O trovão expande-se, de forma arrastada; o relâmpado ziguezagueia faiscante. Do 12º andar, procuro o Tejo, mas, na noite, ele esconde-se no negrume, insensível à revolta dos elementos. Fartos dos excessos dos heróis e dos vilões, dos mourinhos e dos scolaris, de códigos penais à la carte, do capotamento diário dos camiões, os céus entraram em fúria e travam lá nos cimos um combate sonoro e luminescente que ameaça a mesquinhez das nossas rotinas, das nossas vaidades.
E de repente, o contínuo ribombar do trovão arrasta-me para o final do canto I de Os Lusíadas, e fico a pensar no Poeta, fascinado e humilde, mas revoltado contra os homens que não contra a Natura:
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Entretanto, o céu parece começar a serenar, deixando que um rasto de luz se precipite sobre aquele Tejo sonolento que eu não vejo, mas que suspeito que continua a correr para o grande Oceano. Quem me dera partir com ele!