Cultura e Literatura de Cabo Verde

Cabo Verde
Cabo Verde, Descobrimento e colonização - texto de Manuel Múrias (1900- 1960)
Descoberta em 1460, segundo conta Diogo Gomes, no regresso da exploração da Costa da Guiné:" Havia ali grande pescaria. Em terra, porém, achámos muitas aves estranhas e rios de água doce. As aves esperavam-nos sem fugir, assim as matávamos com paus. Havia muitos patos. Também era grande a fartura de figos, mas não estão dispostos nas árvores do mesmo modo que nas nossas figueiras..."
As cinco primeiras ilhas foram descobertas em 1460. António Noli foi nomeado capitão donatário da ilha, a ele se devendo, e a Diogo Afonso, que descobriu as 7 restantes, os primeiros passos de colonização.
Luís Forjaz Trigueiros - L 54856 P - Antologia da Terra Portuguesa, Liv. Bertrand, 1963
"Finalmente, por de mais se sabe que há uma literatura característica do arquipélago de Cabo Verde, diferenciando-se das literaturas das outras nossas províncias de África ( e prepositadamente separo aqui o caso da Índia portuguesa) pelo facto de não reflectir influências técnicas, formais ou artísticas da Metrópole e ainda de, ao contrário daquelas, só em casos muito especiais - julgo ser único o de Manuel Ferreira - ter podido exprimir-se com tanta propriedade nas páginas dum escritor metropolitano como nas dum escritor autóctone.
Acresce ainda que uma literatura tão particularizante, servida por um bilinguismo rico de possibilidades expressionais, uma literatura da qual, numa época em que tudo anda tão depressa, como a nossa, já se pode dizer que criou formas clássicas de expressão, desde que em 1936 surgiu a revista Claridade."
Génese da autonomia:
- a contribuição do português;
- os contactos com o mundo através do Porto Grande de S. Vicente;
- a revista Claridade é anterior ao neo-realismo português;
- a importância do mestiço na formação de uma cultura caboverdiana. .
José Osório de Oliveira
A revelação ao público português de que existia uma literatura caboverdiana foi feita em 1928 por José Osório Oliveira.
Uma vez por outra, perpassa, nesse quadro de esterilidade desoladora, a passadinha - ave de plumagem azul. É o bastante para que ao crioulo ocorram ideias de amor, e entoe a morna em que uma rapariga diz:
Ó passadinha de pena azul,
Empresta-me a tua pena e o teu tinteiro
Para escrever uma carta àquele ingrato
Que embarcou, foi-se embora sem se despedir.
Toda a produção literária se posiciona em função da revista Claridade cujo 1º número saiu em 1936, dirigida pelos jovens Baltazar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes.
Esta revista introduz o real caboverdiano.
1ª fase, de Março de 1936 a Março de 1937 - 3 números;
2ª fase, surgiu em 1947, sob a forma de livro - números 4 e 5;
Em 1948, 6º número; Em 1949, 7º;Em 1958, 8º; Em 1960, o 9º.
Podemos assim falar de dois períodos: o que antecede e o que lhe sucede.
Neste 1º período, o discurso literário era exclusivamente subsidiário do discurso literário português.
Nas palavras de Manuel Ferreira, "os produtores de texto estavam desligados das realidades sociais das ilhas, nada preocupados em tornar matéria textual a sua peculiar vivência insular, em geral considerando Cabo Verde como parte integrante de Portugal".p.151.
Nos poemas de Eugénio Tavares: Exilado, Não me pertence, Hinos, nota-se um claro enfeudamento aos valores ideológico-literários e culturais da Europa, nomeadamente aos valores gerados pela Revolução Francesa. Predominam o soneto;a nostalgia do sol caboverdiano.
José Lopes (1872 - 1962 )
Aluno do Seminário-liceu de São Nicolau; homem de cultura clássica; testemunhou ao longo da sua carreira um grande fascínio pelo Brasil - ver poema Ao Brasil. Profundamente influenciado pelos brasileiros românticos Castro Alves, Gonçalo Dias, Olavo Bilac, Alberto Oliveira, Rui Barbosa (prosador e ilustre tribuno).
Nas margens do Lucala - poesia de carácter pessoal, quase autobiográfica; influência da poesia clássica, embora impregnada de um certo realismo.
A João de Deus - influência de Joâo de Deus- constatação da infelicidade e da pobreza a que os seus irmãos estão condenados desde a infância. Embora pobre, distingue-se dos seus irmãos pela cultura.
A Fajã, que permitiu equacionar o problema da pátria crioula, a pátria regional - e a pátria lusitana, a superpátria imperial: a 1ª é a Mátria ( é a nossa mãe, a terra onde nascemos) - conceito romântico, introduzido pelo verso de Chateaubriand: "O mon pays sois mes amours toujours"
Fazer o confronto com o poema de Pedro Cardoso A minha Pátria é uma montanha e o poema de João de Deus Pátria.
A Mátria é a terra " o torrão de meus pais" para José Lopes, tal como acontece em João de Deus, em Pedro Cardoso...
Pedro Cardoso ( c. 1890 - 1942)
Poemas Morna e A minha pátria é uma montanha
Pretensão épica sob a emoção lírica; referências mitológicas e clássicas.
Ver poema Portugal, ninho de águias e condores, p. 164.
A Pátria é uma montanha olímpica que brota do Atlântico: " a minha amada/terra natal"; " para a glória do mundo fê-la Deus/Altiva, forte, generosa e brava:/Assim foram outrora os filhos seus!"
Questão: A que tempo se refere o Autor? O mito das ilhas hesperitanas
Porém, o poema termina com o mesmo desejo já patenteado por João de Deus no poema Pátria.
À mocidade caboverdiana:
- a esperança "de outra mais feliz idade!"
- o Poeta confessa a razão do seu canto: "Pela Pátria";
- a função da Poesia será atenuar a Dor " da sua alma despedaçada";
- maldição vs rendição (conotação religiosa que esconde, todavia, o desejo de libertação).
Maldição - ver temas: estiagem, insularidade, viagem, emigração, terra-longismo.
Pedro Cardoso foi um dos mais devotados e lúcidos defensores da valorização do crioulo de Cabo Verde.
O mito hesperitano
Para Estrabão, Cabo Verde chama-se Ilhas Arsinárias. Ver referência de Camões:
Onde o cabo Arsinário o nome perde/ Chamando-se dos nossos Cabo verde.
O mito hesperitano veio preencher um vazio e dar um sentido à componente histórica do fundamento pátrio alicerçado nas ilhas e não na metrópole europeia...mito criador do espaço da felicidade.
Dicionário de Mitologia:
As Hespérides eram filhas da Noite... habitavam no extremo ocidente, não longe da Ilha dos Bem-Aventurados, junto ao Oceano. A sua função era vigiar as maçãs de ouro, presente feito pela terra a Hera, quando das suas núpcias com Zeus. No seu belíssimo jardim, elas cantam em coro, junto de fontes sussurrantes, e têm farta mesa de ambrósia...
Quando, como e onde terá surgido o mito hesperitano?
- Provavelmente no Seminário-liceu de São Nicolau, fundado em 1866 e extinto em 1928... lá estudaram José Lopes e Pedro Monteiro Cardoso. As referências culturais teriam sido extraídas de velhos alfarrábios e enciclopédias da biblioteca do Seminário: Platão, Atlântida, Hespérides, Hercules, Estrabão, Níobe, etc.
la pomme d'or - objet des désirs humains et d'une possibilite d'immortalité.
le dragon - désigne les terribles difficultés d'accès à ce Paradis.
Héraclès - le héros qui triomphe de tous les obstacles.
L'Atlantide - continent engloutit, quelle que soit l'origine historique de la légende, reste dans l'esprit des hommes, à la lumière des textes inspirés à Platon par les Égyptiens, comme le symbole d'une sorte de paradis perdu ou de cité idéale.
Poema Morna - definição: "cálida voz da volúpia"/ " voz ancestral "/ "não é só dolência e pranto",isto é, não é só fado da desgraça - outras vezes celebra a Vida: é um canto epopeico - a morna "lídima, filha da trova lusitana; traduz a alegria e " a dor da nossa raça.
Em ritmo polariza a Alma Caboverdiana. (1933)
História de Cabo Verde
in O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, de Baltazar Lopes da Silva, Impr. Nac., 1984.
1. As ilhas de Cabo verde eram desabitadas quando os portugueses ali chegaram.
2.O povoamento foi feito com elementos brancos portugueses e com elementos negros do continente africano, particularmente da Guiné ( que falavam várias línguas).
3. Ao longo da História, brancos e negros misturaram-se dando origem aos mestiços que predominam no arquipélago.
4. A História ensina-nos que, no domínio da linguagem, é a língua do mais forte e do mais civilizado que se impõe, mas não em absoluto: o povo menos forte e menos civilizado perfilha a língua do mais forte, mas moldando-a às suas tendências.
5. A língua portuguesa não se conservou no verdadeiro sentido da expressão nas ilhas de Cabo Verde: ela metamorfoseou-se. A língua que se fala em Cabo Verde não é o mesmo português da metrópole, mas um português cheio de lesões muito profundas, não só na sua fonética, como na sua morfologia, na sua semântica e na sua sintaxe: o nome que se lhe dá é crioulo.
crioulo - de criar + -olo(<lat. -ollu)
O verbete referente a crioulo, Dicionário do Aurélio, ed. Nova Fronteira:
1. adj. Diz-se do homem de raça branca nascido nas colónias europeias de além-mar,particularmente da América.
2. Diz-se do dialecto falado por essas pessoas.
3. Dizia-se do negro nascido nas Américas.
4. Pertencente ou relativo aos nativos de determinada região.
5. Diz-se do dialecto português falado em Cabo Verde e noutras regiões da colonização portuguesa em África.
Definição de Crioulo in Noções de história da língua portuguesa ,de Fernando V. Peixoto da Fonseca:
" A expressão da nossa língua nas ilhas adjacentes e nos domínios ultramarinos tomou dois aspectos fundamentais: dialectos propriamente ditos, e fusão com outra língua, que deu origem aos crioulos."
Crioulos - Estudos Linguísticos Cota L. 18517 V ( reedição de artigos publicados no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa - Introdução e notas de Jorge Morais-Barbosa, Lisboa, 1967.
Designam-se por línguas crioulas ou mais simplesmente crioulos, os instrumentos de comunicação de carácter vocal exercida no âmbito da dupla articulação linguística que resultaram da mútua interferência entre dois ou mais idiomas, um deles europeu e o outro ou os outros não europeus, nomeadamente africanos ou asiáticos.
Formaram-se apartir de idiomas de recurso, do tipo dos chamados pidgins ou línguas francas, praticamente improvisados com elementos das várias línguas em presença, de cada vez que as circunstâncias punham em contacto indivíduos que não falavam a mesma língua.
Línguas estudadas na Escola Colonial, a partir de 1919, cuja responsabilidade cabia à Sociedade de Lisboa:
Fula ou mandinga (Guiné)
Fioti (Angola)
Quimbundi (Angola)
Landim ou ronga (Moçambique)
Suaíli (Moçambique)
Coucani (Índia)
Teto ou Galoli (Timor)
Segundo Leite de Vasconcelos, crioulo deriva de criadouro, deformado em boca de preto. in Antroponímia Portuguesa.
Algumas características do crioulo:
-lh- corresponde muitas vezes a -dj- ou a -i-: medjor; vei (velho); outras cai: muêr
( mulher).
-ch- pronuncia-se sempre -tx-
-s- final e medial junto de surda profere-se -ç-: treç(três); boçta(bosta).
-b- confunde-se trequentemente com -v-
Baltazar Lopes da Silva
Características do Crioulo:
1. Os negros não aprendiam o português na escola. Para falar não se guiavam pelas regras da língua portuguesa, mas pelas da(s) sua(s) própria(s) língua(s).
2. Este facto explica que no crioulo de Cabo Verde o que existe de português é fundamentalmente quase só o léxico.
José Joaquim Lopes de Lima publicou em 1844 através da Imprensa Nacional de Lisboa a obra Ensaios sobre a Statística das Possessões Portuguesas no Ultramar, onde na pág. 81 se afirmava:
... o estabelecimento de duas Escolas Preparatórias.Mas estas devem ser sujeitas à inspecção do Governo, e regidas por professores europeus, que pronunciem bem a língua portuguesa sem os vícios do crioulo africano ( gíria ridícula, composto monstruoso de antigo português e das línguas da Guiné, que aquele povo tanto presa, e os mesmos brancos se comprazem a imitar).
Este texto é revelador da atitude que se manteve durante mais de um século.
Um argumento interessante sobre a génese dos crioulos:
"Para que levaram os brancos esses negros para o arquipélago? Diz-nos a História que foi para colonizarem e, consequentemente, para exercerem ali múltiplas actividades que a vida requer, naturalmente dentro de certa disciplina e orientados pelos brancos. Ora para essa actividade, os brancos e os negros tinham de se entender falando. O branco falava em português, mas como não podia deixar de ser, devido à sua incultura e à ausência de aulas de português, onde se lhe ensinasse a língua portuguesa, onegro alterava quanto ouvia, e o branco, que não se preocupa nem podia preocupar-se com a gramática, mas apenas com o bom êxito da sua missão, aceitava o que ouvia, e, para que fosse ouvido, o que ouvia repetia.Deste modo deu-se o inevitável: nasceram os crioulos.
E quem eram esses brancos? E sobretudo qual era o seu nível cultural?
O crioulo de Cabo Verde distribui-se por dois grupos maiores:
- o de barlavento ( Santo Antão, S. Vicente, S. Nicolau, Boa Vista e Sal )
- o de Sotavento ( Maio, Santiago, Fogo e Brava).
Manuel Lopes
Nasceu a 23 de Dez. de 1907 na ilha de S. Nicolau.
Fundador da revista Claridade.
Polígrafo.
1932, folheto Paul
1949, Poemas de quem ficou
1956, Chuva Brava
1959, O galo que cantou na Baía
1959, Os Flagelados do Vento Leste
1964, Crioulo e outros poemas
1. Narrativa
Os Flagelados do Vento Leste decorre na ilha de Santo Antão, atravessada pela fome devido à seca, provocada pelo "Vento leste, ardente do deserto africano".
2.Poesia
Sofre influência de Jorge Barbosa, apesar do tom filosofante: apresenta-nos um homem reduzido, tolerado pela natureza, que nele exerce um poder absoluto.
Características da sua poesia:
- verso longo
- linguagem discursiva
- mundo real caboverdiano individualizado
- o interlocutor ( o tu) tende a ser mais personalizado
- crítica à emigração
- amor pela terra-mãe
- evasionismo
Em 1932 deu à estampa Paúl, "monografia descritiva regional", evidenciando as preocupações da descoberta das origens humanas do arquipélago, o que constituiria o núcleo do movimento claridoso que partilharia com Jorge Barbosa e Baltazar Lopes.
Em 1932 ou 33, conheceu Augusto Casimiro, um dos fundadores da revista Águia, na cidade de São Vicente - a amizade criada durou até à morte de A. Casimiro em 1967 - Desta relação ficaram 18 cartas, escritas entre Dez. de 1934 e 7 de Out. de 1965 ( ver a importância da carta de 15 de Set. de 1960, a propósito do livro Os Flagelados do Vento de Leste).
Ensaio
1. Os Meios Pequenos e a Cultura, palestra proferida em 1950, na cidade da Horta, em que defende a seguinte tese:
- " as limitações geográficas e as dificuldades materiais que caracterizam alguns dos pequenos aglomerados não os impedem de ser grandes pólos geradores e irradiadores de cultura, se, de uma forma prática, forem suficientemente incentivados os valores de espírito."
Distingue os meios pequenos dos meios acanhados, defendendo a necessidade de criar e dinamizar bibliotecas, sugerindo a organização de conferências, exposições de arte,etc.
2.Comunicação aos Colóquios Caboverdianos, em 1959, intitulada Reflexôes sobre a Literatura Caboverdiana ou a Literatura nos meios pequenos.
Manuel Lopes explica a génese da Literatura Caboverdiana a partir dos sucessivos intercâmbios com o mundo exterior, mostrando o papel estratégico assumido pelo Porto Grande, na ilha de São Vicente, que no séc. XIX "começou a ser um dos portos itinerantes internacionais mais importantes do mundo, dando origem à cidadezinha do Mindelo, que, segundo o Autor," nasceu, por dizer cosmopolita".
Por outro lado, o facto de existir, também em São Vicente, um dos Liceus do Arquipélago despoletou, entre as suas gentes, " uma intensa curiosidade intelectual".
O medo constante das secas prolongadas que assolou as Ilhas provocando uma saudade irresistível de outros mundos. O amor desmedido que sente pela sua terra, na qual se encontra tenazmente enraízado.
As influências literárias exercidas sobre os primeiros cultores da literatura caboverdiana:
Uma de natureza mais formal, estética, rompendo com fórmulas gastas... teve como principal agente a revista Presença; a outra mais identificada com o meio físico e social de Cabo Verde foi a do modernismo e neo-realismo brasileiros.
3. Considerações sobre as personagens de ficção e seus modelos, publicado em 1973 no nº 110 do ano XXVIII do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.( ensaio importante para o estudo da ficção de Manuel Lopes)
Na lírica predomina a análise psicológica, a par duma focalização concentrada no ponto de vista de quem permanece nas ilhas de Cabo Verde.
...em Manuel Lopes, o mais longe que se vai é à pesca, junto à ilha, " para meter milho na terra", como se diz prosaicamente num verso do Autor.
A visão nunca chega a ser panorâmica como acontece em Jorge Barbosa ( ver Arquipélago), embora o livro no seu todo nos forneça um quadro seguro da realidade interior a Cabo Verde e suas gentes: o que andou sempre longe é que fala como quem jamais partiu.
Partir reune os poemas de quem ficou.
Poemas Intervalares reflecte uma viagem íntima.
Crioulo retrata o crioulo nas condições dificeis em que se situa.
Poema de quem ficou: a imaginação do homem insular (que ficou) sobrepõe-se ao real visto ou vivido por aquele que partiu. O infinitamente pequeno desencadeia uma acção imaginativa que se sobrepõe claramente ao infinitamente grande. "A beira-mar" representa aqui a fronteira entre a ausência/privação e o Mundo (no sentido da plenitude); porém para além da plenitude material do mundo, existe a plenitude espiritual, que, do ponto de vista do poeta, é mais rica, mais compensadora. É quase que uma forma de iniciação.
Crioulo corresponde à 3ª parte. Este poema revela uma profunda compreensão da condição de "crioulo": a fome, a dor, a coragem, a resignação, a esperança desenganada, a alegria vã.
Manuel Lopes, nos livros Chuva Brava e Os Flagelados do Vento Leste transpõe romanescamente os caracteres psico-somático do caboverdiano, nascendo, vivendo e comportando-se em áreas de nítida diferenciação climática e paisagística como são as das ilhas no seu conjunto - na definição do próprio romancista- "ora vales de amenidade e acalmia onde a água não cessa de correr no alveo das ribeiras...ora planaltos desolados e agrestes..."
Essa especificidade caboverdiana está bem marcada:
- nas noveletas de António Aurélio Gonçalves
- na ficção de Manuel Ferreira
- nos contos de Gabriel Mariano
- na poesia de Jorge Barbosa
- em António Pedro, Aguinaldo da Fonseca, Daniel Filipe, Terêncio Anahory e Nuno Miranda.
Bibliografia
Letras e Letras nº 37, 19 de Dez. de 1990
1. Entrevista com Manuel Lopes, conduzida por mª Luísa Baptista
2. Manuel Lopes: Claridosamente escrevendo por Salvato Trigo
3. Um escritor exigente por Gerald Moser
4. Manuel Lopes: um ensaísta (talvez) esquecido por Mª Cristina Pacheco
5. Os Flagelados do Vente de Leste: predestinação e exemplo por Ana Mª Martinho
6. Lembrando os 30 anos de Os Flagelados do Vento Leste por Mª Luísa Baptista
7. Carta de Augusto Casimiro a Manuel Lopes por António Cândido Franco
8. A Lírica em verso de Manuel Lopes por Francisco Soares
9. Os Flagelados do Vento Leste por Jean - Michel Massa.
Jorge Barbosa ( 1902 - 1971)
Nasceu na ilha de Santiago em 22 de Maio de 1902 e faleceu a 6 de Janeiro de 1971.
Filho de um professor e reitor do Liceu Gil Eanes - Simão José Barbosa. Foi funcionário das Alfândegas no seu arquipélago, e, já aposentado, viveu na ilha de S. Vicente, falecendo em Almada.
Fez parte do grupo Claridade, do qual, com Baltazar Lopes, foi um dos mais representativos elementos. Este grupo, sob o simultâneo influxo do criticismo da Presença, de José de Osório de Oliveira e do modernismo literário brasileiro ( bem como da sociologia de um Artur Ramos e de um Gilberto Freyre), veio a ser uma das primeiras ( senão a primeira, pela profunda vivência de uma situação peculiar do homem português) manifestações vitoriosas de uma atenção à realidade social que o neo-realismo preconizaria, é certo que com outros pressupostos.
Bibliografia:
Arquipélago, L. 78483 P, 1935
Cadernos de um Ilhéu, L. 144471 V
Crioulos, L. 18517 V
Arquipélago, edit. Claridade ,S. Vicente, 1935
400 ex. - consultei nº 253 - L. 7843 P
Panorama
Destroços de que continente,
de que cataclismos,
de que sismos
de que mistérios?
Ilhas perdidas
no meio do mar,
esquecidas
num canto do mundo
- que as ondas embalam
maltratam
abraçam ...
(...)
Ilhas
descrição da terra de passagem
(...)
Todos passaram
- Chineses, Negros, Americanos, Holandeses
Todos passaram
e deixaram,
por acaso,
a sua raça no ventre das meretrizes do porto
(....)
terra de sensualidade
(...)
Mornas a dançar
no corpo sensual das raparigas
nas cantigas,
na dispneia das ondas bravas
morrendo no areal,
no rolar
das ondas mansas e langues
(...)
o delírio do batuque no terreiro.
o batuque - essa dança ancestral! ...
Ficaram nas tabancas
lembranças e gritos
e espíritos até
de avós invisíveis
da Guiné!
A Terra
Terra fértil
(...)
Se não cai a chuva,
- o desalento
a tragédia da estiagem! -
(...)
- Ai o drama da chuva
ai o desalento
o tormento
da estiagem
Rumores
Rumores das coisas simples da minha terra
A Morna
Canto que evoca
coisas distantes
que só existem
além
do pensamento,
e deixam vagos instantes
de nostalgia,
num impreciso tormento
dentro
das nossas almas
Povo ( a Osório de Oliveira)
Conflito numa alma só
de duas almas contrárias
buscando-se, amalgamando-se
numa secular fusão;
conflito num sangue só
do sangue forte africano
com o sangue aventureiro
dos homens da Expansão
conflito num ser somente
de dois polos em contacto
na insistente projecção
de muitas gerações...
Na alma do povo ficou
esta ansiedade profunda
- qualquer coisa de indeciso
entre o clima tropical
e o espelho de Portugal.
O Mar
(...)
- Ai o cântico
estranho
do Atlântico
que não se cala em nós!
(...)
...E outra lenda
virá...
Destinos
Destroços de que continente,
de que cataclismo
de que sismos?...
Ilhas perdidas,
esquecidas
num canto do mundo...
Destroços de um naufrágio!...
...Mas o naufrágio continua...
Ambiente, 1941
Ilha
Quando o barco alemão vem à ilha carregar sal
há um sobressalto íntimo de contentamento
na gente que fica a ver de terra.
À varanda da antiga casa do largo
olhos curiosos em direcção ao mar
atravessam as lentes baças
do velho binóculo do tempo dos piratas.
Toma certo ar garboso e oficial
com a bandeira nacional à popa
o escaler a remos
ao partir apressado ao vapor
com as autoridades todas do porto
e o empregado da firma carregadora
que leva uma grande pasta sob o braço...
Compram-se a bordo novidades
ouvem-se notícias de longe...
bebe-se
cerveja gelada...
O barco parte depois
e a Povoação resignada
retoma a monotonia habitual...
...à noitinha
à hora tagarela de em seguida ao jantar
os homens reúnem-se na rua principal
comentando as ocorrências do dia.
Vem então à baila aquela passageira de boca pintada
que seguia para o Congo Belga...
E da evocação da mulher estrangeira
ficou um sonho parado
em cada um...
Ver Líricas Portuguesas, 3ª série, 1º vol. - Jorge Sena.
Jorge Barbosa dedica o poema Você, Brasil ao poeta brasileiro Ribeiro Couto.
Quem é Ribeiro Couto?
Rui Ribeiro Santos Couto nasceu em S.Paulo em 1898 e morreu em Paris em 1963.
Integrado no Movimento Modernista não se afastou de todo, pela temática, do Simbolismo. Suave e terno, preferiu os temas da vida quotidiana, a meia sombra, e daí o penumbrismo, termo sugerido pela sua arte e empregado para nomear uma expressiva tendência literária.
Diplomata de carreira, R. C., viveu também em Portugal: deixou-se impregnar pela suavidade da paisagem, pela simplicidade dos costumes. Aliás, a sua poesia continua no Brasil a tradição do lirismo português de gosto popular.
Poema do brasileiro Ribeiro Couto:
Longos dias de sonho e de repouso...
Ócio e doçura... Sinto nestes dias,
Meu corpo amolecer, voluptuoso,
Num desfalecimento de energias.
(...)
A minha alma, à mercê de velhas mágoas,
É um pássaro ferido mortalmente
Que vai sendo arrastado pelas águas.
Outro poeta brasileiro a ter em consideração: Jorge de Lima (1893 - 1953)
A descoberta da negritude, reflexo da onda de brasilidade que varreu a geração de 22, está representada no poema Essa negra fulô.
Ora se deu que chegou
(Isso já faz muito tempo)
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.
ver p. 424 a 426, in A Literatura Brasileira através dos textos...
Baltazar Lopes
Nasceu em 1907 na Vila da Ribeira Brava.
Licenciado em Direito e Filologia Românica.
Voltou para Cabo Verde como professor do Liceu Gil Eanes, de S. Vicente, sendo mais tarde nomeado reitor do mesmo estabelecimento de ensino.
Com outros intelectuais caboverdeanos fundou, em 1936, a revista literária Claridade, onde colaborou assiduamente, na companhia de outros escritores, destacando-se entre estes Manuel Lopes, Manuel Ferreira, António Aurélio Gonçalves, Francisco José Tenreiro, Jorge Barbosa e Daniel Filipe.
Em 1947 publicou o romance Chiquinho
Em !956, o folheto polémico Cabo Verde visto por Gilberto Freyre
Em 1957, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde
O romance Chiquinho fixa o drama da luta do homem contra as consequências da seca, a sua "ânsia" de fuga para a "terra longe".
Com este romance, Baltazar Lopes pensou iniciar um ciclo novelístico da aventura crioula.
Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou até mesmo Jorge Amado são autores brasileiros cuja influência se sente em Chiquinho.
v O Programa do Grémio Cultural Cabo-verdiano (p.97)
v A influência de Fialho - O Cancro – (p.107)
v Referência: ao Aquilino de Surflamme(?) e da Vida Sinuosa (p. 108)
v Leitura do cap. VII (pp109-110)
v A decadência de S. Vicente (p.115)
v Para que serve o jornal? (p.116)
v A chegada do Governador (p. 120)
v A referência à política «pan-lusa» no Atlântico Sul
v Para que serve o diploma do 7º ano dos liceus? (p.158)
v Para que serve a formação? (pp.163; 166-68)
v O estrato pequeno-burguês (p. 192)
v Planos de vida (p. 195)
v A evasão do real (pp.195-196)
v Projecto: escrever um ensaio sobre a vida social de S. Nicolau
v Um grande levante no S. João (pp.213-216)
Hipóteses de trabalho: A imagem de Cabo verde neste romance.
O percurso escolar do Chiquinho – Aprendizagem: colocação no morro Brás (contacto directo com a fome, a morte dos amigos); p.200: até aqui Chiquinho aprendera com os antigos, aprendera a ouvir aqueles que pertenciam ao folclore literário – mamãe-velha (p.18); nhá Rosa Calita (pp.19 a 21); Nhõ chi’ana (p.23); Totone Menga Menga; Tio Joca, uma espécie de filósofo (pp32, 47); cap. XIII (p.203…);
Segundo Óscar Lopes:
Chiquinho ... faz a transição do romance psicológico de aprendizagem adolescente pequeno-burguesa para o romance neo-realista em que se converte na movimentação final.
Obras fundamentais para Baltazar Lopes:
José Lins do Rego, Menino do Engenho; Banguê
Jorge Amado: Jubiabá; Mar Morto
Armando Fontes: Os corumbas
Marques Rebelo: Caso da Mentira
Manuel Bandeira: A evocação do Recife
Jorge de Lima: Nega Fulo (sinhazismo); Menino Impossível (super-realismo); Túnica inconsútil
Poesia
Fazer levantamento temático.
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Um outro brasileiro que terá influenciado a Claridade: Manuel Bandeira
Manuel Bandeira nasceu no Recife (1886 - 1968)
Ver influência do poema Itinerário de Pasárgada no poema (p.184) de Osvaldo Alcântara
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que a Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
(...)
É possível encontrar vestígios de pasargadismo em : Osvaldo Alcântara, Ovídio Martins, Fernando Fragoso e Arménio Vieira.
Henrique Teixeira de Sousa
Nasceu a 6 de Setembro de 1919, na ilha do Fogo, em Cabo Verde.
Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa em 1945. Fez ainda os cursos de Medicina Tropical e de Medicina Sanitária da Universidade do Porto.
Em 1946, ingressou no quadro de Saúde do Ultramar, tendo sido colocado em Timor como interno do Hospital Central e professor da Escola de Enfermagem.
No final de 1948, foi transferido para Cabo Verde, onde permaneceu até 1954 como delegado de Saúde na ilha do Fogo, criando, ali, um hospital e uma maternidade.
Entre 1956 e 1959, participou em várias acções no domínio do nutricionismo.
Em 1973 foi nomeado adjunto do chefe da repartição de Saúde e Assistência do Barlavento, em Cabo Verde.
Actualmente, e já aposentado, exerce a Medicina no concelho de Oeiras.
Em 1936, iniciou-se como escritor numa modesta publicação liceal, o "Juventude".
Depois do volume Contra Mar e Vento, Ilhéu de Contenda é o seu primeiro romance - painel impressivo das grandezas e misérias do tempo colonial e que Teixeira de Sousa legendou como a história do sobrado que sobrou dos sobrados soçobrados; orgulho-ilusão duma classe que o tempo destroçou...
Como epígrafe do romance Ilhéu de Contenda, escreveu:
Entre gente de sobrado, de loja e de funco, nasci e vivi.Nunca cheguei a perceber bem qual o lugar me coube nessa sociedade. Por isso, este livro é de todos e para todos.
" Teixeira de Sousa, nos anos 40 ligado aos neo-realistas portugueses e. deste modo, um dos pioneiros da ficção cabo-verdiana, só recentemente reuniu os seus contos em Contra Mar e Vento (1972). Histórias centradas no quadro da ilha do Fogo, lá onde se tornaram resistentes conflitos e tensões decorrentes de uma estrutura social sedimentada sob o signo do latifúndio. A infância, certos aspectos da confrontação social de classes, a desesperada luta pela sobrevivência, o heroísmo quotidiano, a honradez, ressonâncias da labuta aventurosa do cabo-verdiano pela América, são alguns dos segmentos incisivos que estruturam esta obra. Pícaras, dramáticas, poéticas, ou impregnadas de um certo humor ou de uma certa ironia, ou ainda às vezes de uma fina melancolia, mas sempre profundamente significativas, num estilo caracterizado pela limpidez, incisivo. Com este discurso, Teixeira de Sousa dá-nos um dos enunciados mais equilibrados e autênticos da narrativa cabo-verdiana, revelando um fôlego de narrador excepcional."
in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, por Manuel Ferreira, Bibl. Breve 1, p. 67-68
Ver artigo de Gabriel Mariano, Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou, in Ensaios Cultura Caboverdeana, Vega, !991
Uma ideia curiosa: " a necessidade de referenciar socialmente os indivíduos pelos traços rácicos, e de aliar ao comportamento social o tipo étnico, é aspecto estranho a Caboverde."
Gabriel Mariano refuta a tese de Harry W. Hutchinson:
" Ao preto atribuem-se qualidades humildes: é bom trabalhador, despido de pretensões e capaz de ser fiel; o mulato e o escuro têm a reputação de arrivistas; ao moreno atribuem-se estereótipos mais simpáticos." p. 43
Ler atentamente a pág. 43, sobre a relação entre mulatos, brancos e negros.
Nhonhó - termo vindo dos tempos da escravatura e aplicado pelo negro ao seu senhor. Actualmente persiste a expressão, mas o significado perdeu-se: Nhonhó em cabo verde é um nome próprio , um hipocorístico (diz-se dos nomes familiares ou infantis em que há duplicação da sílaba, como gigi, papá).
Aprofundar tese gilbertiana do luso-tropicalismo.
Aimé Césaire rejeita a possibilidade de uma civilização mestiça.(47)
Gabriel Mariano contraria a tese de A. Césaire, no que respeita a Cabo Verde: ver exemplos, pág.48.
Gabriel Mariano defende:
" a evolução da sociedade caboverdeana de um agregado heterogéneo e plural para o tipo de sociedade homogénea que ela é hoje deve-se ao contínuo alargamento da área ou do campo de jurisdição do mulato." (50)
Gabriel Mariano (51) refere ainda:
"Incidindo sobre outro aspecto da história caboverdeana, mas denunciando o mesmo triunfo do negro e do mulato, registe-se o que Teixeira de Sousa apurou a respeito da ilha do Fogo, onde os preconceitos raciais só começaram a desaparecer com a ascensão económica dos mulatos. Deste caso podemos extrair a conclusão de que os mulatos construíram na ilha do Fogo uma sociedade mais amplamente cristã do que a das antigas famílias brancas, donas do comércio e da agricultura."
O papel decisivo do factor económico no destino da sociedade caboverdeana.
Outra tese interessante:
"Terá sido o funco, e não o sobrado, o laboratório exacto onde se processou a síntese de culturas e a apropriação pelo negro e pelo mulato de elementos e expressões civilizacionais portugueses. A cultura fez-se de baixo para cima. Não se fez da Casa Grande para a sanzala como sugere G. Freyre."(53)
As expressões de cultura mestiça formaram-se possivelmente no funco: a língua crioula; o folclore poético,musical e novelístico; a culinária; os motivos de recreio; o folclore das adivinhas, dos provérbios; os festejos populares; as superstições, os hábitos de comportamento." (54)
Ver tese de Teixeira de Sousa, publicada na Revista Claridade:
A ascensão económica do mulato na ilha do Fogo processou-se nos nossos dias: os grandes latifundiários brancos, donos das terras e do comércio, viram-se a certa altura em apuros sérios e não tiveram outro caminho senão passar as terras, o comércio e os prédios urbanos - os sobrados - àqueles que até então tinham sido miseráveis moradores de funcos ou simples caixeiros...(55)
Ver consequências, p. 55 e 56.
Obras de Teixeira de Sousa: Contra Mar e Vento
Ilhéu de Contenda
Capitão de Mar e Terra
Xaguate
Djunga
Na Ribeira de Deus.
Teixeira de Sousa, romance Na Ribeira de Deus, Pub. Europa-América, 1992
Ler o simbolismo do título do romance na Lenda Africana: a injustiça rácica parece (?) ter origem divina - em epígrafe.
Aparição de Nossa Senhora do Socorro, a 5 de Agosto , há séculos.Desde daí, o milagre é festejado.
Romagem a Nossa Senhora do Socorro.Reconstituição do cortejo. A acção inicia-se no dia 5 de Agosto de 1918.
Motivo: Levavam não apenas a sua devoção como também a fé num bom ano agrícola. Ainda os movia o desejo de passar um dia diferente do rame-rame de sempre. (15)
(...) Os campos andam ressequidos, Senhora. Sobre eles, chorai a vossa bondade... (15)
Costumava chover à hora da procissão.
Todavia o céu não mostrava qualquer indício de chuva.(18)
De quando em quando olhavam para o céu, em busca de um fiapo de nuvem que pudesse evoluir para chuva brava.(19)
Eram onze da noite quando a chuva começou a rufar nos telhados ...(22)
O lado profano: Rompe tocava harmónio, Nininha cantava e as raparigas dançavam - o autor dá uma atenção especial erotismo (17). Nininha, apesar da sua fragilidade é descrita como um vulcão:
"Ela costumava confidenciar às amigas íntimas que Rompe era o homem mais macho que havia no Fogo. Até a sua voz fazia estremecer a gente fêmea(...)Como é que uma criaturinha como Nininha possuía tanta fogueira no corpo?" (13)
Pena que o trovador (Rompe) não tivesse alguma instrução, não tivesse podido frequentar o Seminário de S. Nicolau...(17)
Retrato de Rompe - (17/18), por José Almeida
ver o problema da voz do narrador e dos modos de enunciação.13, 14,15,
Cantigas em crioulo:(14) - expressão da voz do povo caboverdeano.
O Grupo do Sete-Estrêlo - vestiam-se de branco. Brancos eram todos, menos um. (16) ... " rapaziada cujos valores se limitavam a cavalos e mulheres. Todos tinham curso comercial mas um só se ocupava com comércio, sequer com o dos pais." (17)
Ver ESTATUTOS (20) e ( 71,72, 73). As bases foram apresentadas por Anildo Vieira, o ESPERANÇA; e os estatutos foram redigidos por José de Almeida, o AMIZADE.
"Era uma constelação fulgurante de sete moços das melhores famílias, descendentes sem mescla da aristocracia que viera do Reino para povoar Cabo Verde. José Almeida seria uma excepção." (72)
A Educação do grupo foi forjada em Lisboa: teatro, fado, boémia. (72)
O PROBLEMA DA COR
O fascínio pelo branco:
" Os cavalos passaram, os cavaleiros soltaram gritos, as mulheres exultaram com aquela nota de grandeza.Como era bom parir filho de pai branco! "
A contestação em crioulo de Rompe:
Rapaziada di peli branco
nhôs roncâ, nhôs cuscumâ.
Chuba pingo crati - crati
ca tâ pagâ poera chon. (15)
tradução:
Rapaziada de pele branca,
roncai vossa vaidade
como a chuva de grossos pingos
que não chega a molhar o chão.
NHÔ SÉRVULO
Nhô Sérvulo até se colocou na sombra do alpendre, ao lado dos sete-estrelos. (16)
" Entrou e foi-se colocar perto do altar-mor(...) Ou seria que Nossa Senhora só pertencia aos brancos? Apesar de branca, a Mãe de Deus também atendia as criaturas de cor preta(...) Afinal de contas, era dono duma loja, vestia-se bem e sabia comportar-se numa igreja."(18)
Ver diálogo com NOCA (19)
Ver episódio do andor
Ver episodio do almoço (20, 21)
Ver episódio do depósito de 10 contos de réis no BNU (137 a 140): os sonhos de Sérvulo de Patim - comprar a nhô Augusto um pardieiro em Vila-Riba; ser o mordomo da festa de Nossa Senhora da Ribeira ( por ele descoberta); sentar à mesa quem bem entendesse;
Ver paralelismo com a festa de Nossa Senhora do Socorro, e com o papel desempenhado por Noca.
O professor JOSÉ DE ALMEIDA ADORAVA A ILHA MAS NÃO SE ADAPTAVA ÀQUELA REALIDADE SOCIAL, aos privilégios de determinadas famílias que se sentiam donas de tudo, até da Nossa Senhora do Socorro. Pessoalmente não tinha razões de queixa.Eram todos seus amigos. Mas amicus Plauto sed majus populi. (19)
Em S. Vicente... toda a gente valia por aquilo que era sob o ponto de vista intelectual ou social, fosse claro, fosse escuro. fosse moreno, fosse chamuscado. (17)
José de Almeida foi convidado a ensinar Português e Francês no novo Liceu de São Vicente, precisamente no momento em que se apaixona por Celina - conflito entre a carreira e a paixão. ( 122 )
José de Almeida surge, assim, como pretexto para acentuar a diferença entre S. Filipe e S. Vicente. Só que, agora, S. Filipe surge como espaço calmo, propício à leitura e ao estudo:
" Ambiente tranquilíssimo onde vinha lendo autores extraordinários como Eça, Zola, Flaubert, Tolstoi, Machado de Assis, Bilac, tudo obras emprestadas pelo P. Antão. " (123)
É também através de José de Almeida que o tempo histórico literário é referido, apesar de incompreendido por MANUEL CORCUNDA:
" - Porque os fez assim, sem métrica e sem rima?
- À moderna, à moda dos poetas de Orpheu.
- Poetas do Orpheu?
- Sim, são os poetas da revista Orpheu, último grito da modernidade literária em Portugal.
- Não conheço.(...) /De 1915 a 1918/ ( 147)
Já antes, José de Almeida recitara o soneto de Camões Busque amor novas artes, novo engenho, enquanto que Celina recitara NO BERÇO, poesia de João de Deus, no passa-noite ( da p. 113 à 120).
Estes dois momentos, aliados a outras referências a Eugénio Tavares, permitem-nos traçar o quadro literário da ilha do FOGO.
Outras referências:
(42) " Alice trajava um vestido de cambraia, alvo como a espuma do mar. Os olhos negros rivalizavam-se com os da Camponesa Formosa do poeta Eugénio Tavares, olhos negros de matar. "
(84) " Manuel Corcunda apressou-se a convidar Neca para essa morna de Eugénio Tavares. Era recente e intitulava-se Crecheu Más Sabi ( Amor Mais Doce).
(107) Rompe entusiasmado com a notícia da gravidez de Nininha - " Continuou naquele galope, agora a assobiar que nem a passarinha de penas azuis. Referir, aqui, o fenómeno da INTERTEXTUALIDADE - Poema de PEDRO CARDOSO, VII (Antologia, 162/163):
(...) O passadinha de pena azul,
Empresta-me o teu tinteiro
Para escrever uma carta àquele ingrato
Que embarcou, foi-se embora sem se despedir.
em crioulo no original:
O pasadinha de pena azul,
Imprestâm bu pena ma bu tintero!
Pam fazê um carta pa quêl ingrato
Que imbarcâ, el bai sim dispedi.
ESTILO
A animização: "Lá no alto sorriu a capelinha ...
O calão de nha Dibija.
A inundação nos funcos de Fonte-Lexo. Este bairro era constituído por braçais, pescadores e criadas de servir, para além de duas mais velhas, Dibija e Memento Cega.
A bigamia: Rompe tem Jujú e Nininha. Aliás, a romagem e a chuva estreitaram a relação entre Rompe e Nininha. A bigamia e a Guiné. Porém, era preciso não descurar o exemplo da gente branca - Nhô Caetano - 23
O erotismo associado a uma certa permissividade caracteriza Fonte-Lexo.
A linguagem popular, nomeadamente o calão de Nha Dibija - 23/24.
E sobretudo a solidariedade - episódio do café e da bolacha Capitão -:
" Aliás, a solidariedade chegara ali e parara. Nesse aldeamento cerrado de funcos sobrevivia a solidariedade de tabanca onde Rompe agia como chefe, memento Cega contava histórias da escravatura e Mateus de Herédia evocava a resistência tribal para valorizar a sua intervenção na guerra de pacificação da Guiné. " (26)
De notar a influência da Guiné - relembrar as origens de Cabo Verde.
Espaço pobre, como os seus habitantes:
" As coberturas de monduro não aguentavam tamanha força de água. Minutos depois , os funcos de Fonte -Lexo enxarcavam-se até aos ossos."23
3ª parte
Este espaço estava condenado "pela facção em luta contra o poder local".28:
" A oposição planeava alargar até ali a área urbana, acabando com aspalhotas cobertas de monduro e folhas de carrapato, mesmo ao lado de casas decentes."
" Dentro das áreas urbanizada e urbanizável não podiam existir vestígios de vida tribal. delenda quoque Fonte-Lexo, disse José almeida ironicamente."
" Urgia desocupar as palhotas, deitar fogo às coberturas de monduro, remover as pedras e os cadáveres das pulgas , piolhos e percevejos."29
Chamar a atenção para a importância da repetição na formação do ponto de vista.
Encontramos, assim, três espaços: Fonte-Lexo, Vila-Riba e Vila- Baixa.
O espaço primitivo e o espaço urbano.
O espaço urbano estava subdividido:
(...) Diga-se de passagem que o Meio da Rua era a fronteira comum das duas vilas. A Norte imperava nhô augusto. A Sul reinavam nhô simão, mais os acólitos. Na zona setentrional, segundo a classificação de José de Almeida, cultivavam-se o progresso e a alegria. Na zona Sul morria-se lentamente de tédio e de mediocridade." (73)
Temos, assim, Vila Riba - habitada pela oposição ( as famílias tradicionais, " repúblicanos e anti-clericais" (130), cuja " Ala dos namorados " era o Sete-Estrêlo). O chefe era o Sr. Augusto Carlos Barroso.
O projecto da oposição punha em causa a existência do espaço primitivo:
" Só que Fonte-Lexo estava condenada pela facção em luta contra o poder local. "28 E em Vila-Baixa - habitada pelo poder local ( "uns talassas jurados" (28), que se mantinham no poder, apesar da implantação da República, desde 1910).
As principais figuras: Nhô Simão Administrador; Nhô Caetano da Veiga ... o capitalista (luta pela delegação do BNU ); Nhô Guilherme, presidente da Câmara; Nhô Simplício, Juíz Municipal; Nhô Alfredo, secretário administrativo; Nhô Albino, subdelegado do Julgado...
Deste modo, apesar do sobrenome "Ala dos Namorados", também o Sete Estrêlo defendia os ideais republicanos:
Ponto de vista dos talassas: "Além disso, o grupelho recém-formado não passava duns aventureiros capazes de subverter a ordem, de alterar a tradição, de levar a sociedade ao caos. Havia mais. Havia o facto de preconizarem medidas que estavam em contradição com a sua republicanice regeneradora como, por exemplo, a ideia de acabarem com Fonte Lexo."
Ponto de vista do narrador: " Só isto, à partida, lhes estava a tirar a simpatia da gente miúda."...
O retrato do Poder Local é muito pouco favorável: p. 28, episódio da recepção feita pelo Administrador ao Naturalista francês, M. Gibert Fleury.
O Poder Local representa o Ancien Régime, apesar da acção da Igreja não se fazer sentir.
Fundamental ler a pág. 68 e a pág. 75
Só o espaço primitivo apresenta potencialidades, em termos de utopia: a solidariedade da tabanca. Porém, corre o risco de ser destruído, apesar de Rompe, em diálogo com Nininha, o negar:
" - mas dizem que vão acabar com Fonte-Lexo.
- Acabam nada. A gente não deixa.
- Ouvi essa conversa aqui em casa. Que se nhô Augusto vier a ser presidente da Câmara, ele manda destruir e queimar Fonte-Lexo.
- Entâo vamos ter guerra. " 39
5ª Parte
A instrução de Rompe ,35 a 37: a professora Nininha; os materiais: a Cartilha de João de Deus, a ardósia, o lápis; nhô Valentim e a iluminação pública...
Objectivo da instrução:
" Rompe precisava de romper com a escuridão que o envolvia. Precisava de branquear o negrume da sua cabeça com a alvinitência do saber. João de Deus seria o primeiro evangelho. Com a Cartilha Maternal iniciaria Rompe a caminhada para um mundo mais aberto. Que sabedoria tinha ele, mas era sabedoria de funco e nãos os conhecimentos de quem tivesse aprendido a ler e a escrever( ... ) " 35
Ver ainda reflexão sobre a instrução na Metrópole, 37.
Na Ribeira de Deus, de TEIXEIRA DE SOUSA
OBJECTIVOS:
- Comentar sociologicamente a Obra: - campo socio-histórico: factos sociais , categorias sociais, valores e sistemas de pensamento;
- significação sócio-histórica;
- Comentar linguística e estilisticamente a Obra: - normas linguísticas;
- léxico ( nome de casa e nome de igreja ), sintaxe, níveis de língua;
- modos de exposição;
- processos retóricos;
- estilo e visão do mundo: A IRONIA.
EIRON> IRONIA
" Paredes meias com o humor, o sarcasmo, a sátira, o termo aparece, por vezes, confundido com designações mais gerais, como cepticismo, troça, quando não impostura ( ignorância fingida) ou até mentira, e não acabou por ocupar uma terra de ninguém. "
Maria de Lourdes Ferraz, A ironia romântica, p. 15
Acepções:
Ironia " significa o contrário do que se diz ".
Para Fontanier " le contraire de ce qu'on pense, ou de ce qu'on veut faire penser."
Diz, porém, mais do que fica expresso.
Revela, sobretudo, uma visão crítica do mundo.
Toute acte ironique est avant tout une tentative de désagrégation du réel bourgeois.
É uma prática cognitiva ( Sócrates ) mas também uma prática persuasiva - o lado argumentativo do método.
É como arte de persuasão, estimulando em nós convicções e opiniões que, a ironia, enquanto figura, revela um estilo, uma atitude, um tom, que persegue o objectivo de não só movere, mas vencer, ou melhor, convencer.
A ironia só pode ser reconhecida porque fala e, como diz sempre uma época, um tempo, um modo de arte, é através da sua manifestação concreta, da observação dessa manifestação e sua consequente caracterização, que melhor a apreciamos.
" Concluindo: a ironia, como fenómeno eminentemente comunicativo, patenteia, de um modo claro ou escondido, uma inter-relação necessária entre os elementos constitutivos de uma estrutura que se apresenta as mais das vezes complexamente enredada, tendo como linhas mais constantes a possibilidade de subdivisão do emissor (auto-ironia), de subdivisão do destinatário (sarcasmo) ou o enfoque da mensagem ( uma ironia dramática em potência: a sátira).
A ironia dramática será a expressão mais acabada da ironia: jogo de contrastes absoluto até à pura contradição, obscurecido que está o agente, eliminada que é a nomeação do destinatário." ibidem