20.9.07

Quem me dera…

O trovão expande-se, de forma arrastada; o relâmpado ziguezagueia faiscante. Do 12º andar, procuro o Tejo, mas, na noite, ele esconde-se no negrume, insensível à revolta dos elementos. Fartos dos excessos dos heróis e dos vilões, dos mourinhos e dos scolaris, de códigos penais à la carte, do capotamento diário dos camiões, os céus entraram em fúria e travam lá nos cimos um combate sonoro e luminescente que ameaça a mesquinhez das nossas rotinas, das nossas vaidades.

E de repente, o contínuo ribombar do trovão arrasta-me para o final do canto I de Os Lusíadas, e fico a pensar no Poeta, fascinado e humilde, mas revoltado contra os homens que não contra a Natura:

 

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

 

Entretanto, o céu parece começar a serenar, deixando que um rasto de luz se precipite sobre aquele Tejo sonolento que eu não vejo, mas que suspeito que continua a correr para o grande Oceano. Quem me dera partir com ele!

16.9.07

De regresso…

Parece-me que, nesta última semana, o lagarto atravessou o Atlântico para se rir de mim. Não sei se tem duas caudas ou apenas uma, mas sei que eu pareço ter duas caras. De facto, deixei que me elegessem novamente para um cargo a que prometera não voltar. No entanto, senti que não podia dizer que não. Não podia esconder-me por trás da memória traiçoeira nem refugiar-me na debilidade que me esgarça os ossos. Esse tipo de argumentação enoja-me profundamente e, por isso, enquanto puder, resistirei.

De mim, ninguém poderá esperar abordagens que não sejam pedagógicas, o que significa colocar-me na perspectiva de quem defende um ensino mais eficaz, que nunca perca de vista a valorização humana de cada aluno, mesmo que isso signifique rumar contra o pragmatismo político, o carreirismo docente e o oportunismo de alguns encarregados de educação.

A tutela eliminou a pedagogia das escolas: o currículo e a disciplina substituíram a educação; no lugar do pedagogo instalou-se o jurista e avança-se com o delegado de segurança. A palavra de ordem é disciplinar. E para isso a peça essencial é o "regulamento interno", em permanente actualização…

E o lagarto, trocista, não deixa de sorrir, mas por enquanto vai ter dificuldade em assustar-me…

10.9.07

O Sorriso do Lagarto, 1989

De João Ubaldo Ribeiro, nascido em 1941, na ilha de Itaparica (Bahia, Brasil), o romance " O Sorriso do Lagarto" descreve-nos um universo brasileiro desconcertante. Neste romance, a transgressão é a regra: a linguagem de homens e mulheres é libertina; a sexualidade é ambivalente; a amizade é traiçoeira; a política é corrupta; a justiça é cega; a religião é dogmática; a feitiçaria é oportunista; a ciência é irresponsável.

As personagens brasileiras dão corpo à transgressão, anunciando um presente e um futuro que pouco tem a ver com a ética ocidental. O homem, apesar de civilizado, despe-se das luzes, e volta a dar corpo aos instintos mais baixos, mas não regressa à barbárie. Tudo parece normalizado. Tudo fica impune. O herói, ainda, é aquele que se distingue pelas suas acções, só que estas situam-se no vasto território da delinquência.

Quanto à linguagem de João Ubaldo Ribeiro, pode-se dizer que é esplêndida, impudica, cirúrgica e narcísica: nela reflecte-se a exuberância do Brasil, feito de perversão, de hibridismo, de ritmo e morte.

 

«Era um grande lagarto esverdeado e iridescente, que pôs a cabeça para fora de uma touceira de margaridas e o encarou, mostrando e recolhendo a língua repetidamente. O lagarto de João Pedroso, o lagarto que sorria, o lagarto que ainda ia sorrir mais? Não era possível que um lagarto sorrisse, mas a verdade é que, depois de se aproximar mais um pouco, sentiu que realmente havia algo de um sorriso em torno do bicho e não sorria para ele, mas como que sorria dele.»

op. cit, pág. 362, editora Nova Fronteira

3.9.07

Setembro, ao postigo…

O ano lectivo começa mal: no regresso, os professores fazem fila para preencher manualmente impressos que irão ocupar, durante horas, um ou dois funcionários que zelosamente introduzirão os dados em programas informáticos estanques. Lembra aqueles cronistas que sempre que lhes cabia narrar a história dos seus "senhores" recuavam a Adão e Eva… Afinal, para que servem os milhares de computadores espalhados por todo o país? Por outro lado, o próprio preenchimento dos formulários parece exigir um manual de instruções… Será, assim, tão difícil a um licenciado preencher o NIF, o NIB, o nº da ADSE, confirmar a morada, declarar se de um ano para o outro há alterações?

E quanto ao resto, o indizível…

Numas escolas, a actividade lectiva começa a 10 noutras a 17, dando expressão à autonomia organizativa de que usufruem. Os professores e os candidatos a professores manifestam-se um pouco por todo o país contra a ausência de emprego. Os responsáveis governativos descartam responsabilidades: a culpa é da reduzida taxa de natalidade, do abandono escolar precoce.

No entanto, parece estranho que um país que gasta milhões de euros com o envio de militares para os Balcãs, para o Líbano, para o Afeganistão, para Timor, não consiga traçar uma política de cooperação, por exemplo, com Angola ou com Moçambique que dê escoamento aos milhares de jovens (e não só) que, terminado o curso superior se encontram à deriva e à mercê de um patronato sem escrúpulos, sobrecarregando as famílias, já de si cada vez mais pobres. É estranho que este país não aposte na formação linguística dos milhões de emigrantes que se encontram espalhados um pouco por todo o mundo, como se a promoção escolar pudesse ser um obstáculo ao bom desempenho laboral do típico emigrante português: pau-para-toda-a-obra.

Qualquer sociedade que seja incapaz de gerar trabalho abre as portas à delinquência, à violência e, consequentemente, entra num processo de aniquilamento.

Ainda nem todas as portas estão fechadas, no entanto é preciso pensar a política de outro modo. A acção política deve dirigir-se à totalidade, alicerçar-se nas portas que o passado abriu e perspectivar-se em termos de futuro e não apenas de presente.

 

 

2.9.07

Em Setembro…

Sétimo mês do calendário romano. Para mim, há muito que Setembro é o primeiro…

Mais uma vez, volto à escola na expectativa de encontrar jovens sedentos de saber ou que, pelo menos, eu seja capaz de os motivar. Sei que alguns têm objectivos definidos e que procuram alcançá-los a qualquer preço. Sei, também, que muitos outros vêem na escola um tempo imposto e inútil e, por isso, cedo mostram o seu desinteresse, de forma passiva ou activa: os mais activos são os mais inconformados e rapidamente se tornam indisciplinados. (Diria que a indisciplina, ao contrário do que muitos pensam, é gerada pela própria escola, pelo próprio sistema educativo. No limite, todos os sistemas procuram disciplinar, normalizar, fazer obedecer, e, para o efeito, geram normas que convidam ao desvio, à delinquência.) Sei, ainda, que são raros os que se apresentam disponíveis para aprender sem exigir contrapartidas.

Neste contexto, confesso que me sinto cansado, pois, pela 33ª vez, o sistema me convida a fazer de conta que é possível modificar a heterogeneidade de atitudes sem alterar minimamente os objectivos, os programas, as técnicas de avaliação; convida-me a fingir que se eu for um "bom" professor, qualquer insucesso volverá sucesso; convida-me a aceitar que o fracasso dos meus alunos é o meu fracasso. Todavia, ao normalizar-me, o sistema convida-me à indisciplina (ou à desistência?) …

E quando chega Setembro, sinto que os muros se elevam e começo a ouvir, cada vez mais perto, o poema de Fernando Pessoa:

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além…

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

13.09.1933

 

31.8.07

A propósito do Dr. Vasco de Campos

Rita Campos

   

Muito obrigado pelo esclarecimento. A sua explicação sobre a génese e os objectivos da SPDA é oportuna e valiosa, pois muitos dos actos do ser humano devem ser vistos numa perspectiva altruísta e não apenas ideológica, no sentido restrito do termo.

Sou lisboeta de passagem: raros são os pinheiros que sobrevivem na capital e da "caruma" quase que já não há rasto.

   

29.8.07

As contas de Alberto de Lacerda (1928-2007)

A REDE

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo,

o que as palavras e as praias perpetuam

na alegria verde do amor,

devolve-me as estradas e o princípio,

o alegre princípio!

 

A fauna dilacerada refugiada no verso,

o silêncio de pedra das horas perdidas,

deixam outra vez aquela distância

onde encontro o palácio dos meus sete anos

e as portas monumentais ultrapassadas

só pela infância mortal duma beleza mortal

como Londres à tarde nos finais de Novembro.

 

O que sustento, o que eu descubro e não invento,

o que eu repito exaltadíssimo,

lembra às vezes a rede potente

que se desfaz, só na aparência,

para os que esperam duma forma errada,

para os que nunca se sentaram no meio da estrada,

para os que nunca sorriem por acaso,

e não se destroem num ritual preciso

igual às vozes puras da meia noite do mar.

 

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo

é a alegria límpida das lisas

planícies de certas visões insuportáveis de luz.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.

Eu canto o que existiu e existirá, glória suprema

Dos deuses e não minha.

                Londres, 11-1-54

 

(O poema é de Alberto Lacerda; os sublinhados são meus)

 

Nem Ideia, nem Luz nem Ideal

nem Compromisso nem Infância

a Pátria é uma quimera

a Vida uma ilusão.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.