28.8.22

Os espinhos da ordem

Ao ver escrito que uma professora foi nomeada bibliotecária escolar contra a sua vontade, a qual iria no sentido de pedir mudança de escola, não posso deixar de pensar nas palavras de Elias Canetti, Massa e Poder, pág 401, edição cavalo de ferro:

«Seja qual for a perspectiva por que a consideramos, a ordem na sua forma compacta e acabada tal como é hoje, após uma longa história, tornou-se o mais perigoso elemento singular na vida comunitária das pessoas. Precisamos de ter a coragem de nos opormos a ela e de abalar o seu domínio. Teremos de encontrar meios e vias para manter afastadas da mesma a grande maioria das pessoas. Não poderemos permitir que ela nos arranhe mais do que a pele. Os seus espinhos deverão tornar-se trepadeiras que possamos desprender com um movimento fácil.»

23.8.22

Rabiscos

(Quando não se tem nada para oferecer, o melhor é desaparecer. Para quê insistir no rabisco? O que ficou para trás cai no anonimato... e por lá fica enterrado.)

Hoje, perguntaram-me como é que me tratavam quando ainda podia incomodar. Fiquei perplexo pois, até na identidade, me fui alheando. Houve várias fases de que aos poucos fui escapando: o 'pulo' porque um avô gabarola confessou um dia que tinha saltado sete dornas e meia e os arcos de outra; o 'mata2', por causa de uma placa toponímica facilitadora da memorização de um atencioso enfermeiro; o 'cabeleira', para a maioria,  uma misteriosa alcunha; o 'cabeleira gomes', adotado na academia; e finalmente o 'manuel gomes', porque num certo momento do percurso o normalizador me reduziu ao nome próprio e ao apelido paterno...
Entretanto, fui perdendo o nome, porque a identidade deixou de ser preocupação alheia.

PS. Convém registar que também me identificaram, da cabeça aos pés, com os números /09633075/ e /252/. No último caso, o número colou-se-me de tal modo que ainda hoje o procuro nas peças de vestuário e na lotaria...

20.8.22

O Castelo



Manhã cedo. Ninhos artificiais vazios - as aves não se deixam enganar facilmente...
Na linha Verde, carruagens cheias de imigrantes asiáticos seguem para o Rossio e para o Cais do Sodré. Vão ao engano.
Eu saio no Martim Moniz, na esperança de que o corpo preserve o seu segredo, apesar do empenho em atraiçoá-lo...
Distante o Castelo, um corpo estranho que já não engana ninguém.
Ontem! 
E hoje, alguma coisa terá mudado?

17.8.22

Os dias

Há quem perca a noção de dia. É um pouco como se não houvesse ontem ou amanhã. 
O curso do tempo deixa de obedecer a qualquer convenção humana.
Esta indiferença acaba por provocar sobressaltos em quem sempre se submeteu à disciplina das horas, pois, inesperadamente, os factos misturam-se e a agenda perde grande parte do sentido inicil.
Onde se respira um pouco melhor é no passado: as memórias continuam organizadas, apesar de efabuladas.
A corrente desagua em ilhas singulares, distantes.

13.8.22

A intromissão

«Todo o ato de perguntar é uma intromissão.» No entanto, «antes de lhe ser feita a pergunta, uma pessoa, muitas vezes, não sabe o que pensa.» Elias Canetti, Massa e Poder, pp. 345 a 351, ed. cavalo de ferro

Ultimamente, tenho evitado fazer perguntas por mais que me apetecesse ouvir as respostas,  porque isso poderia deixar o interlocutor sem saber o que responder...
Por um lado, temo que à falta de perguntas corresponda um alargamento da ignorância e, por outro lado, receio que, afinal, a minha curiosidade não passe de puro abuso.
Fiquemos por aqui, deixemos as perguntas à matreirice de quem, antecipadamente, se preparou para o ofício da dissimulação.

9.8.22

Atos inacabados


Sinto que é meu dever andar devagar, no entanto todos me convidam a andar mais depressa, não por palavras mas por atos inacabados...
Atos inacabados são aqueles que solicitam a nossa a atenção para que os corrijamos, os completemos ou, por vezes, para que os realizemos na sua totalidade.
Pode parecer absurdo, mas o problema resulta mais do meu excesso do que da falta de zelo alheia. 
Afinal, nada se perderia se reduzisse a minha ação a assegurar algum sossego.
A verdade é que por este caminho, mais não sou do que uma assombração num mundo de marionetas.