DN 26 de março de 1989
Entrevista de Vamberto A. Freitas,
O imaginário açoriano na obra de João de Melo
João de Melo nasceu em 1949 na
freguesia da Achadinha, em S. Miguel, Açores.
Este lugar é ficionado como Nossa
Senhora do Rosário da Achadinha, estando presente em O Meu Mundo não é
deste Reino, em alguns contos de Entre Pássaro e Anjo e Gente
Feliz com Lágrimas.
Vive em Portugal continental
desde os 11 anos.
Antes de Gente Feliz com
Lágrimas, já publicara, para além dos mencionados: Autópsia de um Mar de
Ruínas e Os Anos da Guerra. O primeiro sobre a sua experiência em
África como combatente do exército português, e o segundo uma antologia de
diversos géneros sobre a mesma realidade histórica.
Nesta entrevista, a matéria
abordada é o romance em O Meu Mundo não é deste Reino.
Romance autobiográfico? O
romance pretende ter uma amplitude temporal de 500 anos, mas que mal atinge os
primórdios da minha infância. Já se emigrava em força quando eu era um menino
açoriano.
O seu romance foi um acto de
catarse? Catarse, sim. A minha intenção consiste em transpor, a partir de
uma ilha, um universo simbólico que se aproxime do mundo real deste país. A
minha ideia foi propor nele uma nova mitologia literária, segundo a qual a
«ilha» pode ser a alegoria possível de um país.
Romance otimista?
Inteiramente. Sou português por gosto, não por fatalidade. Pelo otimismo do
tempo que levará ao futuro.
A esperança como motivo na
literatura portuguesa atual? A literatura é o país dos pobres.
Enquanto a realidade for insuportável, deve competir ao imaginário dos livros
conceber essa porta de saída para o ideal social.
Influências literárias? A
minha tribo literária anda dispersa. Houve escritores importantes na minha
formação: Dostoievski, Kafka, Camus, Beckett e alguns portugueses – Eça, Nuno
Bragança, Urbano Tavares Rodrigues. Depois chegaram os latino-americanos:
Garcia Marquez, Cortázar, Roa Bastos, Carpentier e mesmo Borges. A minha
geração só tem uma alternativa: ou vive na periferia dos modelos estrangeiros
ou então cria o seu próprio modelo de literatura.
O papel da Igreja nos Açores
(e no romance)? Limito-me a denunciar a inteligência perversa de certos
padres, que não resistem a assumir o estatuto dos poderosos e dos exploradores.
Sou sobretudo um crítico das hierarquias. Por outro lado, foi sempre um
propósito muito meu questionar as patriarcais figuras da sociedade portuguesa.
A simbologia do Mar? A
simbologia do mar – que a personagem do curandeiro define como sendo «branco» -
faz parte de uma conceção de inocência.
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Entre mim e Urbano Tavares
Rodrigues, há uma história privada de admiração e amizade, apesar de
pertencerem a gerações bem distintas, de não perfilharem uma ideologia política
comum e de nunca terem tido o mesmo projeto de literatura.
Conheceu-o nos finais da década
de 60, tempo de perplexidade, angústia, desamparo e uma grande aflição
coletiva. Eu fora gravemente acusado de ‘subversão política’ e por isso expulso
do internato onde estudava. (…) Ferreira de Castro e Assis Esperança, amigos do
coração, foram os primeiros a partilhar. (…) O Ditador estava-me no sangue e na
dinâmica dos sentidos.
Ia nos 18 anos de idade quando li
as novelas e os contos de ‘A porta dos limites, ‘A noite roxa’, ‘Uma pedrada no
charco’, ‘As aves da madrugada’, ‘Imitação da Felicidade’… e mais tarde ‘Casa
de Correção’. A obra de Urbano trouxe-me não só a revelação e a descoberta de
um tempo ainda desconhecido, com a evidência da sua aprendizagem…
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Queremos que o Autor seja
múltiplo e ousado, de rosto erguido e olhos altivos, contra a pequena ou
perversa ignorância, contra o despeito e a maledicência, e contra a indiferença
ou a bonomia de quantos fingem tolerá-lo.
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De modo que, quando chegou a
minha hora de embarcar em Alcântara, com destino a Angola, despedi-me de
toda a minha anterior inocência e vi um país de gatas. No fim de contas, já
onze mobilizações de jovens tinham marchado para as três frentes de África: tal
como eu viram e viveram a coisa mais trágica da sua memória. Dessa experiência,
João de Melo disse tudo o que sabia em Autópsia de um Mar de Ruínas. Ver
ainda a Antologia Literária da Guerra Colonial, a solicitação de António
Mega Ferreira para o Círculo de Leitores.
O meu principal compromisso,
acima mesmo de qualquer postura ideológica, é com a vida dos pobres.
Revelei em primeira mão
escritores como António Lobo Antunes e Mário de Carvalho, por exemplo.
Não vejo por que razão se não
deva reconhecer que ‘Esteiros’, ‘Barranco de Cegos’ ou mesmo ‘Seara de Vento’
pertencem à categorias obras-primas.
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