Poetas do século XX

ANTÓNIO BOTTO
(1897-1959)

Cantiga de amor
O brinco da tua orelha
Sempre se vai meneando,
Gostava de dar um beijo
Onde o teu brinco os vai dando.
Tem um topázio doirado
Esse brinco de platina.
Um rubi muito encarnado,
E uma outra pedra fina.
O que eu sofro, quando o vejo
Sempre airoso meneando!
Dava tudo por um beijo
Onde o teu brinco os vai dando.

MIGUEL TORGA
(1907-1995)

Mudez
Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exatidão e força desse grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que ficasse
Toda a vida criança
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e pranto que chorasse.

Fernão de Magalhães

Fernão de Magalhães da Ibéria toda,
Alma de tojo arnal sobre uma fraga
A namorar a terra em corpo inteiro,
Consciência do fim no fim da boda,
Fernão de Magalhães que andaste à roda
De quanto Portugal sonhou primeiro:

Ter um destino é não caber no berço
Onde o corpo nasceu.
É transpor as fronteiras uma a uma
E morrer sem nenhuma,
Às lançadas à bruma,
A cuidar que a ilusão é que venceu.
Miguel Torga, Poemas Ibéricos

Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.

 Outros, felizes, sejam rouxinóis…
 Eu ergo a voz assim, num desafio:
 Que o céu e a terra, pedras conjugadas
 Do moinho cruel que me tritura,
 Saibam que há gritos como há nortadas,
 Violências famintas de ternura.

  Bicho instintivo que adivinha a morte
  No corpo dum poeta que a recusa,
  Canto como quem usa
  Os versos em legítima defesa.
  Canto, sem perguntar à Musa
  Se o canto é de terror ou de beleza.
 Miguel Torga, Orfeu Rebelde

Desfecho
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).

Qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
         
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
Miguel Torga, Câmara Ardente


Anadia, 29 de junho de 1989

      - Vim aqui ver-me exposto e explicado aos alunos de uma escola preparatória. Carinhosa e inteligentemente, de resto. E a recordar no rosto feliz de todos os professores que me rodeavam o do senhor Botelho quando publicamente me afiançava ao futuro, e a alegria de todas as crianças que me festejavam a minha própria alegria infantil nas grandes horas letivas, esqueci por instantes as agruras da via dolorosa ali patenteada. Um poeta não tem biografia. Tem destino. O meu foi talhado no dia longínquo, dum tempo que momentaneamente me pareceu abolido, em que um velho mestre convenceu um calejado pai de que uma pena letrada pesava menos do que a rabiça do arado. Não era verdade. Mas até eu acreditei. E paguei-o caro, como o demonstrava aquele estendal de provas que para os demais significava uma glorificação, e para mim era apenas um sudário esfarrapado.
 Miguel Torga, Diário XV



JORGE DE SENA
(1919-1978)

GÉNESIS
I
Afirmo e esqueço a qual serenidade
em mim persiste como a guerra breve
ao longo de anos que nenhuma neve
abrandará na terra. E tanta idade

é mera circunstância de igualdade
Infeliz neve que a si própria deve
o esforço de pousar, de não ser leve
um tempo antes do gelo. E se alguém há de

vir corromper o Sol da primavera,
que não esqueça logo o projetar da Esfera
- e, só depois a Sombra essencial.

Da corrupção como estro e como guerra
a brevidade alastrará na terra.
Afirmo e esqueço. Afirmo e esqueço a qual…

VI
De mim não falo mais, não quero nada. 
De Deus não falo: não tem outro abrigo. 
Não falarei também do mundo antigo, 
pois nasce e morre em cada madrugada. 

Nem de existir, que é vida atraiçoada, 
para sentir o tempo andar comigo; 
nem de viver, que é liberdade errada, 
e foge todo o Amor quando o persigo. 

Por mais justiça… - Ai quantos que eram novos 
em vão a esperaram, porque nunca a viram! 
E a eternidade… Ó transfusão dos povos! 

Não há verdade: o mundo não a esconde. 
Tudo se vê: só não se sabe aonde. 
Mortais ou imortais, todos mentiram. 


CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA  

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.  
É possível, porque tudo é possível, que ele seja  
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,  
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém  
de nada haver que não seja simples e natural.  
Um mundo em que tudo seja permitido,  
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,  
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.  
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto  
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,  
ainda quando lutemos, como devemos lutar,  
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,  
ou mais que qualquer delas uma fiel  
dedicação à honra de estar vivo.  
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente à secular justiça, 
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.” 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de uma classe, expiaram todos  
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência  
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta  
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém  
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.  
É isto o que mais importa - essa alegria.  
Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto  
não é senão essa alegria que vem  
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez  
alguém está menos vivo ou sofre ou morre  
para que um só de vós resista um pouco mais  
à morte que é de todos e virá.  
Que tudo isto sabereis serenamente,  
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,  
e sobretudo sem desapego ou indiferença,  
ardentemente espero. Tanto sangue,  
tanta dor, tanta angústia, um dia  
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -  
não hão de ser em vão. Confesso que  
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos  
de opressão e crueldade, hesito por momentos  
e uma amargura me submerge inconsolável.  
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,  
quem ressuscita esses milhões, quem restitui  
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?  
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes  
aquele instante que não viveram, aquele objeto  
que não fruíram, aquele gesto  
de amor, que fariam «amanhã».  
E, por isso, o mesmo mundo que criemos  
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa  
que não é nossa, que nos é cedida  
para a guardarmos respeitosamente  
em memória do sangue que nos corre nas veias,  
da nossa carne que foi outra, do amor que  
outros não amaram porque lho roubaram.  
            (25Junho 1959)


              A cor da Liberdade 

            Não hei de morrer sem saber 
            qual a cor da liberdade. 
            Eu não posso senão ser 
            desta terra em que nasci. 
            Embora ao mundo pertença 
            e sempre a verdade vença, 
            qual será ser livre aqui, 
            não hei de morrer sem saber. 
            Trocaram tudo em maldade, 
            é quase um crime viver. 
            Mas, embora escondam tudo 
            e me queiram cego e mudo, 
            não hei de morrer sem saber 
            qual a cor da liberdade. 

EUGÉNIO DE ANDRADE
(1923-2005)

Rapariga descalça

Chove. Uma rapariga desce a rua.
Os seus pés descalços são formosos.
São os formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.

A chuva em abril tem o sabor do sol:
cada gota recente canta na folhagem.
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.

Uma gaivota passa nos meus olhos.
E a rapariga - os seus formosos pés -
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.

Em Lisboa com Cesário Verde

Nesta cidade, onde agora me sinto,
mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também;
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
 do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
        (1986)

SEBASTIÃO DA GAMA (1924-1952)

Soneto do Guarda-Chuva

Ó meu cogumelo preto,
minha bengala vestida,
minha espada sem bainha
com que aos moiros arremeto,

chapéu-de-chuva, meu Anjo
que da chuva me defendes,
meu aonde pôr as mãos
quando não sei onde pô-las,

ó minha umbela - palavra
tão cheia de sugestões,
tão musical, tão aberta!,

meu pára-raios de Poetas,
minha bandeira da Paz,
minha Musa de varetas!
(de «Távola Redonda - Folha de Poesia)


ALEXANDRE O’NEILL
(1924-1986)

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser


Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

                                   *
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.


A História de um Poema

          Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: - Turismo. Quis saber se eu conhecia a senhora Nora Mitrani. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: - Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que Nora Mitrani não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.

Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros factores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo sabia e cheirava a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).

Semanas depois nascia o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame / contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».

A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»

Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.

(…)

In Uma Coisa em Forma de Assim, pág. 258-259, Assírio & Alvim

CÃO

Cão passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

        *

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós . . .

*

FRALDIQUEIROS (A Saca de Orelhas, 1979)

Coitarados!
Meninos, tiveram pouca mamã.
Carências afectivas afunilaram-nos psiquicamente
desde a impoética infância até este corrimento sentimental
em que grandinhos, se compensam, comprazem.
Continuam a gotejar.

Coitarados!
Gulosos de pontas de dedos,
perdem-se em beijoqueirices, diminutivas ternurinhas.
Têm sempre rebuçadinhos d'alma para as mulheres.
Falam Freud ao colo das amigas...

Fraldiqueiros...
Vais levar-lhes isso a nojo, machão?
Mulheres gostam. Riem, prazidas.
«Venha cá à mamã!»

O golpe do coitadinho (não confundir com o golpe
do irmãozinho, esse na base do esquema da alma gémea

é o que estás a ver: saltar para o regaço e pedir nhém nhém
em nome do Sisgimundo, daquele que dizia, salvo erro:

A alma? Geme-a...

Fraldiqueiros...
Sempre prontos a mandarem beijinhos por teleféricos de saliva.
Engatinhantes, tiram do estojo complexos em forma de saxofone
e tocantam-lhes a pingona freudista canção do bandido.

Fraldiqueiros...
Mulheres gostam. Até onde?

Textos de David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Nasceu, sob o signo dos Peixes,

numa casa de onde se avistava,

até à barra, todo o estuário do Tejo,

Nos olhos sobretudo lhe ficou

o espectáculo dos barcos que partiam.

*

A primeira palavra «difícil»

que saboreadamente aprendeu: biblioteca.

*

Fuma cachimbo desde os dezassete

anos. Os cacimbos renovam-se, a paixão

permanece. Constância na inconstância;

lição de fogo. Só deplora

que não seja do feminino, em português,

a palavra cacimbo.

*

Prazeres que prefere: os que o papel

e a pele lhe proporcionam.

Foi a mãe quem lhe ensinou a ler;

e a entender. O pai, a refletir;

e a contemplar. Dos dois recebeu ainda

o gosto do passado feito presente,

a paixão pelo presente a fazer-se futuro.

*

Muito cedo começou a imaginar,

Por detrás das grades que na sua terra

então a escondiam, de que modo

resplendeceria, em plena luz,

a face da liberdade.

Só a caminho dos cinquenta anos

é que teve a sorte de saber como era.

*

Precocemente pressentiu

que na Mulher coexistem quatro figuras:

a Mãe, a Irmã, a Filha; e a Fera.

Ou, melhor dizendo,

a Terra, o Ar, a Água; e o Fogo.

 

Soneto do Cativo

Se é sem dúvida Amor esta explosão

de tantas sensações contraditórias;

a sórdida mistura das memórias,

tão longe da verdade e da invenção;

 

o espelho deformante; a profusão

de frases insensatas, incensórias;

a cúmplice partilha nas histórias

do que os outros dirão ou não dirão;

 

se é sem dúvida Amor a cobardia

de buscar nos lençóis a mais sombria

razão de encantamento e desprezo;

 

não há dúvida, Amor, que te não fujo

e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,

tenho vivido eternamente preso!

 

Nocturno

Eram, na rua, passos de mulher.

Era o meu coração que os soletrava.

Era, na jarra, além do malmequer,

espectral o espinho de uma rosa brava…

 

Era, no copo, além do gim, o gelo;

Além do gelo, a roda de limão…

Era a mão de ninguém no meu cabelo.

Era a noite mais quente deste verão.

 

Era, no gira-discos, o Martírio

de São Sebastião, de Debussy…

Era, na jarra, de repente, um lírio!

Era a certeza de ficar sem ti.

 

Era o ladrar dos cães na vizinhança.

Era, na sombra, um choro de criança…

Soneto do amor difícil

A praia abandonada recomeça

logo que o mar se vai, a desejá-lo:

é como o nosso amor, somente embalo

enquanto não é mais que uma promessa...

 

Mas se na praia a onda se espedaça,

há logo nostalgia duma flor

que ali devia estar para compor

a vaga em seu rumor de fim de raça.

 

Bruscos e doloridos, refulgimos

no silêncio de morte que nos tolhe,

como entre o mar e a praia um longo molhe

 

de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu

desencanto na curva do teu céu.

  

 

Penélope
Mais do que sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.
 
E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.
 
Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço melhores dias
do nosso amor.

 

PARAÍSO
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
 
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
 
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
 
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

CASA

Tentei fugir da mancha mais escura 
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
 
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
 
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
 
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração. 
 
Ilha
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
 
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
 
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
 
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

 

                                  *

Considera que os críticos são como

os cogumelos: há os muitos bons, os bons,

os menos bons, os venenosos. E lamenta

que hoje também abundem os de estufa:

mais insípidos.

 

                                     *

Snobe? Só o suficiente para com snobes

               se mostrar snobe; ou, se necessário,

               mais snobe que os próprios snobes.

 

                                     *

Abomina congressos, colóquios,

seminários, mesas-redondas

e demais formas de promiscuidade.

penitencia-se, pois,

de por vezes parecer promíscuo.

 

Fontes: Jogo de Espelhos; As Lições do Fogo

 


RUY BELO

(1933-1978)

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

(1962)



Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                    o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável seleciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                  outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
                                                                                        que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
                                                                                        outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                   a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui



Morte ao meio-dia
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se
e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspeção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer





E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
E havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

     

                                                           Os Estivadores
Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que dantes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade

Ode marítima é o que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais

  
Manuel Alegre (1936-)


Canção tão simples

Quem poderá domar os cavalos do vento

quem poderá domar este tropel

do pensamento

à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste

que diz por dentro do que não se diz

a fúria em riste

do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva

que gota a gota escrevem nas vidraças

pátria viúva

a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas

que dentro da canção fazem das brisas

as armas harpas

que são precisas?

Manuel Alegre, O Canto e as Armas


Abaixo El-Rei  Sebastião

É preciso enterrar el-rei Sebastião

É preciso dizer a toda a gente

que o Desejado já não pode vir.

É preciso quebrar na ideia e na canção

a guitarra fantástica e doente

que alguém trouxe de Alcácer Quibir.


Eu digo que está morto.

Deixai em paz el-rei Sebastião

deixai-o no desastre e na loucura.

Sem precisarmos de sair o porto

temos aqui à mão

a terra da aventura.


Vós que trazeis por dentro

de cada gesto

uma cansada humilhação

deixai falar na vossa voz a voz do vento

cantai em tom de grito e de protesto

matai dentro de vós el-rei Sebastião.


Quem vai tocar a rebate

os sinos de Portugal?

Poeta: é tempo de um punhal

por dentro da canção.

Que é preciso bater em quem nos bate

é preciso enterrar el-rei Sebastião.
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967


Nambuangongo meu amor

Em Nambuangongo tu não viste nada

não viste nada nesse dia longo

a cabeça cortada

e a flor bombardeada

mas tu não viste nada em Nambuangongo.


Falavas de Hiroxima tu que nunca viste

em cada homem um morto que não morre.

Sim nós sabemos Hiroxima é triste

mas ouve em Nambuangongo existe

em cada homem um rio que não corre.


Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto

em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece

em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu

não sabes mas eu digo-te: dói muito.

Em Nambuangongo há gente que apodrece.


Em Nambuangongo a gente pensa que não volta

cada carta é um adeus em cada carta se morre

cada carta é um silêncio e uma revolta.

Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.

E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.


É justo que me fales de Hiroxima.

Porém tu nada sabes deste tempo longo longo

tempo exactamente em cima

do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima

com a palavra morte em Nambuangongo.

Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965


Canção de Manuel Navegador

Já com meu povo algumas vezes naufraguei.
Fernão de Magalhães fui dar a volta ao mundo
mil caminhos busquei fui nauta vagabundo
só meu país não achei.

E tive de meu povo a estranha herança
ser triste na alegria alegre na tristeza
e ter o certo por incerto o incerto por certeza
e com meu povo desespero e tenho esperança.

Ventos não mais vossa canção
nem esse espanto de quem já olhou primeiro
sargaços ilhas pedras de Ceilão
não mais ventos: morreu em mim um marinheiro

E não perguntes mais por mim ó mar
onde já tantas vezes me perdi.
Descobridor faltou-me sempre achar
uma aventura que começa aqui.
Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965


Sobre um Mote de Camões

Se me desta terra for

eu vos levarei amor.

Nem amor deixo na terra

que deixando levarei.


Deixo a dor de te deixar

na terra onde amor não vive

na que levar levarei

amor onde só dor tive.


Nem amor pode ser livre

se não há na terra amor.

Deixo a dor de não levar

a dor de onde amor não vive.


E levo a terra que deixo

onde deixo a dor que tive.

Na que levar levarei

este amor que é livre livre.

Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965


Um Soneto de António Ramos Rosa para Eduardo Lourenço

Improvável, imprevisível aparição

no pressentido horizonte da linguagem

em que o universo se move repetido

nas colunas do tempo flutuantes.

Mas quem me chama, quem me arranca de mim

a nula identidade? Quem me pergunta

a sua pergunta consonante? Alguém dispersa 

e recolhe constelações, cristais, imagens?

É este o percurso dos lábios que seguias?

é nestas palavras sombra e desejo

que verei o teu rosto que devagar se estende

Para as brancas colinas? Eu pergunto e pergunto

tu és a desconhecida nos líquidos limites

e na tua ausência está a presença que nomeia. 

Inédito (?)


ANTÓNIO MANUEL PINA (1943-2012)

O regresso 

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.
Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.
O jardim das oliveiras 

Somos seres olhados 
Ruy Belo 
Se procuro o teu rosto 
no meio do ruído das vozes 
quem procura o teu rosto? 
Quem fala obscuramente 
em qualquer sítio das minhas palavras 
ouvindo-se a si próprio? 
Às vezes suspeito que me segues, 
que não são meus os passos 
atrás de mim. 
O que está fora de ti, falando-te? 
Este é o teu caminho, 
e as minhas palavras os teus passos? 
Quem me olha desse lado 
e deste lado de mim? 
As minhas dúvidas, até elas te pertencem? 
O Caminho de Casa (1989) 

A Um Jovem Poeta 
Procura a rosa. 
Onde ela estiver 
está tu fora 
de ti. Procura-a em prosa, pode ser 
que em prosa ela floresça 
ainda, sob tanta 
metáfora; pode ser, e que quando 
nela te vires te reconheças 
como diante da uma infância 
inicial não embaciada 
de nenhuma palavra 
e nenhuma lembrança. 
Talvez possas então 
escrever sem porquê, 
evidência de novo da Razão 
e passagem para o que não se vê. 
Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999) 

O QUARTO
 
Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
 
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
 
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
 
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
 
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

CARTA A MÁRIO CESARINY NO DIA DA SUA MORTE

Hoje soube-se uma coisa extraordinária,
que morreste. Talvez já to tenham dito,
embora o caso verdadeiramente não
te diga respeito, e seja assunto nossos (sic), vivo.


Algo, de facto, deve ter acontecido
porque nada acontece, a não ser o costume,
amor e estrume; quanto ao resto
tudo prossegue de acordo com o Plano.


Há apenas agora um buraco aqui,
não sei onde, uma espécie de
falta de alguma coisa insolente e amável,
de qualquer modo, aliás, altamente improvável.


Depois, de gato para baixo, mortos
(lembrei-me disto de repente
agora que voltaste malevolamente a ti)
estamos todos. A gente vê-se um dia destes por Aí.


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