfarrapado. Miguel Torga, Diário XV |
S. Martinho de Anta, 14 de Setembro de 1989 -
Olho estes montes circundantes que desde muito cedo me desafiaram a
imaginação e as pernas. Todos subi e desci inúmeras vezes, primeiro como
ganapo irrequieto, depois como caçador inveterado, e ultimamente como poeta
rememorativo. Os horizontes que deles contemplei é que me balizaram a alma. E
agora, que estou no fim, pergunto a mim mesmo o que seria tudo quanto escrevi
se eles fossem outros. Nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o
mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante. Miguel Torga, Diário XV |
Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a
canivete, Gravasse a fúria de cada
momento; Canto, a ver se o meu canto
compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam
rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num
desafio: Que o céu e a terra, pedras
conjugadas Do moinho cruel que me
tritura, Saibam que há gritos como há
nortadas, Violências famintas de
ternura. |
Bicho instintivo que adivinha
a morte No corpo dum poeta que a
recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de
beleza. Miguel Torga, Orfeu
Rebelde |
A ORFEU
Das tuas mãos divinas de Poeta
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou por maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.
Cercam-me as cordas, tensas de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo inteiro.
Mas do fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro! Miguel Torga, Odes, 1956,
3ª ed. revista
Chaves, 4 de Setembro de 1989
FRUSTRAÇÃO
Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.
Miguel
Torga, Diário XV
Descida aos infernos
Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora é o repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.
Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço.
Neste moço
Heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado por gigantes
- Cães vigilantes
Aos portões do mito. |
Desfecho Gastei-as a negar-te... (Só a negar-te eu pude
combater O terror de te ver Em toda a parte). Qual fosse o chão da
caminhada, Era certa a meu lado A divina presença
impertinente Do teu vulto calado E paciente... E lutei, como luta um
solitário Quando alguém lhe perturba
a solidão Fechado num ouriço de
recusas, Soltei a voz, arma que tu
não usas, Sempre silencioso na
agressão. Mas o tempo moeu na sua mó O joio amargo do que te
dizia... Agora somos dois
obstinados, Mudos e malogrados, Que apenas vão a par na
teimosia. Miguel Torga, Câmara
Ardente E entro finalmente No reino tenebroso Das minhas trevas. Quebra-se a lira, Cessa a melodia; E um medo triste, de vergonha e assombro, Gela-me o sangue, rio sem nascente, Onde o céu, lá do alto, se reflecte, Inútil como a paz que me promete. Miguel Torga, Orfeu Rebelde NIHIL SIBI O Poeta é uma fonte: Nada reserva para a sua sede; Canta também a dar-se, E não dorme, nem pára. Cântico de Consciência Olho daqui o mundo e o ponto negro Que sou na sua crosta esbranquiçada, E não perco a coragem da jornada, Nem me iludo. Numa esfera animada Rola tudo, E tudo chega ao fim da sua estrada. Miguel Torga, Nihil Sibi, 1948 |
AO MAR
Água, sal e vontade - a vida!
Azul - a cor do céu e da inocência.
Um lenço a colorir a despedida
Da galera da ausência...
Mar tenebroso!
Mar fechado e rugoso
Sobre um casto jardim adormecido!
Mar de medusas que ninguém semeia,
Criadas com mistério e com areia,
Perfeitas de beleza e de sentido!
Vem a sede da terra e não se acalma!
Vem a força do mundo e não te doma!
Impenitente e funda, a tua alma
Guarda-se no cristal duma redoma.
Guarda-se purificada em leve espuma,
Renda da sua túnica de linho.
Guarda-se aberta em sol, sagrada em bruma,
Sem amor, sem ternura e sem caminho.
O navio do sonho foi ao fundo,
E o capitão, despido, jaz ao leme,
Branco nos ossos descarnados;
Uma alga no peito, a flor do mundo,
Uma fibra de amor que vive e treme
De ouvir segredos vãos, petrificados. |
Uma ilusão enfuna e enxuga a vela, Uma desilusão a rasga e molha; Morta a magia que pintava a tela, O mesmo olhar de há pouco já não olha. Na órbita vazia um cego ouriço Pica o silêncio leve que perpassa... Pica o novo feitiço Que nasce do final de uma desgraça. Mas nem corais, nem polvos, nem quimeras Sobem à tona das marés... O navio encalhado e as suas eras Lá permanecem a milhentos pés. Soterrados em verde, negro e vago, Nenhum sol os aquece. Habitantes do lago Do esquecimento, só a sombra os tece... Ela que és tu, anónimo oceano, Coração ciumento e namorado! Ela que és tu, arfar viril e plano, Largo como um abraço descuidado! Tu, mar fechado, aberto e descoberto Com bússolas e gritos de gajeiro! Tu, mar salgado, lírico, coberto De lágrimas, iodo e nevoeiro! Miguel Torga, Odes, 1956 |
Adolfo Rocha (Miguel Torga[2]) nasceu em 1907, a 12 de
Agosto, em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes.
Proveniente
de uma família humilde, teve uma infância rural.
A
necessidade de sobrevivência económica, leva-o, depois de ser criado de servir
no Porto, a uma breve passagem pelo seminário de Lamego.
Aos
13 anos, emigrou para o Brasil, onde foi capinador, apanhador de café, vaqueiro
e caçador de Cobras, na Fazenda de Santa Cruz, Estado de Minas Gerais.
Regressado, cinco anos depois, a Portugal, licencia-se em Medicina na
Universidade de Coimbra, cidade onde se estabelece definitivamente, desde 1941,
como otorrinolaringologista.
Na
juventude, publicou os primeiros livros, conheceu por isso a prisão, foi
conspirador e panfletário...
Inicialmente,
identificado com os mentores do Segundo
Modernismo que a publicação da revista Presença
(1927-1940) agrupava em Coimbra, - acaba por romper com os mesmos em 1930,
continuando um trajecto literário, caracterizado por um realismo de sentido
individualizante, de feição violenta e vitalista, socialmente responsabilizado
e responsabilizador.
A
obra de Miguel Torga é progressivamente estruturada por três discursos ou
níveis de sentido:
-
o apelo da transcendência (discurso
teológico)
-
o fascínio telúrico ( discurso cósmico)
- o imperativo da liberdade ( discurso sociológico)
“ Antes de negar a acção do poder social sobre a sua consciência, o homem torguiano negou o poder divino sobre a sua natureza, e, antes de proclamar a liberdade cívica, o homem torguiano proclamou a liberdade trágica indissociável do destino que ela própria engendra. (...) Longe de requerer um agnosticismo axiológico para a sua proclamação do carácter absoluto da ordem natural (discurso cósmico) - Torga impregna-se de uma ética de subversão que fundamenta o seu projecto de um humanismo soberano. Esta subversão tem os seus objectivos. No plano sociológico, incrementa a vertente revolucionária que o poeta sempre assumiu. Mas, no plano individual, ela atinge as mais submersas profundidades do ser - ali onde a sua opção satânica se não dilui na indiferenciação ontológica da natureza comum. A espessura do humanismo torguiano tem, pois, no seu discurso teológico o mais poderoso ingrediente.”[3]
Torga sobre si próprio:
Torga
reconhece-se como “o mau da peça, o inconformado, o frontal, o
desmancha-prazeres”. Perdida, desde muito cedo, a fé no catecismo, discutiu os
dogmas, desafiou o senso comum, disse “aos nossos políticos que não são
estadistas, aos nossos versejadores que não são poetas, aos nossos santarrões
que não são santos,” com a autoridade de “quem correu sempre o risco de todas
as suas afirmações e lhes pagou o preço.”
Torga
avesso à fama, sempre disse: “Quem quiser conhecer-me, leia-me.” Durante muitos
anos rejeitou dar entrevistas, em nome de uma “liberdade só possível em
consequência de uma penosa conquista da solidão.”
Todavia, no fim da vida acabou por gravar um disco de poemas de Natal e participar num video que mostra o seu quotidia
Intervenção politico-partidária
Após
o 25 de Abril, subiu ao palco de alguns grandes comícios: Sabrosa, S. Martinho
de Anta, Coimbra, Lisboa. Conspirador e panfletário, homem que sempre
considerou a liberdade “o que há-de mais específico na psicologia dos
oprimidos”, conhecera a prisão na vigência do Estado Novo. À Censura nunca
mandou um único dos seus livros, que editava recorrendo ao próprio bolso e
apenas concebia “propiciados ao leitor no pretório das montras”. Mas receando
uma nova ditadura, ei-lo “a pugnar por um socialismo comunitário de base
anarquista”.
Cedo, porém, desceria do palco político, descrendo de todos os governantes. “Nem os melhores prestam. Nenhum é imune à tentação do poder”, escreve em 1984.
A oficina do poeta
Escritor
de “frase trabalhada a cinzel” que só por “aproximações sucessivas” confessa
lograr “um mínimo de clareza expressiva”, queimou os seus velhos manuscritos de
modo a eliminar a curiosidade mórbida dos críticos.
Consagrações oficiais:
Em 1954, quando do centenário de Garrett, rejeitou categoricamente o prémio literário então instituído para celebrar a efeméride.
Em 20 de Abril de 1964, recebe o Prémio Diário Notícias.
Recebeu, ex aequo com o brasileiro Carlos Drummond de Andrade[i], o 1º Prémio Poesia Morgado de Mateus, entregue pelo Presidente da República, Ramalho Eanes. Este prémio foi instituído com o objectivo de galardoar a obra poética de autores vivos da língua portuguesa que possa considerar-se paradigma da nossa cultura.
Em 1988, aos 81 anos, doente de cancro, recebeu das mãos do Presidente da República, Dr. Mário Soares, o 1º prémio Vida Literária da APE, relativo à carreira. Prémio que saudou do seguinte modo:
“Homem
de muitas dúvidas e poucas certezas” atribuiu à língua da pátria a causa de todo o seu talento: “A ela deve ser
creditado o mérito do pouco ou muito que fiz, pois sempre se ajustou à minha
mente, sentimentos e feitio.”
Mário
Ventura Henriques, presidente da APE, confessou a propósito: “Não conheço outro
escritor em Portugal que seja a consciência da pátria como Torga.”
[1] - Nasceu em Fuente Vaqueros (Granada) em
1898. Poeta e dramaturgo. Em 1931, fundou o teatro universitário La Barraca que
dirigiu até 1935. Viu algumas das suas peças representadas na Argentina e no
Uruguai (1933-1934). Em 1936, foi detido pelas forças franquistas em Granada e
dias depois fuzilado em Vísnar.
[2] - Aos 27 anos, adoptou este pseudónimo,
exarando “ficas tu Miguel Torga, mas não me chames Judas”.
[3] - Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e Ler Torga, Lisboa, Vega, 1986.
[i] - Carlos
Drummond de Andrade publicou o seu primeiro livro no dia 25 de Abril de
1930. Poeta do quotidiano, com um forte senso de humor, foi jornalista
profissional e chefe de gabinete de alguns Ministérios. A partir de 1962,
começou a dedicar-se exclusivamente à vida literária. “Rosa do Povo”, “Lição
das Coisas”, “Viola de Bolso” e a “Bolsa e a Vida” são alguns dos seus títulos
mais representativos.
Recebeu ex-aequo com Miguel
Torga o Prémio de Poesia Morgado de Mateus.
Miguel
Torga, IBÉRIA, in Poemas Ibéricos,
1965
Terra.
Quanto
a palavra der, e nada mais.
Só
assim a resume
Quem
a contempla do mais alto cume,
Carregada
de sol e de pinhais.
Terra-tumor-de-angústia
de saber
Se
o mar é fundo e ao fim deixa passar...
Uma
antena da Europa a receber
A
voz do longe que lhe quer falar...
Terra
de pão e vinho
(
A fome e a sede só virão depois,
Quando
a espuma salgada for caminho
Onde
um caminha desdobrado em dois).
Terra
nua e tamanha
Que
nela coube o Velho-Mundo e o Novo...
Que
nela cabem Portugal e a Espanha
E
a loucura com asas do seu Povo.
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