Antero de Quental

Antero de Quental
«Queria reformar tudo, eu que nem sequer estava a caminho da formação de mim mesmo.» A. Quental
Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada no ano de 1842 e aí se suicidou no dia 11 de Setembro de 1891, num banco do campo de S. Francisco[1]. Talvez em consequência de desinteligência com sua irmã, Ana de Quental[2], a propósito do seu testamento. Elaborou dois. Um, em 1880, em que nomeava herdeiras Albertina e Beatriz Meireles, filhas do falecido e grande amigo, Germano Meireles. Em 1890, em que designa a família como herdeira legítima.
Formação
O curso superior que tirou em Coimbra não o conduziu a uma carreira, pois inspirado pelos ares socialistas da época, quis fazer-se operário e alistar-se no «grande exército do proletariado». Esta convicção vagamente socialista e anarquista, que o torna um cidadão do mundo,  inconstante e nómada, sempre entre os Açores e Portugal continental e ainda Paris e outros lugares.
Nesta época, o seu interlocutor privilegiado era António de Azevedo Castelo Branco.
Leituras matriciais: Lamartine, Victor Hugo, Alexandre Herculano, Soares dos Passos,  Michelet (1798-1874); Proudhon (1809-1865); Renan (1823-1890).

Poesia e revolução
Os poemas de Antero criam um universo regido por Ideias-Abstracções como o Bem, a Essência, a Ideia, a Consciência, inscrevendo esta poética na tendência idealista no sentido hegeliano do termo. O discurso poético é ainda tradicional (ou romântica) porque não dá conta da dúvida existencial.  Romantismo de cariz social oposto ao romantismo retórico e oficial predominante na década de 50, contra o qual Antero combate (Questão Coimbrã / panfleto Bom Senso e Bom Gosto contra Castilho. Escreve a poesia na juventude, afirmando-se como Voz da Revolução.
Será sempre «o espírito humano» que inspira o poeta; é por isso que a sua poética é regida por Ideias-Abstracções, porque o lhe interessa é a transformação do mundo. Se as Odes Modernas são a poesia como desejo da revolução numa projecção para um futuro social que acabou por se desvanecer, Sonetos Completos são uma afirmação poética da Decepção quando a revolução naufraga e as vozes da inovação se calam.
De acordo com João Gaspar Simões, é a partir de Oaristos de Eugénio de Castro que a poesia se emancipa da tradição nacional.

 Ideologia
Socialismo vs liberalismo. No plano da fundamentação da Natureza e da caminhada humana, o transformismo e o evolucionismo pondo em causa, de modo drástico, a quase estabilidade milenária da teologia e da filosofia cristãs de essência criacionista.
A actividade política de Antero foi intensíssima entre 1868 e 1873: «Fui durante uns 7 ou 8 anos uma espécie de pequeno Lassalle e tive a minha hora de vã popularidade.»
Em 1879, aceitou uma candidatura pelo Partido Socialista, porque se revê nas suas próprias ideias.
Já o avô e o pai, André de Quental e Fernando de Quental se haviam distinguido na política: o primeiro, além de grande amigo de Bocage, foi um dos chefes da revolução liberal em S. Miguel, eleito em 1821 deputado às Cortes. De Fernando de Quental bastava dizer que foi um dos «bravos do Mindelo». Do lado materno (Maia) também se deve referir o comandante José Carlos da Maia – segundo primo de Antero – assassinado no 19 de Outubro de 1821.[3] Existe ainda no seu passado, o peso da figura mística de Frei Bartolomeu de Quental (1626-1698), fundador da Congregação do Oratório em Portugal.
Amizade
Maiores amigos: Oliveira Martins, João Lobo de Moura (magistrado esquecido), Jaime Batalha Reis, João de Deus, Alberto Sampaio, os irmãos João e Francisco Machado de Faria e Maia. Ver ainda Germano Meireles (morre em 1877) e António de Azevedo. E Jaime de Magalhães Lima (que sempre se considerou seu discípulo)

Ainda Antero
«Se no poemetos depois reunidos em Primaveras Românticas ou Raios de Extinta Luz ainda se mostrara romântico à velha maneira, nas Odes Modernas abre Antero uma poesia cheia de preocupações sociais, morais e filosóficas. (…) os Sonetos são não só um livro único entre nós, como um dos mais belos livros de versos que possa escrever um poeta por igual dotado de lucidez crítica e imaginação metafísica.» José Régio
*
«Muitos dos que especulam sobre a morte de Antero pouco ou nada leram do que ele escreveu. Desconhecem em absoluto as Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa, nunca folhearam os 4 volumes da Questão Coimbrã, obra imprescindível de Alberto Ferreira e Maria José Marinho, não leram a Filosofia da Natureza dos Naturalistas ou as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do séc. XIX. Não conhecem o seu percurso político, os escribas ideológicos, os artigos, tantos, que deixou dispersos por tantos jornais.» Ana Maria Almeida Martins
O Grupo dos cinco em 1884: Eça, Oliveira Martins, Antero, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro.

Oliveira Martins, na introdução aos Sonetos de Antero, pretendeu, segundo a sua cronologia, integrá-los em 4 fases distintas:
1ª Fase, de 1860 a 1862 (entre os 18 e os 20 anos) – contém, em embrião, todas as outras fases.
2ª Fase, de 1862 a 1866, é a mais original artisticamente.
3ª Fase, de 1864 a 1874, os anos combativos. É a época em que Antero é niilista como filósofo e anarquista como político.
4ª Fase, de 1880 a 1884. Época em que Antero destrói as suas poesias lúgubres e fala de paz. O NIRVANA.

De acordo com Oliveira Martins, «o Nirvana é o céu do budismo, a religião mais filosófica e menos fantasmagórica inventada pelos homens. É por este motivo que o budismo atrai hoje em dia todos os espíritos a um tempo racionalistas e místicos (…) o Não-Ser é, segundo a metafísica contemporânea, a essência de tudo o que existe. O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades, aspectos fugitivos, que só se tornam verdades racionais quando nos aparecem despidas de todos os acidentes. E como é pelos acidentes apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade verdadeiramente e em si é Nada. Religiosamente, Nada é igual a Nirvana; e o budismo é a única religião que atingiu esta conclusão, sumária do pensamento científico moderno. O Nirvana é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as condições de realidade, condições que os limitam distinguindo-os entre si, adquirem a não realidade ( o não contingente) e com ala a existência absoluta e a absoluta liberdade. Essa liberdade é o tipo e a essência da vida espiritual; o Nirvana, puro Não-Ser para a inteligência, é, para o sentimento moral, o símbolo e o veículo de toda a perfeição e virtude: radicalmente negativo na esfera da razão, é, na esfera do sentimento, absolutamente afirmativo. O pessimismo torna-se desta forma um optimismo gigantesco; toda a inércia é condenada, e o sistema das coisas, agitando-se, movendo-se na direcção do aniquilamento final, move-se e agita-se no sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva até atingir a plenitude.»

1865
Janeiro de 1865, Antero defronta-se e confronta-se com o Catolicismo tal como ele era assumido pelo Papado: Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX Contra a Chamada Opinião Liberal – Considerações Sobre Este Documento.
Pouco depois, no seu primeiro escrito de índole filosófica parafraseia Bible de L’Humanité, de Michelet (1798-1874).
Em Abril, dá a público «O Sentimento da Imortalidade»
Em Agosto, lança As Odes Modernas, livro que desencadeia A Questão Coimbrã. Termina o ano com os opúsculos Bom Senso e Bom Gosto (Novembro) e A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais (Dezembro).
1866
Artigos de índole filosófica: Espontaneidade; O Futuro da Música ( provavelmente escritos em 1865)
No imaginário anteriano, poesia e filosofia foram sempre – e de 1865 a 1885 – formas gémeas ou de matricial convergência da mesma inquietude fundamental.
Em “Arte e Verdade” intimamente ligado ao tónus eufórico de Odes Modernas, «Religião, Arte e Ciência constituiriam tríade fundamental da evolução do processo humano.” Ora, segundo, por esse tempo, pensava Antero, só à Arte cabia a «harmonia superior», uma arte que se apresentava como a Verdade feita Vida.[4]
1868
Portugal Perante a Revolução de Espanha – Considerações sobre o Futuro da Democracia Portuguesa no Ponto de Vista da Democracia Ibérica
1871
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos.
Nestas 2 obras (O Futuro da Música): o porvir implica a morte do passado nas suas sobrevivências presentes mesmo que se trate da independência nacional portuguesa ante a Ibéria ou do Cristianismo ante o Socialismo.
Entre 1871 e 1875, Antero tenta redigir o Programa Para os Trabalhos da Geração Nova.
 A vida e a obra de Antero de Quental
«Não há na sua arte lugar para a descrição. Tudo é psicológico e subjectivo (…) A sua palavra tem uma dupla função a desempenhar: aquela que procura a estabilidade interior e outra que visa a intervenção no tecido social, um sinal profético do Universo. (…) Entre 1862 e 1866, escreveu Antero os mais líricos dos seus versos. O amor a uma donzela, ainda sua familiar, é um dos motivos. Por ele se recupera a Natureza e se eleva o Desejo. O coração que desencadeia “sonhos loucos” acaba no mar, em “sepultura romântica”. Nas Odes Modernas ficou bem explícita a dualidade vivida por Antero. O mundo é visto, ali, bipartido e confrontado com lutas entre forças opostas: o passado e o futuro, a liberdade e a opressão, a luz e a sombra, os ricos e os pobres. Apesar da sua prática revolucionária e do seu empenho em acompanhar as lutas socais, Antero privilegia a vida contemplativa. Nos sonetos «Tese e Antítese», põe em causa o valor da «nova ideia», das lutas e combates de «século irritado e truculento». Ele reconhece que é nas lutas dos oprimidos que se encarna a ideia, mas esta vale enquanto pensamento, «inalterável», ideia que não é «fogo», mas «luz».»[5]
«Antero de Quental, mentor e motor desta “geração nova”, foi, entre todos, o que se mostrou mais crítico, mais reticente e mais contraditório em relação ao modelo francês. (…) Se bem que inicialmente iberista, para ele, como, aliás, para Eça, a Espanha não podia servir, por razões históricas muito antigas, de modelo profícuo, embora a sua iniciação teórica no internacionalismo o tenha feito ver o mundo com outros olhos, pela luta dum federalismo desejável e possível na fraternidade europeia e particularmente ibérica, porque mais facilmente realizável. (…) Restava ainda na Europa um outro modelo muito vivo e orgulhoso: o germânico, que, em certos momentos da evolução do pensamento anteriano, se apresentou como um produto superior do espírito das nações. Batalha Reis registou, a propósito da guerra franco-prussiana e da desastrosa derrota das tropas francesas, este desabafo de Antero: «que raça! que raça! O futuro pertence ao germanismo: Amigo, é preciso saber alemão.» E o mesmo cenaculista acrescenta que se puseram logo a ler Goethe, Heine e Ruckert. Antero fizera até do seu conhecimento da língua alemã um título de glória, que não poderia ser exibido pelos outros membros do seu grupo, especialmente Teófilo de Braga, que citava textos dessa língua sem a conhecer. O germanismo desta geração era frouxo e em segunda mão, porque filtrado pela França. Heine, um dos poetas alemães mais imitados e traduzidos em Portugal, era um Heine nacionalizado pela França (…) Se a metafísica nebulosa de que Pinheiro Chagas acusava as Odes Modernas ( e a crítica que a elas fizera Germano Meireles) tinha uma matriz germânica indiscutível, dado o hegelianismo confesso de Antero, não demorou que ele voltasse a preferir o universalismo francês ao particularismo do messianismo germânico. (…) Se é verdade que o pensamento histórico anteriano tem profundas raízes em Michelet, o seu pensamento social é de inspiração proudhoniana (…) sobretudo é no socialismo humanitário de Proudhon que ele radica as bases da sua acção. (…) No seu empenhamento político com José Fontana e com a Internacional, Antero esteve sempre do lado do socialismo, tanto mais humano quanto mais utópico, pelo que o alemão Karl Marx, teorizador da Primeira Internacional Operária lhe merecia, senão muitas reservas, pelo menos uma incompatibilidade estrutural, resultante da sua consciência de proprietário rural que vivia das suas rendas e da malograda experiência que fizera no operariado como tipógrafo em Lisboa e em Paris,  -experiência  que ele contou no número das suas maiores frustrações no domínio da vida activa. O socialismo messiânico de Proudhon, sem greves, a realizar não por proletariado ascendente, mas pela mão de algum César iluminado, utópico no plano económico e social, anarquista em política e idealista em filosofia, ajustava-se mais à idiossincrasia de Antero, federalista e abstencionista, já distanciado do republicanismo de Teófilo de Braga.[6]
*
Albertina e Beatriz são as duas filhas adoptivas de Antero. O grande amigo Germano Meireles faleceu em Dezembro (?) de 1877, deixando 2 órfãs – uma de ano e meio e outra que nasceria 4 meses depois. Em Dezembro de 1879, Antero alugou casa na Calçada de Santana, nº 207, 3º andar. (…) Foi nessa época que decidiu começar a organizar o Tesouro Poético da Infância porque o preocupava a pobreza nacional em matéria de Literatura Infantil. (…) escreveu 23 sextilhas – As Fadas -, destinadas às crianças. (…) A 11 de Junho de 1880, escreveu o primeiro testamento.[7] Deixava a herança às filhas adoptivas. Testamento encontrado em 1987, na Biblioteca Marciana de Veneza. (…) Entretanto, Antero havia feito novo testamento, a 9.9.1890. Deixava a herança aos sobrinhos; a parte remanescente ficaria para as filhas adoptivas. (…) A preocupação quanto ao futuro de Albertina e Beatriz, a incerteza em que as deixava quando concluiu não lhe ser possível permanecer na ilha, nem trazê-las imediatamente de volta, poderá ter sido a gota de água que precipitou o 11 de Setembro de 1891.[8]
*
O fascínio pela actividade tipográfica desde o Verão de 1865 levou-o a imprimir, na imprensa da Universidade de Coimbra, como edição de autor, as suas Odes Modernas[9].  Entre 1 de Junho e 15 de Agosto de 1866 terá entrado para a Imprensa Nacional. Lá terá trabalhado durante 3 a 4 meses. (…) À semelhança de Proudhon (falecido em 1865), opta por ser tipógrafo em Paris, em 1866-1867 (talvez, no Siècle). Talvez, não se tenha tratado da «experiência proletária», como avançou António Sérgio. Manuel Cadafaz de Matos, DN, 12 de Maio de 1991.
 
Bibliografia
Cartas de Antero de Quental, Univ. Coimbra, 1915 (160 cartas); ed. De 1921 (183 cartas)
José Bruno Carreiro, Biografia de Antero
António Sérgio reuniu em 1957 um volume de Cartas (assunto de natureza filosófica)
António Salgado Júnior publicou o volume Prosas da Época de Coimbra.
Ana Maria Almeida Martins, Fotobiografia de Antero, IN-CM
Ana Maria Almeida Martins, Cartas de Antero a Alberto Sampaio, ed. Jornal
Ana Maria Almeida Martins, Cartas de Vila do onde  
Ana Maria Almeida Martins, Cartas, Universidade dos Açores (704 cartas). Apresentadas por ordem cronológica. 2 volumes: o 1º vai de 1852 a 1881; 2º, de 1881 a 1891.
Sousa Martins, Nosografia
Jaime Batalha Reis, Crónicas da Revista Inglesa (recolha da Drª Maria José Marinho)
 
Notas:
·         A Revista Dois Mundos era dirigida em Paris por Salomão Sáragga.
·         Em 1867, Antero visitou Michelet sob o pseudónimo de Bettencourt. Ofereceu-lhe as Odes Modernas
·         Em 1880, Antero foi hostil às comemorações do tricentenário da morte de Camões, bem aproveitadas pelos republicanos, com os quais se incompatibilizara, para fins de pura propaganda política: «a burguesia pode, por ostentação, levantar uma estátua a Camões, mas o povo português, esse não sabe soletrar o título do poema que o poeta consagrou às suas glórias.» (…)
[1]  - Largo 5 de Outubro (?).
[2]  - ver Cartas à irmã.
[3] - Entrevista conduzida por Cecília Barreira a Ana Maria Almeida Martins, DN, 19 Nov. 1989.
[4] - Joel Serrão, DN 12 de Maio de 1991.
[5] - António Sérgio Silva, DN de 12 de Maio de 1991.
[6] -Ferreira de Brito, DN, 12 de Maio de 1991
[7] - À data, morava na Rua da Fé, nº 19.
[8] - Ana Maria Almeida Martins, DN, 12 de Maio de 1991.
[9] - Aí se respira, na expressão de Vítor de Sá, «um bafo quente de amor e de liberdade».



                                                - «Mais te valera, nu e sem defesa,
                                                Ter nascido em aspérrima solidão,
                                                Frio e cruel da mais cruel devesa,
                                                Do que embalar-te a Fada da Beleza,
                                                Como embalou, no berço da Ilusão!
                                               Silenciosa e triste, ter passado
                                               Por entre o mundo hostil e a turba vária,
                                                (Sem ver uma só flor, das mil que amaste)
                                                Com ódio e raiva e dor… que ter sonhado
                                                Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -


«Em Antero [de Quental] há duas faces ininterruptas de um mesmo ser moral: a face do sentimento pessimista espontâneo, inspirado pela realidade imediata e lúgubre (doença, ambiente pátrio, etc.), e a do esforço mental do filósofo e místico, que procura subordinar o sentimento mórbido a uma teoria da existência espiritualista e válida. (…) Quanto a nós, os temas fundamentais são os seguintes: o da expressão lírica do amor-paixão, na juventude do poeta; segundo: o do apostolado social, revolucionário; terceiro: o do sentimento pessimista; quarto: o do desejo de evasão (evasão para o céu, ou para a acção, ou para o sonho, ou para desapego místico ou filosófico); quinto: o da Morte (ligado ao anterior), em que o sentimento pessimista do grande enfermo se manifesta pelo desejo e “elogio” da morte, e pelo seu tentame de justificação filosófica desse sentimento espontâneo e natural; sexto: o do problema de Deus (distinto do tema sentimento religioso); sétimo: o da Metafísica e da Ética; oitavo: o do Amor “sagrado”, “puro”, “sempiterno”, quer dizer: o das Solemnia Verba, da justificação da vida por esse “amor sagrado”, pela “comunhão ideal no eterno Bem”.» António Sérgio, Sonetos de Antero de Quental, colecção de clássicos Sá da Costa.
 
1.       Tomando como ponto de partida a proposta de temas fundamentais apresentada por António Sérgio, elabora um comentário global de UM dos sonetos de Antero:
 
ESPECTROS
Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados,
Me encheis as noites de agonia e susto!
 
De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia à mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,
 
Se a minha alma há-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,
 
Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!
 
                         ANIMA MEA
 
Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.
 
Era de ver a fúnebre bacante!
Que torvo olhar! Que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo Mundo Errante?»
 
- «Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).
 
Eu não busco o teu corpo… Era um troféu
Glorioso de mais… Busco a tua alma.» -
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»
************************************************************************
 
       Poesia de Antero de Quental

NA MÃO DE DEUS

Na mão de Deus, na sua mão direita
Descansou afinal meu coração
Do Palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
 Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
 Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
 Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
 
SOLEMNIA VERBA
 Disse o ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos…
 
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz da Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!
 
Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,
 
Respondeu: Desta altura veja o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.
 
À VIRGEM SANTÍSSIMA
 Um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…
 
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza…
 
Um místico sofrer… uma ventura
Feita só de perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…
 
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!
 
O CONVERTIDO
 Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o fulgor, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.
 
Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel  e de impureza…
Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,
Deu-me rebate o coração contrito!
 
Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!
 
Amortalhei na fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e no esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe…
 
* Fado Socialista (enaltece a acção política de Antero de Quental e de José Fontana)
Lutemos pelo ideal
D’onde o nosso bem dimana,
Sigamos José Fontana
E Antero de Quental;
Abaixo o vil capital
Inimigo da igualdade,
Haja solidariedade
Sigamos um trilho novo,
Avante, filhos do povo,
Soldados da liberdade!
In História do Fado, de Pinto de Carvalho, 1903
                                                                      
                                    Allein im Innern leuchtet helles Licht.
                                                           Goethe, Faust
 
                                                    PANTEÍSMO
 
                                    Aspiração... desejo aberto todo
                                    Numa ânsia insofrida e misteriosa...
                                    A isto chamo eu vida: e, deste modo,
 
                                    Que mais importa a forma? silenciosa
                                    Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
                                    Em homem igualmente e astro e rosa!
 
                                    A própria fera, cujo incerto passo
                                    Lá vaga nos algares[1] da devesa[2],
                                    Por certo entrevê Deus - seu olho baço
 
                                    Foi feito para ver brilho e beleza...
                                    E se ruge, é que a agita surdamente
                                    Tua alma turva, ó grande natureza!
 
                                    Sim, no rugido há uma vida ardente,
                                    Uma energia íntima, tão santa
                                    Como a que faz trinar a ave inocente...
 
                                    Há um desejo intenso, que alevanta
                                    Ao mesmo tempo o coração ferino,
                                    E o do ingénuo cantor que nos encanta...
 
                                    Impulso universal! forte e divino,
                                    Aonde quer que irrompa! é belo e augusto,
                                    Quer se equilibre em paz no mudo hino
 
                                    Dos astros imortais, quer no robusto
                                    Seio do mar tumultuando brade,
                                    Com um furor que se domina a custo;
 
                                    Quer durma na fatal obscuridade
                                    Da massa inerte, quer na mente humana
                                    Sereno ascenda à luz da liberdade...
 
                                    É sempre a eterna vida, que dimana
                                    Do centro universal, do foco intenso,
                                    Que ora brilha sem véus, ora se empana...
 
                                    É sempre o eterno gérmen, que suspenso
                                    No oceano do Ser, em turbilhões
                                    De ardor e luz, evolve[3], ínfimo e imenso!
 
                                    Através de mil formas, mil visões,
                                    O universal espírito palpita
                                    Subindo na espiral das criações!
 
                                    Ó formas! vidas! misteriosa escrita
                                    Do poema indecifrável que na Terra
                                    Faz de sombras e luz a Alma infinita!
 
                                    Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
                                    Rolai, ondas sem praia, confundindo
                                    A paz eterna com a eterna guerra!
 
                                    Rasgando o seio imenso, ide saindo
                                    Do fundo tenebroso do Possível,
                                    Onde as formas do Ser se estão fundindo...
 
                                    Abre teu cálix, rosa imarcescível![4]
                                    Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
                                    Ergue tu, águia, o voo inacessível!
 
                                    Ide! crescei sem medo! não é avara
                                    A alma eterna que em vós anda e palpita...
                                    Onda, que vai e vem e nunca pára!
 
                                    Em toda a forma o Espírito se agita!
                                    O imóvel é um deus, que está sonhando
                                    Com não sei que visão vaga, infinita...
 
                                    Semeador de mundos, vai andando
                                    E a cada passo uma seara basta
                                    De vidas sob os pés lhe vem brotando!
 
                                    Essência tenebrosa e pura... casta
                                    E todavia ardente... eterno alento!
                                    Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
                                    Choras na voz do mar... cantas no vento...
                                    Odes Modernas ( 1865-1874)
                                               Antero de Quental ( 18.04.1842 – 11.09.1881 ) 
                                        
             Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho
      Ex.mo Sr. - acabo de ler um escrito[5] de V. Ex.ª, onde, a propósito de faltas de bom senso e de bom gosto, se fala com áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes ilustres[6] se cita o meu, quase desconhecido e sobretudo desambicioso.
                Esta minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobremaneira diminuta: enquanto que, por outro lado, a minha despreocupação de fama literária, os meus hábitos de espírito e o meu modo de vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta tão indiferente, que é como que se a nada a reduzíssemos.
                Estas circunstâncias pareceriam suficiente para me imporem um silêncio, ou modesto ou desdenhoso. Não o são, todavia. Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentíssima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo ínfimo, na brilhante falange das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso também falar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste tempo de conveniências, de precauções, de reticências - ou, digamos a cousa pelo seu nome, de hipocrisia e falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das misérias duma posição a que não pretendo, posso falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades desse mundo tão estranho para mim, atravessando por meio delas e saindo puro, limpo e inocente.
                A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave e mais obrigatório, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muita vez, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a verdade se ofendessem com V. Ex.ª ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das ínfimas questiúnculas literárias dum ignorado canto da terra, a que ainda se chama Portugal. 
                Não é isso que as ofende. Mas as ideias que estão por detrás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas miseráveis representam; uma grande doença moral acusada por uma pequenez intelectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, desta terra, reveladas pelas misérias, tão merecedoras de desprezo, dos que cuidam dominá-la; isso é que aflige excessivamente a razão e o sentimento, o que prende o olhar ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas;  isso é que levanta esta questão do raso das personalidades para a elevar até à altura duma questão de princípios e que dá às ridículas chufas, que entre si trocam uns tristes literatos, todo o valor duma discussão de filosofia e de história.
                Sim, Ex.mo Sr. Eu não sei se V. Ex.ª tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a inteligência dos hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em lhe faltando uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes - a boa fé.
                À luz dela, porém, eu hei-de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Exa., dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex.ª.
                Porque é uma acção desonesta. O que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo V. Ex.ª o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião literária menos provada, uma concepção poética mais atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito duma literatura desaforada que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grãos-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes herejes das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima não lhes escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsável por seus actos e palavras...    
                Agora quem move estes ridículos combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espírito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam - nós só lhe queremos puxar as orelhas!
                Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os herejes da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua retidão moral, do atentado da sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez  moral e intelectual.
                V. Ex.ª, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas também pequena e miseravelmente feita. Mas é que a escola de Coimbra cometeu efectivamente alguma cousa pior do que um crime - cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do espírito público, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é a falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. Porquê? Porque todos os outros crimes eram contra as ideias: haveria sempre um perdão para eles. Mas esta falta era contra as pessoas: e essas tais são imperdoáveis. Inovar é dizer aos profetas, aos reveladores encartados: "há alguma cousa que vós ignorais; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; há mundo além do círculo que se vê com os vossos óculos de teatro; há mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobretudo do que os vossos livros e os vossos discursos". Isto, sim, que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante e ímpio e subversivo! Contra isto, sim, às armas, ergamo-nos na nossa força, mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos três folhetins e um prólogo!
                V. Ex.ª fez-se chefe desta cruzada tão desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pêsames por tão triste papel. Mas se eu, como homem, desprezo e esqueço, como escritor é que não posso calar-me; porque atacar a independência do pensamento, a liberdade dos espíritos, é não só ofender o que há de mais santo nos indivíduos, mas é ainda levantar mão roubadora contra o património sagrado da humanidade - o futuro. É secar as nascentes da fonte onde as gerações futuras têm de beber. É cortar a raiz da árvore a que os vindoiros tinham de pedir sombra e sossego. É atrofiar as ideias e os sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.
                O contrário disto tudo é que é a bela, a imensa missão do escritor. É um sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras. Para isso toda a altura, toda a nobreza interior são pouco ainda. Para isso toda a independência de espírito, toda a despreocupação de vaidades, toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades, nunca será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros o caminho da nau por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o coração limpo de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e  busca o bem, o belo, o verdadeiro.
                Este é o escritor, o poeta,  apóstolo. Se o obrigassem a respeitos convencionais, a terrores supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do pantheon literário; ele, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força própria, servo de ideias alheias e apóstolo apenas de palavras decoradas e vazias de alma. Como se havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus olhos fossem uns como faróis para todos os outros olhos, a sua fronte como uma montanha de luz; tão alto que as palavas de sua boca caíssem sobre as cabeças como uma chuva benéfica  fecundante? Seria depois das provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da iniciação no grémio dos senhores, seria um aleijão e não gigante, um aborto em vez de herói e, e vez de sobr[e]exceder a todos com a fronte, andaria sumido entre eles, visitado escassamente pelo sol e pela luz. Ele, que não soubera procurar para si o  seu caminho, como poderia ele alumiar o dos outros? Ele, humilde, como ensinaria a altivez e a dignidade? Respeitador de conveniências estéreis, como daria o exemplo das revoltas fecundas? Sem alma, como a insuflaria no peito dos tristes e humilhados? Sem vontade, como resistiria às tiranias da opinião omnipotente, ao capricho dos grandes, às ambições, às tentações?
                As grandes, as belas, as boas cousas só se fazem quando se é bom, belo e grande. (...)
                Antero de Quental, Bom Senso e Bom Gosto, 1865    

[1] - poço ou abismo natural; gruta; despenhadeiro; barranco
[2] - mata ou arvoredo em quinta ou cerrado; campo fértil na margem dum rio.
[3] - suceder ou realizar-se por evolução; evolucionar.
[4] - que não murcha; imperecível.
[5] - No livro do Sr. Pinheiro Chagas - Poema da Mocidade.
[6] - Os Srs. Teófilo Braga e Vieira de Castro. 

Conferências do Casino
 
Na 2ª conferência (1871), Antero visa apresentar as causas da decadência dos povos peninsulares «porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.»
 
De acordo com o autor, antes do século XVII, a península caracterizava-se pelo «espírito de independência local, e originalidade do espírito inventivo.»
 
A perda da independência nos finais do século XVI, coincide com:
 
a)                 A transformação do catolicismo pelo concílio de Trento (moral)
b)                 o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais (político)
c)                 o desenvolvimento das conquistas longínquas (económico)
 
Ao contrário da Europa, onde predominavam a liberdade moral (exame e consciência individual), a classe média, e a indústria, na península ibérica dominavam a doutrina saída do Concílio de Trento, para a qual a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus, o absolutismo suportado pela aristocracia, e o espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.
O catolicismo, ao transformar-se numa instituição, anula a originalidade e o espírito inventivo dos povos peninsulares, utilizando para o efeito o Tribunal do Santo Ofício e o Índex, a Companhia de Jesus, tudo sob regimes absolutistas (monarquia aristocrática).
Por exemplo, para Antero, a educação é um poderoso factor de desenvolvimento, mas o monopólio da Companhia de Jesus gerou uma mentalidade retrógrada, pois o método de ensino gerava passividade e decadência nas classes elevadas e fanatismo e crueldade no povo, e, sobretudo, impedia o crescimento da classe média.
Convém não esquecer que a Inquisição perseguiu, queimou e expulsou uma parte daqueles que revelavam maior iniciativa – Judeus e Mouros.
Finalmente, Antero condena as conquistas e o espírito guerreiro que as suporta, à luz da economia política: «o espírito da idade moderna é o espírito de trabalho e de indústria: a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra esterilizadora.»
 
Presentemente, assistimos ao esmagamento da classe média e, consequentemente, à limitação da iniciativa e da originalidade locais. Tudo é regulamentado e filtrado por um aparelho legislativo e fiscalizador que nada fica a dever ao método inquisitorial. O poder continua centralizador. A educação, apesar de estar ao alcance da maioria, revela-se desajustada às necessidades organizativas e produtivas da globalização. E a igreja católica vê limitado o seu raio de ação, mas mantém-se dogmática, entregando-se a uma actividade espiritual pouco libertadora.
Se Antero se pudesse pronunciar sobre o estado actual dos povos peninsulares, começaria por afirmar que continuamos iguais a nós mesmos e que não soubemos aproveitar o exemplo dado pelos povos do Norte.
 
 Leitura da 2ª ConferênciaA Decadência
 
            “Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.”
 
            “O pensamento destas Conferências: não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las.”
 
            A raça peninsular, antes do séc. XVII, caracterizar-se-ia “ pelo espírito de independência local, e originalidade do espírito inventivo.”
 
·      O instinto político de descentralização e federalismo
·      O espírito independente e autonômico das populações (...) singularmente democrático
·      O instinto do Direito agitava-se enérgico nas consciências
·      Os povos peninsulares são naturalmente religiosos: fazem a religião, não a aceitam feita
·      O nosso génio é criador e individualista: precisa rever-se nas suas criações
·      A tolerância pelos mouros e judeus, raças infelizes e tão meritórias, será sempre uma das glórias do sentimento cristão na Idade Média
·      No mundo da inteligência não é menos notável a expansão do espírito peninsular durante a Idade Média: “Em tudo isto [filosofia, poesia, teatro, arquitectura] acompanháramos a Europa, a par do movimento geral. Numa coisa, porém, a excedemos, tornando-nos iniciadores: os estudos geográficos e as grandes navegações.
 
            As razões por que “o movimento regenerador da Renascença, tão bem preparado abortou entre nós”:
 
·      A 1ª geração, enquanto ocupou a cena - até meados do séc. XVI - conservou-se à altura daquela época extraordinária de criação e de liberdade de pensamento: a filosofia neoplatónica, um estilo e uma literatura nova, o humanismo, a arquitectura manuelina, a escola de pintura espanhola
·      Porém em 50 ou 60 anos tudo se transformou: “No princípio do séc. XVII, quando Portugal deixa de ser contado entre as nações...(...) Em Portugal, é a influência inglesa, que (...) faz de nós uma espécie de colónia britânica. Ao mesmo tempo as nossas próprias colónias escapam-nos gradualmente das mãos.
·      A centralização uniforme e esterilizadora
·      O absolutismo
·      O povo emudece
·      A aristocracia palaciana impede a elevação natural de um elemento novo - a classe média
·      O espírito nacional cai naturalmente num estado de torpor e de indiferença
·      “ A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morrera dentro de nós completamente.” (27)
·      A Inquisição pesava sobre as consciências como a abóboda dum cárcere.
·      O testemunho dos casuístas dos séc. XVII e XVIII
 
            Síntese das Causas da Decadência (29)
 
1.    A transformação do catolicismo pelo concílio de Trento (moral)
2.    O estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais (político)
3.    O desenvolvimento das conquistas longínquas (económico)
 
            O que, entretanto, se passava no resto da Europa:
 
            A liberdade moral (o pensamento)® conquistada pela Reforma ou pela filosofia
            A elevação da classe média (a política)® instrumento do progresso nas sociedades modernas
            A Indústria (o trabalho)® verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. (31)
 

Europa

Península Ibérica

·      Liberdade moral (exame e consciência individual)

 

·      A classe média

·      A indústria

           

 

 

·      Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus.

·      Absolutismo, esteado na aristocracia

·      Espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio

 
            O Concílio de Trento organizou o despotismo religioso - imobilizado e intolerante. Este catolicismo data do séc. XVI, embora esta tendência venha de longe...
            Antero distingue claramente o cristianismo do catolicismo na história da religião cristã:
 
            “O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. (33)
 
           

Especificidade do catolicismo

Consequências

·      Dogma imposto

·      Intolerância religiosa

·      Ortodoxia: vitória do partido absolutista (Roma), representante do papado

·      Roma substitui o voto por nações pelo voto por cabeças, reduzindo a força das igrejas nacionais (Trento)

·      O Concílio de Trento (dominado pelos Jesuítas) estabelece:

 

1.     o pecado original - a condenação hereditária da humanidade... (39)

2.    Estabelece o dogma da Eucaristia - a presença real de Cristo no pão e no vinho

3.    Sem a confissão não há remissão dos pecados - funda-se o poder do confessionário, surgindo o director espiritual: “uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono.” (40)

4.    Torna as ordens regulares independentes dos bispos, e quase exclusivamente dependentes de Roma.

5.    Só o Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres.

6.    Põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares

7.    Um catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples...

·      Degradação dos costumes

·      Expulsão dos Judeus e Mouros

·      Oposição feroz à Reforma, e em particular, ao partido episcopal, que, em Trento, defendia:

1.    Independência dos bispos (autonomia das igrejas nacionais)

2.    Secularização progressiva do clero (casamento para os padres)

3.    Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos

·      Decadência dos povos peninsulares

 


·      Três exemplos da máquina de compressão que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento:

 

1.    A Guerra dos Trinta anos, provocada pelo partido católico...

2.    A Itália, em que o Papa se tornou no maior inimigo da unidade italiana

3.    O assassinato da Polónia (1772)

 
            “ E a nós, espanhóis e portugueses, como foi que o catecismo nos anulou?” (45)
 
           

1.    A Inquisição - um terror invisível paira sobre a sociedade.

 

 

 

 

 

 

 

2.     O Jesuitismo

·      “O ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas e imbecis” (47)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3.    O Absolutismo (a monarquia aristocrática)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4.    As conquistas

 

·      “É à luz da economia política que eu condeno as conquistas e o espírito guerreiro,” (...) porque o “espírito da idade moderna é o espírito de trabalho e de indústria: a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra esterilizadora.” (55)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

·      “Fomos nós, foram os resultados do nosso espírito guerreiro, quem condenou o Brasil ao estacionamento, quem condenou à nulidade toda essa costa de África, em que outras mãos podiam ter talhado à larga uns poucos de Impérios.” (61)

·      “O Portugal das conquistas é esse guerreiro altivo, nobre e fantástico, que voluntariamente arruina as suas propriedades, para maior glória do seu absurdo idealismo.” (61,62)

·      “Como era possível, com as mãos cheias de sangue, e os corações cheios de orgulho, iniciar na civilização aqueles povos atrasados, unir por interesses e sentimentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raças, e fundar assim, depois do domínio momentâneo da violência, o domínio duradouro e justo da superioridade moral e do progresso?” (62-63)

·      “A conquista da Índia pelos portugueses, da América pelos espanhóis, foi injustaporque não civilizou.” (63)

5.    “O abatimento, a prostração do espírito nacional, pervertido e atrofiado por uns poucos de séculos da mais nociva educação.”

 

Antero:

·       “propõe quebrar resolutamente com o passado.”

·      recusa a imitação dos actos dos antepassados, caso contrário não passaremos de espectros.

·      defende o espírito moderno: a afirmação de uma alma nova, a consciência livre, a contemplação directa do divino pelo humano, a filosofia, a ciência, e a crença no progresso...

·      propõe a “federação republicana de todos os grupos autonómicos (...) alargando e renovando a vida municipal, dando-lhe um carácter radicalmente democrático...

·      defende a “iniciativa do trabalho livre, a indústria do povo, pelo povo, e para o povo (...) espontânea (...) organizada duma maneira solidária equitativa, operando assim gradualmente a transição para o novo mundo industrial do socialismo...

·      define o espírito moderno: “O seu nome é Revolução.”

·      Porém, “revolução” não quer dizer guerra, mas sim paz... ordem verdadeira pela verdadeira liberdade... deste modo, propõe-se prevenir a insurreição, torná-la impossível.

·      A hipocrisia, vício nacional

·      A delação é uma virtude religiosa

·      A expulsão dos judeus e moiros

·      A perseguição dos cristãos-novos

·      Hostil aos índios, “impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e duradoura” (46)

 

·      impõe métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, que:

1.    esterilizam as inteligências

2.    se dirigem à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo

·      A educação jesuítica tornou:

3.    as classes elevadas máquinas ininteligentes e passivas

4.    o povo, fanático, corrupto e cruel

5.    a arte, a literatura, a religião decadentes

·      A educação jesuítica matou o “génio popular”

·      A escolha do confessor do rei passou a ser uma questão de Estado

·      D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos areais de África, pela fé católica, não pela nação portuguesa...

 

·      “O poder absoluto assenta-se sobre a ruína das instituições locais” (50), da liberdade, das nações

·      “Governava-se então pela nobreza e para a nobreza (...) pelos morgados, vinculou-se a terra, criaram-se imensas propriedades, ao lado duma enorme charneca

·      Impediu “o desenvolvimento da burguesia, a classe moderna por excelência, civilizadora e iniciadora, já na indústria, já nas ciências, já no comércio.” (53)

·      Quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciativa (do povo), impediu-o de compreender a liberdade

 

·      O efeito nefasto da epopeia guerreira, sobre a evolução dos povos peninsulares: “E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência” (54) (...) porque “o espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência.” (55)

·      “ Do reinado de D. Manuel em diante somos sustentados pelos estrangeiros”, diz Alexandre de Gusmão

·      A esmola passou a ser uma instituição

·      Tenta-se introduzir o trabalho servil, nas culturas com escravos vindos de África, como se a metrópole não fosse mais do que uma “oligarquia de senhores de roça”. (59)

·      Decadência total da indústria ... tudo era importado

·      A vida concentra-se na capital

·      O luxo

·      A paixão do jogo estendeu-se terrivelmente

·      O ócio (60)

·      Nas colónias, a escravatura, fonte de esterilização devido ao trabalho servil... “só o trabalho livre é fecundo!

 

·      Referência significativa a Bartolomeu de las Casas, bispo de Chiapa (64)

·      “Somos agora os Portugueses indiferentes do séc. XIX,” (...) “persiste a inércia política das populações” (...) “éramos mandados, agora somos governados” (...) “conservou-se o velho espírito monárquico” (...) “herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar. (...)(66)

·      “Nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas.” (67)



Questionários
I

                                          Leia o soneto. Se necessário consulte as notas.

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos.
Antero de Quental

NOTAS

hino: composição musical com letra apropriada para celebrar alguém ou alguma coisa.
prece: oração; invocação a Deus ou aos santos.
apetece (r); desejar, cobiçar.
viça (r): viceja; torna viçoso; ganha força, vigor.
arena: lugar coberto de areia, onde combatiam os gladiadores.

1.      A apóstrofe e a anáfora são dois processos estilísticos utilizados pelo Poeta para celebrar a Razão. Exemplificando, destaque a expressividade de cada um deles.
2.      Indique três propriedades da Razão que impressionam o sujeito poético.
3.      Explique o sentido dos versos “Por ti, na arena trágica, as nações / Buscam a liberdade, entre clarões
II

                                        Leia o soneto. Se necessário consulte as notas.

VOZ DO OUTONO
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza;
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Mais valera à tua alma visionária,

Antero de Quental 

NOTAS
aspérrima – muito severa, muito rigorosa.
infante – criança; filho primogénito de rei.
devesa - lugar cercado por arvoredo.
hostil – inimigo; contrário.
turba – multidão; populaça.
1.      Considerando a intencionalidade do soneto, explique por que motivo a “voz” é atribuída ao Outono.
2.      Determine, de forma fundamentada, o contraste estabelecido entre o sujeito poético e o mundo.
3.      Transcreva uma estrutura anafórica que imprime ritmo ao discurso.
4.      Classifique quanto ao tempo e modo a forma verbal sublinhada no verso “Mais valera à tua alma visionária” /

III
                                        Leia o soneto. Se necessário consulte as notas.

EVOLUÇÃO
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade…
Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Antero de Quental
NOTAS
incógnita: desconhecida; que não se dá a conhecer.
limoso: em que há limo; género de planta da família das algas.
paul: terreno alagado com água estagnada; pântano.
glauco: de tom verde claro ou verde-azulado.
pascigo: lugar onde o gado pasta; pastagem; pasto
1.      Identifique e analise a oposição passado / presente, especificando o tipo de evolução em cada um dos tempos.
2.       Comente o 1º terceto, baseando-se no valor conotativo das seguintes expressões: sombra enorme e escada multiforme.
3.      Refira a intencionalidade do Poeta ao escrever este poema.
*********************************



Sem comentários:

Enviar um comentário