Ruy Duarte de Carvalho (apontamento)

Ruy Duarte de Carvalho (Santarém, 1941 – Swakopmund, 2010) foi um escritor, cineasta e antropólogo angolano.

Foi professor de antropologia numa escola de arquitetura da Universidade de Luanda; e também de Coimbra. Antes de ser antropólogo, trabalhou como engenheiro técnico agrário. É cidadão angolano, embora tenha nascido em Portugal. Angola é o seu "lugar no mundo". " Sou angolano, vivo em Angola, sem família, sem etnia, sem enquadramento institucional que preencha todas as necessidades políticas e de cidadania e, sobretudo, sem ambição pessoal que se enquadre no quadro das ambições possíveis em Angola."

Conheço esta sociedade (Kuvale) desde criança. O meu pai era português, de perto de Lisboa, foi para Angola com 30 anos. Eu ia com ele para o mato, caçar, foi aí que eu apanhei o vício do mato. Ainda ando a dormir nas pedras. Este é o livro que escrevi Vou Lá Visitar Pastores para me explicar a mim mesmo.

Tinha 19 anos quando rebentou a revolta contra o poder colonial, vi de tudo, fui bombardeado, lutei pela independência e pela autonomia. Desde então que sei perfeitamente de que lado estou - do lado de Angola como país que ainda não desistiu.

No início da guerra, em 1961: "Tinha 19 anos. Vi de tudo, fui bombardeado, lutei pela independência e pela autonomia. Foi talvez o dia em que estive mais perto da morte. Estava no Quitexe e tinha começado a trabalhar como regente agrícola numa grande fazenda. Não morri porque cheguei três minutos tarde de mais ao posto administrativo onde fora buscar o correio. Foi uma situação tão extrema, que os horrores que se lhe seguiram não me deixaram dúvidas sobre o lado em que passaria a colocar-me daí para a frente. Por isso é que digo ser angolano por condição e não opção. (...) Estava do lado da razão de Angola."

- A Angola independente e soberana nunca lhe causou "arrepios" que o levassem a pegar na pena, denotativa ou demonstrativamente…  Ruy Duarte de Carvalho responde: Antes do "Vou lá Visitar Pastores", cujo terreno seria "a priori" o da escrita demonstrativa, mas onde, por um artifício literário, introduzi elementos de escrita criativa, eu já tinha escrito o " Aviso à navegação", dirigido a interventores, a políticos, a ONG, etc. ... Foi a minha resposta cívica, se quiser, feita em termos demonstrativos, sobre os mesmos kuvale (ou mucubais, como toda a gente lhes chama) e sobre as sociedades angolanas de economia doméstica em geral, para que técnicos e executores políticos pudessem servir-se do livro como instrumento de consulta. Está implícita em todo o livro a crítica ao poder, às práticas mais reprováveis dos poderes.

Em Angola, "há um processo de desarticulação institucional que tem a idade da independência", pois " a administração portuguesa das colónias, mesmo no que se referia aos papéis do exercício mais modesto, foi sempre consignada a portugueses, que se vieram embora. (...) A guerra é uma consequência de um processo que antecede o do exercício do poder pelos angolanos."

"Estou a chamar a atenção para uma Angola que as pessoas não sabem que existe porque a atualidade de Angola é de tal forma confrangedora que as pessoas só se detêm nos aspectos catastróficos. A Angola de hoje é uma coisa geograficamente de tal forma insularizada e de difícil circulação que as pessoas acabam por se ocupar só de Luanda. Esquecem-se que Angola é vasta e tem angolanos... lá no fim...! que por razões culturais, como é o caso dos Kuvale, ou por razões de actualidade político-militar, vivem em situações de grande isolamento, que reabilitaram sistemas de produção, de circulação económica que até implicam dispositivos de troca...  São estes processos que me interessam. À medida que o mundo cumpre a globalização, de que vocês tanto falam, há processos de insularização em curso, que desligam as pessoas, mas ao mesmo tempo lhes garantem a sobrevivência. E são tão angolanos como os outros! E raramente são tidos em conta: quer pelos poderes nacionais quer pela chamada assistência humanitária, que normalmente não atende à especificidade das populações e, a coberto de uma acção que pressupõe um resultado positivo, introduz formas que se revelam negativas para as populações. Tudo isto acontece, tudo isto é referido aqui.

 Sobre o mundo Kuvale:

Toda a gente come, a redistribuição é um facto, há gente mais rica e gente mais pobre, mas do comportamento dos ricos consta a componente intrínseca de distribuir a sua riqueza. Entre estes pastores, há famílias que detêm milhares de cabeças de gado; há outras que detêm dezenas ou unidades. Mas, de uma maneira geral, todos acabam por comer da mesma maneira.

Por todo o mundo os ricos ostentam a sua riqueza, não há acumulação que não vise exibir-se... No caso destas populações, a exibição da riqueza passa pela redistribuição, um homem é mais prestigiado quando alimenta mais gente, quando da riqueza pode extrair vantagem e destaque social através da sua capacidade de dar, não de acumular.

Todos os anos os homens ricos matam pelo menos dois, três bois, que partilham com toda a vizinhança. Essa é a diferença fundamental! Enquanto os homens ricos de Luanda acumulam automóveis nos quintais, os homens ricos pastores que eu trato acumulam bois de que depois fazem beneficiar as pessoas que estão à volta.

Eu posso ter que sair de Angola, no dia em que sair fechei o escritório, não falarei mais de Angola. Angola não é uma coisa que a História destinou à extinção e de que nós sabemos tudo porque extraímos uma leitura. Não! Angola vive, pulsa, é maior do que as situações que lhe assistem. Era maior do que a condição colonial que lhe estava imposta, hoje é maior do que a situação de catástrofe que vive.

A raça dos bois kuvale corresponde a uma matriz dos bovinos de toda a África. São os sanga, descendentes em linha directa dos "Bos primogenitus", que dá o "Bos taurus" (bois sem bossa) e o "Bos indicus" (com bossa).

Durante 4, 5 meses percorre o Namibe, que define como um óptimo sítio para ficar velho.

"Em relação à produção literária, o que me interessa na escrita são os seus elementos denotativos. E a poesia militante é, quase sempre, conotativa e, muitas vezes (o que sempre a diminui!), demonstrativa. Mas pode de facto acontecer que através dela se produza, por diversas razões, conjunturais e não só, um tal grau de exaltação no leitor que lhe assegure o efeito de "revelação" sobre a "causa" que o poeta, independentemente da qualidade do poema, quis cantar e apoiar. Foi o que aconteceu comigo.”

"É verdade que a adopção de um estilo literário, ficional, no discurso antropológico não é novidade. Já não o era quando Geertz e seus seguidores mais radicais, em Writing Cultures, assumiram a etnografia como uma forma de escrita e os antropólogos como um tipo de autores: Lévi Strauss nos seus Tristes Trópicos, Michel Leiris e Georges Balandier nas suas Áfricas ( para o primeiro uma Afrique Fantôme, para o segundo uma Afrique Ambigüe) já o haviam feito, tentando escapar aos constrangimentos que o figurino de uma ciência moderna impunha à tradução difícil das realidades culturais (...)

Mas, em Vou lá Visitar Pastores, Ruy Duarte de Carvalho transcende tudo isto e todos eles: turistas, viajantes, ficcionistas e etnógrafos de caderno de campo em punho e diário no bolso. Ele consegue, aqui, o milagre de uma "antropologia doce". Uma antropologia que, sem qualquer ingenuidade, se reconhece e transcende recuperando formas discursivas que estiveram, afinal, na sua origem, para se impor em novo formato.

O verdadeiro milagre reside na capacidade de imposição de um olhar antropológico (sub-repticiamente exclusivista, diga-se), sem fazer recurso evidente aos elaborados alicerces de uma ciência clássica - que apesar de tudo, está lá nos bastidores (nas entrelinhas, nas referências múltiplas e cruzadas, nas perspectivas poliédricas, no glossário, no postscriptum) - mas antes ressuscitando a sua vocação original mais universalista e humanista (...)

 Obra:

Poesia:

1972 Chão de Oferta, Luanda, Culturang ((prémio Motta Veiga de Poesia, Luanda, Angola, 1972)

1976 A Decisão da Idade, Luanda/ Lisboa, União dos Escritores Angolanos/Sá da Costa Editora

1978 Exercícios de Crueldade, Lisboa, “e Etc.”

1980 Sinais Misteriosos... Já se Vê..., Luanda/ Lisboa, União dos Escritores Angolanos/ Edições 70 (menção honrosa, Exposição dos Livros Mais Belos do Mundo, Leipzig)

1982 Ondula, Savana Branca, Luanda/ Lisboa, União dos Escritores Angolanos/ Sá da Costa Editora

1987 Lavra Paralela, Luanda, União dos Escritores Angolanos

1988 Hábito da Terra, Luanda, União dos Escritores Angolanos (prémio Nacional de Literatura, 1989)

1992 Memória de Tanta Guerra, Lisboa, Editora Vega

1997 Ordem de Esquecimento, Lisboa, Quetzal Editores

2000 Lavra Reiterada, Luanda, Edições Nzila

2000 Observação Directa, Lisboa, Livros Cotovia

2005 Lavra (poesia reunida 1972-2000), Lisboa, Livros Cotovia

Narrativa:

1999 Vou lá visitar pastores, Lisboa, Livros Cotovia

2003 Actas da Maianga, Lisboa, Livros Cotovia

2007 Desmedida, Luanda/São Paulo - São Francisco e Volta/Livros Cotovia

Ficção:

1977 Como se o Mundo não Tivesse Leste, Luanda/ Porto, UEA/Limiar

2000 Os Papéis do Inglês, Lisboa, Livros Cotovia

2005 As paisagens Propícias, Lisboa, Livros Cotovia

2009 A Terceira Metade, Lisboa, Livros Cotovia

Ensaio

1980 O Camarada e a Câmara, cinema e antropologia para além do filme etnográfico, Luanda, INALD

1989 Ana a Manda – os Filhos da Rede, Lisboa, IICT

1997 A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita – Fitas, Textos e Palestras, Luanda, INALD

1997 Aviso à Navegação – olhar sucinto e preliminar sobre os pastores Kuvale, Luanda, INALD

2002 Os Kuvale na História, nas Guerras e nas Crises, Luanda, Edições Nzila -

2008 A Câmara, a escrita e a coisa dita, Lisboa, Livros Cotovia

Filmografia

1976 - Uma Festa para Viver, 40', p/b, 16mm, TPA

1976 - Angola 76, É a Vez da Voz do Povo (série de 3 episódios documentais, 100’, p/b, 16 mm, TPA)

1976 - Faz Lá Coragem, Camarada, 12O', p/b, 16 mm, TPA

1976 - O Deserto e os Mucubais, 2O', p/b, 16mm, TPA

1979 - Presente Angolano, Tempo Mumuíla (série de 10 episódios documentais, cerca de 6 horas, p/b e cor, 16 mm, TPA)

1982 - O Balanço do Tempo na Cena de Angola, 45', cor, 16 mm, IAC

1982 - Nelisita: narrativas nyaneka, 7O', p/b, 16 mm, IAC

1986 - Videocarta para o meu irmão Antoninho. 40', cor, video, Maritimo futebol clube da Samba.

1989 - Moia: o Recado das Ilhas, 90’, cor, 35 mm, Madragoa Filmes / Gemini Films


Sem comentários:

Enviar um comentário