Literatura Portuguesa

 PRESENÇA - Folha de Arte e Crítica

                nº 1, Coimbra, 10 de Março de 1927

                I - Literatura Viva ( fragmentos) por José Régio:

                Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe.

                ( ...) Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade.

                (...) Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto às condições do tempo e do espaço. (...)

                II - Classicismo e Modernismo ( fragmentos) por José Régio (28/03/1927):

                ( ...) O que importa é que um Artista possua em si próprio, e por si próprio o descubra, o seu classicismo. Isto é: A conjugação harmoniosa, vibrante, de todas as suas faculdades geradoras.

                (...) Chegamos a admitir a compatibilidade do classicismo e do modernismo. Por modernismo entendo um certo modo de personalidade actual - mais fácil de classificar do que de definir. Nenhuma das principais correntes estéticas contemporâneas sintetiza o modernismo, porque é a personalidade modernista que as engloba todas: Não obstante algumas dessas correntes se oporem violentamente, de todas participam as mais características individualidades de hoje. É que por evolução ou reacção, todas se originam no romantismo. É por natural evolução que o Dadaísmo o leva às últimas consequências, acabando por negar a própria Arte no exaspero nihilista da sua estética rudimentar e complexa. É por natural reacção que o Futurismo repudia toda a sentimentalidade e toda a estesia - caindo afinal no lirismo do Movimento e na quasi glorificação da animalidade grosseira. É simultaneamente por evolução e reacção que o Expressionismo aplaude toda a excentricidade no seu sonho anti-realista, requintando até à obscuridade e à infantilidade o seu amor do sintético e do geral. Longe de mim o querer reduzir o Dadaísmo, o Futurismo, o Expressionismo, a esta caricatura a dois traços. Quero apenas isolar neles os seus pontos de comunicação romântica. E quero revelar neles o seu germen absolutista e dogmático. É por este germen que os maiores Artistas modernos se recusam a caber numa escola e aproveitar toda a riqueza da personalidade moderna. O próprio exagero destas escolas foi benéfico - porque autorizou, animou e encorajou audácias mais duradouras e menos estrepitosas. Mas limitar-se a uma destas correntes ( que valem sobretudo como revelação de tendências ) seria para um artista incorrer no risco de ficar apenas um caso literário. Eis porque o modernismo superior é individualista e clássico - tomando agora o termo individualista no melhor sentido, e considerando clássica toda a obra de Arte em que determinado motivo encontra o seu meio de expressão próprio, em que as características da inspiração caracterizam a realização. É assim que para ser clássico, um modernista deve ser inteira e verdadeiramente modernista.

 

 

             ALTITUDES                           

 

                Já bati palmas com brio                        

               À confusão do trajecto

                Que fez o meu rodopio

                De posições no vazio

                Inserto no meu projecto...

               

                Então vi que as pernas vivem

                Giros dijuntos de teias;

                Que o tonco e braços revivem

                O que as pernas lhe motivem ...,

                A cabeça dança ideias.

               

                Transe de pobre coitado,

                Já sonhei ser bailarino;

                Já me adorei disfarçado

                Nas posições dum bailado

                Requintado e libertino.

 

               

                                                                                                                                                                                            

 

 

 

               Vi o fim da confusão

                Na cauda das posições

                Dessa imota posição

                Que é ser joguete na mão

                Das minhas revelações...

 

                O meu corpo branco e forte

                Tinha a vertigem do enlevo

                ao defender-se da morte

                que adivinhava na sorte

                Das posições sem relevo.

               

                Depois ... caí do bailado

                Como a ilusão da verdade;

                Sim! caí desanimado

                Quando fui arremessado

                Pela minha humanidade.

 

                E os meus passos de forçado

                São tudo revoltas ôcas

                De oceano encapelado

                Que é mordido pelas bocas

                Dum sonhador naufragado...

             Adolfo Rocha, PRESENÇA  nº 19, fev. março de 1929

              BALOIÇO

 

                Subo e desço. Entonteço...

                Um repelão de falido.

                Regateio; pago o preço

                E sigo desiludido...

 

                Fala de sala, baixa, fina,

                Conta o porteiro à menina

                Rica e saltarica

                Toda a minha covardia;

                E todos sabem hoje que não sou

                Homem do céu! Mas sou,

                o que eles não sabem, eu.

 

                Eu desci por meus pecados

                Que são muitos e pesados.

 

               

               

               Lá, muito alto, no alto

                Olhei a curva da volta

                E de medo entonteci...

                Eu tinha a minha mão dada com Deus

                Mas, sem força, despreguei-me

                Da mão de Deus e caí...

 

                Todos se firmam, fortes, à cautela!

                Só eu! só eu! havia ter aquela

                               Fraqueza,

                E desprezar a certeza

                Incerto, dependurado!...

                Mas ... no meu gesto ousado

                Há verdade e beleza...

 

                Agora este orgulho alerta:

                Hei-de subir mas de cor;

                Que eu deixei a porta aberta

                Noutra passagem maior...

              Adolfo Rocha , PRESENÇA   nº 22  set.-nov. de 1929

 

                   IBÉRIA

 

                Terra.

                Quanto a palavra der, e nada mais.

                Só assim a resume

                Quem a contempla do mais alto cume,

                Carregada de sol e de pinhais.

 

                Terra-tumor-de-angústia de saber

                Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...

                Uma antena da Europa a receber

                A voz do longe que lhe quer falar...

 

                Terra de pão e vinho

                ( A fome e a sede só virão depois,

                Quando a espuma salgada for caminho

                Onde um caminha desdobrado em dois).

 

                Terra nua e tamanha

                Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo...

                Que nela cabem Portugal e a Espanha

                E a loucura com asas do seu Povo.  

                  Miguel Torga, Poemas Ibéricos, 1965

 

              A TERRA

 

                Como ondulada capa de miséria

                A cobrir de negrura a cor das chagas,

                Assim és tu, crosta de velhas fragas

                Sobre o corpo da Ibéria.

 

                A VIDA

 

                Povo sem outro nome à flor do seu  destino;

                Povo substantivo masculino,

                Seara humana à mesma intensa luz;

                Povo vasco, andaluz,

                Galego, asturiano,

                Catalão, português:

                O caminho é saibroso e franciscano

                Do berço à sepultura;

                Mas a grande aventura

                Não é rasgar os pés

                E chegar morto ao fim;

                É nunca, por nenhuma razão,

                Descrer do chão

                Duro e ruim!

                   Miguel Torga, Poemas Ibéricos

 

 

 

 

               VASCO DA GAMA

 

                Somos nós que fazemos o destino.

                Chegar à Índia ou não

                É um íntimo desígnio da vontade.

                Os fados a favor

                E a desfavor,

                São argumentos da posteridade.

 

               O próprio génio pode estar ausente

                Da façanha.

                Basta que nos momentos de terror,

                Persistente,

                O ânimo enfrente

                A fúria de qualquer Adamastor.

 

               

                Fernão de Magalhães

 

                Fernão de Magalhães da Ibéria toda,

                Alma de tojo arnal sobre uma fraga

                A namorar a terra em corpo inteiro,

                Consciência do fim no fim da boda,

                Fernão de Magalhães que andaste à roda

                De quanto Portugal sonhou primeiro:

 

                Ter um destino, é não caber no berço

                Onde o corpo nasceu.

                É transpor as fronteiras uma a uma

                E morrer sem nenhuma,

                Às lançadas à bruma,

                A cuidar que a ilusão é que venceu.

               Miguel Torga, Poemas Ibéricos

 

               O renome é o salário do triunfo.

                O que é preciso, pois, é triunfar.

                Nunca meia viagem consentida!

                Nunca meia medida

                Do vinho que nos há-de embriagar!

                 Miguel Torga, Poemas Ibéricos

 

              

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                  LOIOLA

 

                É um pesadelo a ressoar no ouvido:

                - Obedece! Obedece! obedece!

                Num ritmo de prece,

                O eco da remota intimação

                Ordena à consciência do presente

                A mesma penitente

                Sujeição.

 

                - Obedece! Obedece!

                A razão endurece,

                A vontade resiste,

                Mas, em nome do eterno

                E do inferno,

                O cantochão insiste:

 

                - Obedece! Obedece!

                E o mundo natural

                E universal

                Que o sol peninsular doira e aquece,

                De repente, aparece

                Mergulhado

                Numa tristeza negra, que arrefece,

                Num luar de sotaina, regelado.

                Miguel Torga, Poemas Ibéricos

               

              FERNANDO PESSOA

 

                Oculto no seu corpo e no seu nome

                (Aranha que negava a própria teia

                Que tecia),

                Poeta da Poesia

                Sibilina e cauta,

                Foi o vidente filho universal

                Dum futuro-presente Portugal,

                Outra vez trovador e argonauta.

                 Miguel Torga, Poemas Ibéricos

 

               FREDERICO GARCIA LORCA[1]

 

                Garcia Lorca, irmão:

                Sou eu, mais uma vez...

                Venho negar à humana condição

                A humana pequenez

                Da ingratidão.

 

                Venho e virei enquanto houver poesia,

                Povo e sonho na Ibéria.

                Venho e virei à tua romaria

                Oferecer-te a miséria

                Duma oração lusíada e sombria.

 

               Venho, talefe branco da Nevada,

                Filho novo de Espanha!

                Venho, e não digas nada;

                Deixa um pobre poeta da montanha

                Trazer torgas à rosa de Granada!

 

 

               

 

 

 

 

 

 

 

               Indomável cigano

                Dos caminhos do tempo e da ventura,

                Sensual e profano,

                O teu génio floresce cada ano...

                Venho ver-te crescer da sepultura!

 

                Bruxo das trevas onde alguém te quis,

                Nelas arde a paixão do que escreveste!

                Sete palmos de terra, e nenhum diz

                Que secou a raiz,

                Que partiste ou morreste!

 

                Uma luz que é o aceno da verdade

                Abre-se onde os teus versos vão  abrindo...

                A eternidade,

                Na pureza da sua claridade,

                Sobre o teu nome, universal, caindo...

 

                E o peregrino vem.

                Reza devotamente,

                Põe no altar o que tem,

                E regressa mais livre e mais contente...

                Assim faço, também!

               Miguel Torga, Poemas Ibéricos

 

 

     

         [ No dia da morte de Miguel Torga, 17. 01. 95.]

 

        Chaque jour nous laissons une partie

                          de nous mêmes en chemin.

 

                                                               AMIEL

 

                Jou, Murça, 14 de Junho de 1988

 

                - É terrível, a morte. Tira sentido às palavras, aos gestos, às lágrimas, ao silêncio. Deixa a vida sem expressão.

                Miguel Torga ( 1907-1995), Diário XV.

 

 

 

            Coimbra, 26 de Setembro de 1988.

 

 

                INFORMAÇÃO

 

                Cumpriu-se a profecia.

                Na data adivinhada,

                O poeta nascia

                E seria

                Uma humana heresia

                Desmascarada.

 

                E nem sequer morreu, quando morreu.

                Deixou versos a perpetuar

                O escândalo universal

                Da sua vil presença intemporal

                No mundo.

                E quem até ao fundo

                Os lê,

                Peca por consciente conivência

                Ou incauta inocência.

                Miguel Torga, Diário XV

                Anadia, 29 de Junho de 1989

 

                 - Vim aqui ver-me exposto e explicado aos alunos de uma escola preparatória. Carinhosa e inteligentemente, de resto. E a recordar no rosto feliz de todos os professores que me rodeavam o do senhor Botelho quando publicamente me afiançava ao futuro, e a alegria de todas as crianças que me festejavam a minha própria alegria infantil nas grandes horas lectivas, esqueci por instantes as agruras da via dolorosa ali patenteada. Um poeta não tem biografia. Tem destino. O meu foi talhado no dia longínquo, dum tempo que momentaneamente me pareceu abolido, em que um velho mestre convenceu um calejado pai de que uma pena letrada pesava menos do que a rabiça do arado. Não era verdade. Mas até eu acreditei. E paguei-o caro, como o demonstrava aquele estendal de provas que para os demais significava uma glorificação, e para mim era apenas um sudário esfarrapado.

                Miguel Torga, Diário XV

 

 

             

            S. Martinho de Anta, 14 de Setembro de 1989

 

                - Olho estes montes circundantes que desde muito cedo me desafiaram a imaginação e as pernas. Todos subi e desci inúmeras vezes, primeiro como ganapo irrequieto, depois como caçador inveterado, e ultimamente como poeta rememorativo. Os horizontes que deles contemplei é que me balizaram a alma. E agora, que estou no fim, pergunto a mim mesmo o que seria tudo quanto escrevi se eles fossem outros. Nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante.

                Miguel Torga, Diário XV

               

              Orfeu Rebelde

 

              Orfeu rebelde, canto como sou:

              Canto como um possesso

              Que na casca do tempo, a canivete,

              Gravasse a fúria de cada momento;

              Canto, a ver se o meu canto compromete

              A eternidade do meu sofrimento.

 

               Outros, felizes, sejam rouxinóis...

               Eu ergo a voz assim, num desafio:

               Que o céu e a terra, pedras conjugadas

               Do moinho cruel que me tritura,

               Saibam que há gritos como há nortadas,

               Violências famintas de ternura.

 

 

 

              

 

               Bicho instintivo que adivinha a morte

               No corpo dum poeta que a recusa,

               Canto como quem usa

               Os versos em legítima defesa.

               Canto, sem perguntar à Musa

               Se o canto é de terror ou de beleza.

                    Miguel Torga, Orfeu Rebelde

 

 

            A ORFEU

 

            Das tuas mãos divinas de Poeta

            Herdei a lira que não sei tanger;

            Por eleição ou por maldição secreta,

            Tenho uma grade para me prender.

 

            Cercam-me as cordas, tensas de emoção,

            Versos de ferro onde me rasgo inteiro.

            Mas do fundo da alma e da prisão,

            Obrigado, meu Deus e carcereiro!

            Miguel Torga, Odes, 1956, 3ª ed. revista

 

 

             Chaves, 4 de Setembro de 1989

 

              FRUSTRAÇÃO

 

              Foi bonito

              O meu sonho de amor.

              Floriram em redor

              Todos os campos em pousio.

              Um sol de Abril brilhou em pleno estio,

              Lavado e promissor.

              Só que não houve frutos

               Dessa primavera.

               A vida disse que era

               Tarde demais.

               E que as paixões tardias

               São ironias

               Dos deuses desleais.

               Miguel Torga, Diário XV    

 

 

              Descida aos infernos

 

              Desço aos infernos, a descer em mim.

              Mas agora o meu canto não perfura

              O coração da morte,

              À procura

              Da sombra

              Dum amor perdido.

              Agora é o repetido

              Aceno

              Do próprio abismo

              Que me seduz.

              É ele, embriaguez nocturna da vontade,

              Que me obriga a sair da claridade

              E a caminhar sem luz.

 

              Ergo a voz e mergulho

              Dentro do poço.

              Neste moço

              Heroísmo

              Dos poetas,

              Que enfrentam confiantes

              O interdito

              Guardado por gigantes

              - Cães vigilantes

             Aos portões do mito.

 

 

 

 

Desfecho

 

Não tenho mais palavras.

Gastei-as a negar-te...

(Só a negar-te eu pude combater

O terror de te ver

Em toda a parte).

 

Qual fosse o chão da caminhada,

Era certa a meu lado

A divina presença impertinente

Do teu vulto calado

E paciente...

         

E lutei, como luta um solitário

Quando alguém lhe perturba a solidão

Fechado num ouriço de recusas,

Soltei a voz, arma que tu não usas,

Sempre silencioso na agressão.

 

Mas o tempo moeu na sua mó

O joio amargo do que te dizia...

Agora somos dois obstinados,

Mudos e malogrados,

Que apenas vão a par na teimosia.

Miguel Torga, Câmara Ardente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E entro finalmente

No reino tenebroso

Das minhas trevas.

Quebra-se a lira,

Cessa a melodia;

E um medo triste, de vergonha e assombro,

Gela-me o sangue, rio sem nascente,

Onde o céu, lá do alto, se reflecte,

Inútil como a paz que me promete.

Miguel Torga, Orfeu Rebelde

 

 

NIHIL SIBI

 

O Poeta é uma fonte:

Nada reserva para a sua sede;

Canta também a dar-se,

E não dorme, nem pára.

 

Cântico de Consciência

 

Olho daqui o mundo e o ponto negro

Que sou na sua crosta esbranquiçada,

E não perco a coragem da jornada,

Nem me iludo.

Numa esfera animada

Rola tudo,

E tudo chega ao fim da sua estrada.

Miguel Torga, Nihil Sibi, 1948

 

 

          

              AO MAR

 

              Água, sal e vontade - a vida!

              Azul - a cor do céu e da inocência.

              Um lenço a colorir a despedida

              Da galera da ausência...

 

              Mar tenebroso!

              Mar fechado e rugoso

              Sobre um casto jardim adormecido!

              Mar de medusas que ninguém semeia,

              Criadas com mistério e com areia,

              Perfeitas de beleza e de sentido!

 

              Vem a sede da terra e não se acalma!

              Vem a força do mundo e não te doma!

              Impenitente e funda, a tua alma

              Guarda-se no cristal duma redoma.

 

              Guarda-se purificada em leve espuma,

              Renda da sua túnica de linho.

              Guarda-se aberta em sol, sagrada em bruma,

              Sem amor, sem ternura e sem caminho.

 

               O navio do sonho foi ao fundo,

               E o capitão, despido, jaz ao leme,

               Branco nos ossos descarnados;

               Uma alga no peito, a flor do mundo,

               Uma fibra de amor que vive e treme

               De ouvir segredos vãos, petrificados.

 

 

 

 

 

Uma ilusão enfuna e enxuga a vela,

Uma desilusão a rasga e molha;

Morta a magia que pintava a tela,

O mesmo olhar de há pouco já não olha.

 

Na órbita vazia um cego ouriço

Pica o silêncio leve que perpassa...

Pica o novo feitiço

Que nasce do final de uma desgraça.

 

Mas nem corais, nem polvos, nem quimeras

Sobem à tona das marés...

O navio encalhado e as suas eras

Lá permanecem a milhentos pés.

 

Soterrados em verde, negro e vago,

Nenhum sol os aquece.

Habitantes do lago

Do esquecimento, só a sombra os tece...

 

Ela que és tu, anónimo oceano,

Coração ciumento e namorado!

Ela que és tu, arfar viril e plano,

Largo como um abraço descuidado!

 

Tu, mar fechado, aberto e descoberto

Com bússolas e gritos de gajeiro!

Tu, mar salgado, lírico, coberto

De lágrimas, iodo e nevoeiro!

Miguel Torga, Odes, 1956


                Adolfo Rocha (Miguel Torga[2]) nasceu em 1907, a 12 de Agosto, em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes.

                Proveniente de uma família humilde, teve uma infância rural.

                A necessidade de sobrevivência económica, leva-o, depois de ser criado de servir no Porto, a uma breve passagem pelo seminário de Lamego.

                Aos 13 anos, emigrou para o Brasil, onde foi capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador de Cobras, na Fazenda de Santa Cruz, Estado de Minas Gerais. Regressado, cinco anos depois, a Portugal, licencia-se em Medicina na Universidade de Coimbra, cidade onde se estabelece definitivamente, desde 1941, como otorrinolaringologista.

                Na juventude, publicou os primeiros livros, conheceu por isso a prisão, foi conspirador e panfletário...

                Inicialmente, identificado com os mentores do Segundo Modernismo que a publicação da revista Presença (1927-1940) agrupava em Coimbra, - acaba por romper com os mesmos em 1930, continuando um trajecto literário, caracterizado por um realismo de sentido individualizante, de feição violenta e vitalista, socialmente responsabilizado e responsabilizador.

                A obra de Miguel Torga é progressivamente estruturada por três discursos ou níveis de sentido:

            

                - o apelo da transcendência (discurso teológico)

                - o fascínio telúrico ( discurso cósmico)

                - o imperativo da liberdade ( discurso sociológico)

                “ Antes de negar a acção do poder social sobre a sua consciência, o homem torguiano negou o poder divino sobre a sua natureza, e, antes de proclamar a liberdade cívica, o homem torguiano proclamou a liberdade trágica indissociável do destino que ela própria engendra. (...) Longe de requerer um agnosticismo axiológico para a sua proclamação do carácter absoluto da ordem natural (discurso cósmico) - Torga impregna-se de uma ética de subversão que fundamenta o seu projecto de um humanismo soberano. Esta subversão tem os seus objectivos. No plano sociológico, incrementa a vertente revolucionária que o poeta sempre assumiu. Mas, no plano individual, ela atinge as mais submersas profundidades do ser - ali onde a sua opção satânica se não dilui na indiferenciação ontológica da natureza comum. A espessura do humanismo torguiano tem, pois, no seu discurso teológico o mais poderoso ingrediente.”[3]

                Torga sobre si próprio:

                Torga reconhece-se como “o mau da peça, o inconformado, o frontal, o desmancha-prazeres”. Perdida, desde muito cedo, a fé no catecismo, discutiu os dogmas, desafiou o senso comum, disse “aos nossos políticos que não são estadistas, aos nossos versejadores que não são poetas, aos nossos santarrões que não são santos,” com a autoridade de “quem correu sempre o risco de todas as suas afirmações e lhes pagou o preço.”

                Torga avesso à fama, sempre disse: “Quem quiser conhecer-me, leia-me.” Durante muitos anos rejeitou dar entrevistas, em nome de uma “liberdade só possível em consequência de uma penosa conquista da solidão.”

                Todavia, no fim da vida acabou por gravar um disco de poemas de Natal e participar num video que mostra o seu quotidia

                Intervenção politico-partidária

                Após o 25 de Abril, subiu ao palco de alguns grandes comícios: Sabrosa, S. Martinho de Anta, Coimbra, Lisboa. Conspirador e panfletário, homem que sempre considerou a liberdade “o que há-de mais específico na psicologia dos oprimidos”, conhecera a prisão na vigência do Estado Novo. À Censura nunca mandou um único dos seus livros, que editava recorrendo ao próprio bolso e apenas concebia “propiciados ao leitor no pretório das montras”. Mas receando uma nova ditadura, ei-lo “a pugnar por um socialismo comunitário de base anarquista”.

                Cedo, porém, desceria do palco político, descrendo de todos os governantes. “Nem os melhores prestam. Nenhum é imune à tentação do poder”, escreve em 1984.

                A oficina do poeta

                Escritor de “frase trabalhada a cinzel” que só por “aproximações sucessivas” confessa lograr “um mínimo de clareza expressiva”, queimou os seus velhos manuscritos de modo a eliminar a curiosidade mórbida dos críticos. 


                Consagrações oficiais:

 

                Em 1954, quando do centenário de Garrett, rejeitou categoricamente o prémio literário então instituído para celebrar a efeméride.

                Em 20 de Abril de 1964, recebe o Prémio Diário Notícias.

                Recebeu, ex aequo com o brasileiro Carlos Drummond de Andrade[i], o 1º Prémio Poesia Morgado de Mateus, entregue pelo Presidente da República, Ramalho Eanes. Este prémio foi instituído com o objectivo de galardoar a obra poética de autores vivos da língua portuguesa que possa considerar-se paradigma da nossa cultura.

                Em 1988, aos 81 anos, doente de cancro, recebeu  das mãos do Presidente da República, Dr. Mário Soares, o 1º prémio Vida Literária da APE, relativo à carreira. Prémio que saudou do seguinte modo:

                “Homem de muitas dúvidas e poucas certezas” atribuiu à língua da pátria a causa de todo o seu talento: “A ela deve ser creditado o mérito do pouco ou muito que fiz, pois sempre se ajustou à minha mente, sentimentos e feitio.”

                Mário Ventura Henriques, presidente da APE, confessou a propósito: “Não conheço outro escritor em Portugal que seja a consciência da pátria como Torga.”                           

               

 

 

 

               

                 

               

 

 

 

 

             

               

 

 

 

 

                                                                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

 

 

             

 

               

 

 

 

 

                                                                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

 



[1]  - Nasceu em Fuente Vaqueros (Granada) em 1898. Poeta e dramaturgo. Em 1931, fundou o teatro universitário La Barraca que dirigiu até 1935. Viu algumas das suas peças representadas na Argentina e no Uruguai (1933-1934). Em 1936, foi detido pelas forças franquistas em Granada e dias depois fuzilado em Vísnar.

[2]  - Aos 27 anos, adoptou este pseudónimo, exarando “ficas tu Miguel Torga, mas não me chames Judas”.

[3]  - Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e Ler Torga, Lisboa, Vega, 1986.



[i]  - Carlos Drummond de Andrade publicou o seu primeiro livro no dia 25 de Abril de 1930. Poeta do quotidiano, com um forte senso de humor, foi jornalista profissional e chefe de gabinete de alguns Ministérios. A partir de 1962, começou a dedicar-se exclusivamente à vida literária. “Rosa do Povo”, “Lição das Coisas”, “Viola de Bolso” e a “Bolsa e a Vida” são alguns dos seus títulos mais representativos.

Recebeu ex-aequo com Miguel Torga o Prémio de Poesia Morgado de Mateus.

 

 

         

 

            Miguel Torga, IBÉRIA, in Poemas Ibéricos, 1965

 

                Terra.

                Quanto a palavra der, e nada mais.

                Só assim a resume

                Quem a contempla do mais alto cume,

                Carregada de sol e de pinhais.

 

                Terra-tumor-de-angústia de saber

                Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...

                Uma antena da Europa a receber

                A voz do longe que lhe quer falar...

 

                Terra de pão e vinho

                ( A fome e a sede só virão depois,

                Quando a espuma salgada for caminho

                Onde um caminha desdobrado em dois).

 

                Terra nua e tamanha

                Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo...

                Que nela cabem Portugal e a Espanha

                E a loucura com asas do seu Povo.  

 

 

 

               

               

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

               

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             

 

               

 

 

 

 

                                                                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

 

 

             

 

               

 

 

 

 

                                                                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

 

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