17.4.06

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Domingo, 16 de Abril de 2006 As respostas débeis 
Hoje, domingo de Páscoa, apesar de ter gasto o dia em múltiplas actividades - assistência à família, análise de portfolios, discussões gratuitas - continuo sem saber como abordar a doença, como distinguir a lucidez da patologia. E se a doença não for mais do que uma desculpa que inventamos para não assumirmos determinados encargos? E se, afinal, a doença não é mais do que a máscara da lucidez? E se a causa do sofrimento não está no outro, mas em nós? Todos os dias, imaginamos mil sintomas que nos ajudam a esconder as nossas dúvidas. Todos os dias, acusamos os outros de intenções que nós próprios ocultamos. A debilidade das respostas resulta de uma mentira entranhada, de mil mentiras legitimadas por rituais milenares em que gostamos de nos escorar. E por isso, creio, que a consciência pesa um pouco mais neste domingo de Páscoa, pois, afinal,a ressurreição não passa de «uma nuvem fechada». 
Quarta-feira, 12 de Abril de 2006 A debilidade 
Como lidar com a debilidade? Sobretudo com aquela que aparenta estar lúcida, mas que esquece que não pode - ou será que não quer? - caminhar. Como estabelecer a fronteira entre o poder e o querer? Esse território de indecisão cria em nós um sentimento de impotência, mas também de fingimento de quem aprendeu a acredtar que o jogo é mais do que um espaço de simulação - será mesmo um espaço de superação!? O jogo que oculta a realidade permitir-nos-á ir à antiga casa, ao cemitério, almoçar, como se estes gestos pudessem ter significado. Mas que significado? Um significado de ajuste de contas? de traição? ou apenas de um acto de piedade? A debilidade da resposta é assustadora... 
Em torno de Ávila 5 de Abril de 2006 
O percurso até Ávila não se revelou difícil, pelo menos até às imediações. Aí tudo se complicou um pouco - os espanhóis continuam a construir autovías e a cercar as cidades de múltiplas circulares. E quando isso acontece, não há plano de viagem que resista: a carretera 403 tornou-se longínqua, fazendo desaparecer o camping de Sonsoles. Apenas vislumbrei o Santuário de Nossa Senhora do dito cujo, de regresso à 403, direcção Toledo. Estrada de difícil traçado que acabou por nos levar a um curioso camping “Pântano del Burguillo”, situado sobre a carretera C-902 direccion Navaluega. Percurso total: 600 km. Curiosamente, não havia qualquer outro campista. Ficámos sós e fechados no camping, na companhia do león, um elegante e possante cão de guarda. O dono decidiu ir dormir a casa, deixando-nos o seu telefone de casa para qualquer eventualidade. No entanto, como verificámos, não era possível contactá-lo pois não tínhamos rede nem acesso à Internet. Entretanto, o león começou a ladrar. Vá lá saber-se porquê? 
6 de Abril de 2006 Visita à lagoa (embalsa), ao rio e aos rochedos que caracterizam o Pântano del Burguillo. Tudo muito rochoso e agreste. O extraordinário aqui são os salmões(?) que sobem o rio num esforço titânico, lutando contra a impetuosa corrente e os declives que dificultam a subida do rio. A natureza – flora e fauna – dominam neste território onde poucos humanos parecem viver. As águias senhoreiam os penedos, escondendo as crias. Ao fim do dia, chegou uma outra família de campistas que veio ocupar a roulote que já lá se encontrava. Quanto ao dono (?) do camping, que nasceu em Bodajoz e há muitos anos passou férias em Tróia, tendo de caminho visitado Lisboa e arredores, continua fascinado com a pequenez das celas do convento dos capuchos em Sintra. O pai dele é que gostava de futebol tendo o hábito de atravessar a fronteira, para assistir aos embates entre o Real Madrid e o Benfica, no Caia. A estadia neste camping foi singular até porque o estalajadeiro estava sempre ausente, nomeando-me mesmo chefe de campo. Talvez por isso, acabei por me livrar duma viagem de barco em que o motor começou a deitar fumo… 
7 de Abril de 2006 Percurso: Pântano del Burguillo– Barráco – Ávila – Piedrahita – El Barco de Ávila – Jerfe (Parque natural: Garganta de los Infiernos) – 146 km Entre El Barco de Ávila e Jerfe, a estrada é extremamente sinuosa. Velocidade recomendada: 30 km. Espectáculo deslumbrante de cerejeiras em flor. As encostas da serra nesta época estão completamente brancas. «Os cumes blancos». Ávila Não foi difícil estacionar a autocaravana. Estacionámos perto da porta del Rastro, quase que instintivamente, pois alguns minutos mais tarde já nos encontrávamos no interior da Igreja de Santa Teresa de Jesus. Posteriormente, visitámos o museu de Santa Teresa que corresponde a um espaço desnivelado, aparentemente subterrâneo, composto por várias salas revestidas a tijolo e cujas abóbadas são arqueadas. A vida e a obra de santa Teresa e mesmo de S. João da Cruz estão muito bem representadas, quer através do depósito dos originais quer da obra traduzida em diversas línguas, como o polaco, o chinês, o grego, o alemão… Havia também várias marcas das passagens dos papas Paulo VI e João Paulo II. Na Institucion – “Gran Duque de Alba” vimos a exposição VETTONIA cultura y naturaleza: Qiénes eran los vattones?; Los verracos. Significado y cronologia de los verracos; la sociedad vettona… Catedral de Ávila e Museu (mistura de estilos). Recheio riquíssimo. Sobretudo uma enorme custódia em prata do séc. XV… Praça de Santa Teresa Porta del Alcazár Convento de Santa Teresa de Ávila (sobre a casa em que ela tinha nascido) Comboio Turístico – 30 minutos 8 de Abril de 2006 Pernoitámos no camping Valle del Jerte. Foi enchendo ao longo do dia. Visita à reserva natural de Garganta de los Infiernos. Ruta de los pilones - Ida e volta: 2 h e 45 minutos. Percurso acidentado que, nesta época, é muito bonito, pois a natureza desperta, as cerejeiras florescem, vendo-se (e ouvindo-se) os rápidos dos rios que correm impetuosamente em consequência do degelo da Sierra de Tormentos. O percurso termina junto de pequenas cascatas muito procuradas neste fim de semana. Há mesmo uma «fuente» e, também, quem aproveite para fazer pic-nic. 9 de Abril de 2006 Continuamos no camping Valle del Jerte. De manhã, fomos a pé, por entre cerejeiras em flor e ouvindo diversas aves, caso raro, entras elas o cuco, até à localidade de Jerte. 45 minutos para cada lado. Um pueblo simpático com início junto ao rio do mesmo nome, e uma igreja antiga, de pedra, e muito bem decorada. Produtos locais: licor de ginja, sabão de azeite, chocolate de azeite, queijo, também, em azeite…hurdanitos (rebuçados) de mel e pólen de las Hurdes… um domingo tranquilo. Neste fim de semana, tivemos tempo para verificar que a Garganta de los Infiernos é muito procurada por famílias, namorados, grupos de escoteiros e mesmo por um grupo de cerca de 50 pessoas vindas de Huelva (?). Os espanhóis continuam barulhentos, mas revelam-se asseados e amantes da Natureza… não deixam lixo em lado nenhum. Imagine-se o que seria se a Garganta de los Infiernos fosse visitada por portugueses! Um pouco à margem tenho lido um Boris Vian surpreendente, alternando com uma releitura morosa e profissional (?) do Memorial do Convento de Saramago. Creio que a imaginativa de ambos se equivale, embora Saramago se torne mais cansativo. Há em ambos uma nítida vontade de perturbar o leitor, de lhe mostrar o avesso das coisas e dos seres. E a Isabel, atenta às flores, já por aqui encontrou os saramagos, que recentemente tínhamos visto, em abundância, em Aljezur. 10 de Abril de 2006 Ainda não deixámos o camping Valle del Jerte. Entre Jerte e Cabezuela. O percurso pedestre de 4 km revelou-se um fiasco. Afinal, os espanhóis também colocam o entulho («escombros») em lugares protegidos! O que não nos impediu de caminharmos (90 minutos: ida e volta) na direcção de Cabezuela, tendo aproveitado para comprar alguns produtos locais, designadamente separadores de alabastro(?), para estantes de livros. A pedra, no entanto, provém de Saragoça. Hoje, 2ªfeira (lunes), no camping tudo está mais calmo, apesar dos escoteiros continuarem os seus constantes jogos e cantorias. Nos acessos à Garganta de los Infiernos, mantém-se o movimento dos dias anteriores. 11 de Abril de 2006 Regresso a casa. Por muito que estude o mapa, ainda não consegui decidir que percurso vou fazer. Inicialmente, deslocar-me-ei para Plasencia, embora saiba que valeria a pena voltar para trás (direcção de Ávila) para ver mais uma vez as cerejeiras em flor. É uma paisagem deslumbrante, mas o caminho é tão tortuoso! É importante notar que, apesar dos vários choques tecnológicos, aqui, as comunicações são difíceis. Durante todos estes dias não consegui aceder à Internet, nem telefonar para a nossa filha que se encontra em Pécs, na Hungria. Apenas contactámos por sms. Acabámos por regressar a Portugal através da EXT108, num percurso total de 403 Km. Terça-feira, 4 de Abril de 2006 Portela - Ávila A expectativa é grande. As pedras de Ávila testemunham uma história feita de glória (santidade, valentia) e fanatismo (despotismo e sofrimento). Não sei bem como é que vou encarar esse passado inquisitorial. Vamos partir amanhã - cedo? -,mas sem a obrigação de cumprir um horário. Pernoitarei certamente antes de chegar a Ávila. Resta saber se à beira da estrada ou em algum parque de campismo. Na Castilla - Léon não há muitos parques, sobretudo nas cidades, ao contrário do litoral espanhol. Esqueci-me de dizer que esta descontracção resulta de viajar na minha autocaravana. Espero que isso não desperte qualquer sentimento de inveja. Como é que Boris Vian encararia Ávila? _________________________________________________________________________________ A MORTE 3/3/2006 Estranhamente Irrompe das ruas desertas a mudez das casas Enleia as roseiras a ervagem daninha Agoniza ao sol de Inverno secreta tubagem Estranhamente procuro o lugar a voz a rosa a calma Estranhamente ouço o eco da enxada, da gadanha, do arroio Estranhamente caio e fico lá num não-lugar Enleado em mim mesmo 2/3/2006 Passei por lá Passei por lá e não te vi! Reflectia só a modesta jarra Sombra ténue da tua presença. Passei por lá e só ouvi Sob a capa da terra O eterno incómodo dum involuntário queixume. Passei por lá e não senti a força da tua mão E saí a procurar flores esquecidas da tua presença. Passei por lá e só vi o olhar vazio do corvo faminto. 1/22/2006 Aproxima-se Cercam-me os fios dos teus cabelos nocturnos silenciosos Despontam em números proibitivos os teus ávidos dedos Parecem querer aproximar-nos no mar largo que fica para além do Sol 1/7/2006 Se tu soubesses Um lugar onde seduz um rosto sem luz Se tu soubesses O lugar donde partiste tinhas ficado um pouco mais Se tu soubesses As máscaras que nos cercam tinhas ficado um pouco mais Um lugar onde seduz um rosto sem luz Se tu soubesses que as máscaras ensaiam uma dança metálica de espectros Se tu soubesses O lugar que me deixaste tinhas ficado um pouco mais Um lugar onde seduz um rosto sem luz 12/15/2005 Um pouco mais cedo... Para ti, que lutaste sempre, Que nunca pensaste que o teu fim estava ali, naquele lugar branco, Asséptico. Que nem sequer esperaste pela meia-noite! Foste embora um pouco mais cedo... A morte é sorrateira, apressa-se invisível, Esconde-se dos sentidos, destrói numa euforia devastadora. Em certos casos, no entanto, a morte é mais leve do que a vida. Anoitece apenas. A vida, essa, pesa desmesuradamente. Absurdamente.

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