14.11.12

Dia XXXIV

Os alunos de Literatura Portuguesa não chegaram a entrar na sala de aula, apesar de dois se encontrarem no recinto escolar. (Não se pode dizer que tivessem feito greve, mas que a ausência foi geral não há dúvida!) Esperemos que o tempo tenha sido aproveitado para realizar o projeto individual de leitura.

13.11.12

Ouvir e apagar logo-logo

«Ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir e apagar logo-logo.» José Cardoso Pires, DE PROFUNDIS, Valsa Lenta

Capaz de ouvir, perceber e argumentar com acutilância, vive, no entanto, no limiar da afasia. Diante de si, o pânico da deterioração da linguagem, da expressão desconexa, do registo errado do termo, da hesitação. A cada passo, a hesitação! E o circunlóquio, traiçoeiro, capaz de arruinar a comunicação...

Enquanto o acidente vascular cerebral está a decorrer, sob a forma de lentíssima isquemia, ele corre para a página em branco na esperança de ainda chegar a tempo de registar aquele lampejo de felicidade que lhe sorri nas palavras encantadas do leitor do dia, antes que tudo se apague irremediavelmente.

Ao contrário de José Cardoso Pires, ele não espera pela consumação do AVC, pois sabe, de antemão, que não lhe será concedido tempo para qualquer reconstituição feliz da memória...

Para ele, o acidente vascular cerebral está em curso, mesmo que, um dia, de forma brusca, se torne oficial e sem regresso. Por agora, o mais difícil está em chegar a tempo e em disfarçar a hesitação.   

Dia XXXIII

Por vezes, os dias são enfadonhos! Hoje, no entanto, há acontecimento. Três alunos apresentaram oralmente obras de épocas distintas, mas significativas: O Auto da Alma (1518), de Gil Vicente; A Birra do Morto (1973), de Vicente Sanches; De Profundis Valsa Lenta (1997), de José Cardoso Pires . As duas primeiras no âmbito do contrato de leitura; a última no âmbito do projeto individual de leitura.
Sem qualquer ajuste prévio, as três tratam da vida e da morte, cada uma à sua maneira. Para a primeira, alegórica, a morte feliz é um lugar que deve ser metodicamente  preparado, apoiando-se na Igreja e nos seus Doutores ( os pilares da  estalagem); para a segunda, burlesca, a morte deve ser evitada a todo o custo mesmo que os regulamentos sejam taxativos quanto ao destino de quem, por erro, seja oficialmente declarado morto; para a terceira, é possível regressar da morte e, sobretudo, através da escrita parece possível reconstruir a memória de um tempo sem retorno... e esse renascimento é de lenta aprendizagem...
(Os leitores - Eduardo, João e Diana - estão de parabéns porque deram conta do prazer que a leitura lhes despertou e porque conseguiram cativar os respetivos auditórios.)
    

12.11.12

Dia XXXII

I - A referência deítica. Volta a ser necessário clarificar o significado de deítico como apontador, indicador para o exterior da linguagem ( do signo linguístico: significado+ significante) - o referente. Também este último termo oferece resistência, embora o princípio esteja no objeto, na coisa (res). Afinal, na família de palavra, encontramos: referir, referir-se a, referente, referência, referencial... O jogo de palavra acabou por  gerar uma comparação com docência, docente / ensino, professor, ensinar... Falta, no entanto, o verbo docere
II - Novo problema terminológico: distinguir o valor deítico do valor anafórico de certos termos. E abstive-me de problematizar o significado do vocábulo valor. E a dificuldade começa com a necessidade de recapitular o significado de anáfora (retórica, tropologia, estilística) - figura de repetição de palavra ou expressão no início de verso ou de frase...

III - Na Literatura, a dificuldade resulta da falta de atenção, (alheamento quase involuntário, estado de alma intermitente). Mas lá caminhámos lentamente do neoclassicismo das duas arcádias (Arcádia Lusitana e Nova Arcádia) que apostavam no lema inutilia truncat (objeto: barroco) para Almeida Garrett que, embora formado como árcade, vai rompendo com o rigor da mimesis clássica para um terreno mais popular, mais intuitivo e mais sensorial. Claro que foi necessário regressar à educação de Garrett, mas também voltar a explicar a importância ideológica e literária de um projeto como o Romanceiro. Esta mistura do arcadismo com a oratura torna-se explosiva!
E por isso nos ficámos no poema "Sine nomine corpus" / Corpo Despido. E também a interpretação se torna penosa, fundamentalmente porque, em termos de composição, Garrett apostou numa comparação, e o intérprete continua sem perceber que a comparação supõe dois termos e que, neste caso, o primeiro termo serve o segundo. O romântico fala da sua tristeza, da sua desilusão e para melhor explicar como chegou a esse ponto recorre à comparação com a árvore abrasada pelo fogo do estio, como se a intensidade da paixão acabasse por ser a causa do seu apagamento... e por isso o poema começa por "Qual tronco despido (...) Assim ao prazer, /À dor indif'rente, /Vão-me horas de vida..."
Talvez amanhã enxerguemos o árcade que habita nas Flores sem Fruto!

11.11.12

Duas ideias a propósito do futuro

«Quando o passado foi um pesadelo escuro / quem é fiel ao passado atraiçoa o futuro.» Os versos são de Tomás Ribeiro Colaço (1899-1965), citado por Maria Archer (1899-1982) num artigo intitulado A Gente Nova e a Emigração, Cadernos Coloniais, nº 32.

A - O atual partido socialista necessita de, uma vez por todas, romper com o passado recente, mesmo que pressinta / saiba que a situação que vivemos não resulta apenas de cegueira ou excessivo optimismo de anteriores governantes. O PS não pode continuar a viver na ambiguidade! Se este partido não separar as águas arrisca-se a ter o destino do partido socialista grego... e o país ficará à deriva.

B - Quanto ao futuro da gente nova, nas palavras esclarecidas de Maria Archer, só fará sentido emigrar se levar consigo «mais do que braços obreiros e boca faminta». Pelo menos, esta gente nova necessita de conhecimento e de técnica. « Quem emigrar confiando apenas no arrimo dos braços procura o coval das suas esperanças.»




Interlúdio X

I - De modo a preparar a leitura do texto " 1 de Fevereiro de 1908", de Raul Brandão (Manual 32-33), clica nos seguintes links:
http://histeblog.blogspot.pt/2010/11/o-regicidio.html
http://www.youtube.com/watch?v=GCcCEC8YGPg

8.11.12

Do trabalho

Por razões que para o caso pouco interessam, em 1998, interrompi uma linha de investigação que, agora, retomo. Seguia à época um caminho de leitura centrado no continente africano e, sobretudo, nas imagens construídas pelos africanos e pelos europeus. Exercitava, então, um tipo de leitura que considerei imagológica.
Nos Cadernos Coloniais, editorial Cosmos, Lisboa, 1936, é possível identificar muitas dessas imagens que ajudaram a desenhar o imaginário do colonizador, mas também o daqueles que, desde cedo, combateram o colonialismo.
O Caderno nº 31 é constituído por um conjunto de artigos da responsabilidade do Padre Alves Correia (1886-1951). Vale a pena, creio, indicar aqui os títulos: a) Processos educativos, antigos e modernos, nas Missões religiosas portuguesas; b) Na evangelização da África; c) Na Índia  Japão e China; d) Processos peculiares em Solor e Timor; e) Brasil coroa do nosso apostolado; f) Nas missões ressuscitadas / Processos Novos.
Fácil é perceber que os agentes da missionação não aplicaram o mesmo modelo de educação /evangelização no terreno e que a doutrina era condicionado pela imagem que as ordens religiosas tinham do outro e, consequentemente, do lugar que poderiam ocupar no futuro dos territórios.
E quanto à visão do outro (do mundo) do Padre Alves Correia basta ler o seguinte excerto:

«Hoje está assente, entre todos os missionários do mundo, que a civilização cristã deve basear-se na organização do trabalho total do homem evangelizado; que a catequese doutrinal é pouco menos que inútil, se não se tiverem formado hábitos de trabalho nos catequizados; elevação do nível da vida, necessidades morais provenientes desta elevação, meios de satisfazer tais necessidades promovidos pelo exercício da actividade física e desejo crescente de instrução, que leva o homem à educação da inteligência, do coração, como do próprio corpo.»

Ora, parece que, atualmente, os nossos governantes têm fraca imagem do trabalho! E insistem em destruí-lo, sem perceber que é muito mais fácil destruir do que construir.