18.5.07

As cadeiras que desrimam...

Um pouco por todo o lado, vemos cadeirões ser substituídos por cadeiras, num processo de rejuvenescimento prometedor.
Claro que me estou a referir aos assentos de responsabilidade: do Senhor Blair ao Senhor Chirac, para falar apenas dos mais ilustres... Por cá, o Senhor Costa promete libertar a capital do cadeiral, e colocá-la no mapa global (versão recente do mapa- mundo). Mas o Senhor Costa já há uns tempos que não lê o seu mentor republicano - Teófilo Braga - pois, se o fizesse, saberia que antes de olhar para o mundo, convém descer às caves, arejá-las, antes que as ossadas saiam dos armários e nos lancem numa batucada de arromba.
No entanto, duvido que o envernizamento das cadeiras consiga restaurá-las. Não é que eu tenha alguma coisa contra a limpeza das fachadas. Mas, de facto, falta-lhes o miolo. E quando este não falta, deve-se sempre mandar analisá-lo, não vá o verniz disfarçar a ferrugem ou, pior, esconder o bolor.
E a despropósito, vou citar BOLOR de Carlos de Oliveira: «Os versos/que te digam/a pobreza que somos/o bolor/nas paredes/deste quarto deserto/os rostos a apagar-se/num frémito de espelho/e o leito desmanchado/o peito aberto/a que chamaste/amor.
De facto, onde é que as cadeiras se cruzam com o leito?
(- Não há por aqui sombra de contexto!? Ou como perguntava um desencantado professor: Como é possível começar a dissertar sobre cadeirões e acabar em bolor a desrimar com amor?)

13.5.07

Cachimbadas na ponte...

Deixou de se fumar cachimbo nas varandas… O cigarro sai e entra pelas narinas, ao desafio, trocista, atravessa os pátios… Eduardo Prado Coelho, no dia 11 de Maio de 2007, no Público, voltou a referir-se ao «extraordinário professor», Mário Dionísio que teve no liceu [Camões], que fumava cachimbo e que teve a tentação de imitar. Mas EPC desistiu, quando percebeu que o seu «professor David Mourão-Ferreira tinha uma trabalheira imensa para conservar o hábito do cachimbo…» Será que os condiscípulos de EPC, Mário de Carvalho e João Aguiar também tiverem a tentação de imitar os mestres? (Uma pergunta por fazer) Eduardo Lourenço que nunca (?) terá passado pelo Liceu Camões, ao escrever, em 1968, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, não se referiu a Arquimedes Silva Santos, a Mário Dionísio ou a Manuel da Fonseca porque, apenas, convivera com os cachimbistas [apesar de não estarem obrigados a ser portadores do implícito] de Coimbra, designadamente Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. O que deixa adivinhar que desconhecia a fumaça dos cafés Bocage e Monte Carlo… E sem fumaça, o intelecto torna-se escorregadio, heterodoxo…
José Gomes Ferreira, a 30 de Dezembro de 1967 [com e sem cachimbo] interrogava-se indirectamente sobre o amigo Mário Dionísio (aqui, sem cachimbo!?): «Que toque de simpatia pública falta a este homem que, no entanto, pode gabar-se de ser amado até à idolatria pelos alunos dos primeiros anos do liceu [Camões]Dias Comuns III, Ponte Inquieta, Publicações D. Quixote. O mesmo José Gomes Ferreira, ex-Liceu Camões, com o José Bacelar, o Armindo Rodrigues. Sabem de quem se trata? Dixit: «Foi ali [Gil Vicente], naqueles corredores de ecos sombrios, sujos de passos apodrecidos de monges, que, liberto dos mestres-caturras do Liceu Camões (de má memória), se definiu, de maneira categórica, a minha vocação literária, sustentada por um grupo de professores que classifico sempre com este adjectivo de anúncio de filmes: sensacional. Senão, leiam o elenco: Leonardo Coimbra, Newton de Macedo, Ângelo Ribeiro, Câmara Reys, Damião Peres…»
Fico sem saber se no Camões se fumava mais ou menos do que no Gil Vicente. E pelos vistos, fumava-se dentro da sala de aula. Ainda, hoje, recordo esse cachimbista laureado que é o Álvaro Manuel Machado que nunca encetava o Paradiso do Lezama Lima sem nos cachimbar o espírito.
(De regresso, a JGF - A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, Portugália - vale a pena ler a nota sobre os professores supranumerários de 1914-1915, cuja missão consistia em velar pela ordem nas turmas durante a ausência acidental dos efectivos…) Os primeiros não tinham dinheiro para cachimbadas, mas nem por isso deixavam de ser cachimbados. Quanto aos últimos, mestres-caturras...
Ao longe, já avisto o cachimbo de Vergílio Ferreira a vocifrar com o cachimbo do Mário Dionísio...

(Se me distraio, ainda chego aos fumos da Índia...)

12.5.07

Sinais

- Vou por fora! Entro no vale titubeante a serra modesta! Ali do restolho emerge um poço - Um sonho! Lá ao fundo hesitante afasto-me da serra sempre distante A vinha verdece a brenha a ser cortada - Não, por mim! De súbito eleva-se a distante palmeira cercam-me em sufoco gritos refreados um velho pousado num varandim anoitece Subo por dentro linhas cruzadas e decido - Vou pelos semáforos!

7.5.07

Pobres deuses arruaceiros!

De costas para o esforço, para a persistência - ruidosos - preferimos a lamúria fácil...
Deseducados, ignoramos a letra e o sentido, e reclamamos, ciosos dos nossos argumentos...
Altivos ou falsamente humildes, esperamos a cedência, convencidos de que a felicidade beija a fronte dos futuros deuses...
Pobres deuses para quem o caminho é sempre inclinado! Em vez de o subirmos, rolamos pela encosta, sorrindo. Sorrindo sempre, até irrompermos num choro inútil e definitivo.
Pouco falta para que a Bastilha arda de novo!
No pinhal, os ancinhos já começaram a juntar a caruma.

5.5.07

A escória humana

«Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra sobre o assunto...» A Cinemateca Portuguesa presenteou-me, hoje, com um fantástico filme indiano, PYAASA, realizado em 1957, mas escrito em 1948. Um filme (musical) do realizador e actor GURU DUTT que interpreta um excelente poeta, incompreendido, desempregado, rejeitado pelos irmãos, condenado a viver nas ruas prostituídas e delinquentes de Bombaim. À beira do abismo, Vijay, o inspirado e mordaz poeta, só encontra algum reconhecimento naqueles(as) que com ele partilham a miséria – as vítimas desclassificadas de uma sociedade que apenas preza o dinheiro. Vijay não consegue publicar qualquer verso, vendo mesmo os seus poemas ser vendidos a peso pelos broncos dos irmãos. Poemas que foram cair nas mãos de uma romântica prostituta que, mais tarde, tudo fará para os ver publicados pelo rico editor que, efemeramente, deu emprego a Vijay… Despedido pelo patrão-editor, rejeitado mais uma vez pela apaixonadíssima namorada (esposa interesseira do editor) - morta a abnegada e impotente mãe, vítima do machismo dos outros filhos – Vijay procura o suicídio que acabará, involuntariamente, por lhe trazer uma morte oficial que o tornará num poeta celebrizado e adulado por todos, sobretudo por aqueles que o tinham rejeitado em vida. Morte oficial, mas não real, pois enquanto os corvos se abatiam sobre os milhões gerados pelos seus versos, ele jazia, sem nome, num hospital psiquiátrico. Descoberta a sua identidade, tudo foi feito pelo editor, pelos irmãos e pelos amigos para o apresentar como um impostor. Um ano depois da sua morte, o editor promoveu uma homenagem ao poeta que denunciava a vilania duma sociedade que tinha como único valor o dinheiro. O poeta acabou por assistir à mascarada organizada em seu nome, revelando que, afinal, estava vivo. Mas essa revelação trouxe um motim que o levou a renegar a sua identidade: naquela magna e manipulada assembleia em fúria, raríssimos eram os que se interessavam pela mensagem da sua poesia. Os próprios correligionários foram ao ponto de o raptar – os poetas. No final, acompanhado de uma casta prostituta que soubera valorizar os seus versos, Vijay volta as costas a Bombaim (à Índia), e caminha numa planície enevoada, liberta da escória humana. Em que é que nos distinguimos da Bombaim de 1957? Quando penso no tempo que vivi nos anos 50 e 60, fico sempre perturbado com a minha ignorância. E sinto que, também, eu fui silenciosamente preparado para não me distinguir da escória humana. NOTA: Este filme foi apresentado pela primeira vez em Portugal, a 22 de Outubro de 1986, na Cinemateca Portuguesa por ocasião da I Retrospectiva do Cinema Indiano.

4.5.07

Os valores da desmedida...

À nossa escala, a ideia de prolongar em mais de 600 km os mais de 2700 que constituem o curso natural do rio São Francisco é insensata, faraónica, megalómana, mas à escala brasileira tudo será diferente, mesmo para os 13 milhões de pessoas que irão ser afectadas. E porquê? Porque a água é um elemento fundamental para a construção do estado brasileiro. Sem ela, a água, o Brasil desmoronar-se-á.
Portanto, a desmedida, lá, no Brasil, pode ser justa, enquanto que, aqui, é quase sempre sinal de loucura.
A escala condiciona-nos a razoabilidade: colocamo-nos permanentemente em bicos-dos-pés, quer quando olhamos para trás quer quando olhamos em frente.
Andamos numa roda viva a desfazer. Odiamos a persistência e a consistência. Admiramos o improviso, damos laudas à boçalidade, à voz grossa. Pagamos para gozar a pequena intriga. Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra sobre o assunto...
À nossa escala, não deixamos, no entanto, de praticar a desmedida: O SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) perdeu o rasto de 200 caixas de fichas que nos permitiriam a avaliar (conhecer) o movimento das fronteiras, entre 1919 e 1975. Sem elas, ficamos impedidos de conhecer os êxodos, as migrações, as capturas, as deportações, o contrabando, a clandestinidade... o zelo de milhares de obedientes funcionários. E há anos que estas fichas deveriam ter entrado na Torre do Tombo!?
A medida da nossa desmedida é a irresponsabilidade que insiste em guardar ou em assaltar o poder.

3.5.07

A verdadeira medida da Desmedida...

Num tempo em que me dou conta da luta diária pelo poder, seja em França, no Iraque, no Irão, nos Estados Unidos, na Venezuela, em Angola... na Câmara de Lisboa ... ou, mesmo, na Esc. Sec. de Camões, não posso deixar de reflectir sobre a natureza excessiva desses combates. Nuns casos, porque os projectos são desmesurados e irrealistas, noutros porque inexistentes ou, pelo menos, subterrâneos. Raramente, os destinatários são envolvidos na construção dos projectos que, em princípio, lhes dizem respeito. Não sei se estamos perante um fenómeno que possamos classificar como desmedida!?
Sei, no entanto, que Ruy Duarte de Carvalho publicou, em 2006, um conjunto de crónicas a que deu o nome de Desmedida. Ler esta obra pode transformar-se numa viagem de consequências imprevisíveis, pois, cedo, desperta a vontade de seguir os caminhos do autor em torno do desmesurado rio S.Francisco. Mas segui-lo, supõe todo um programa, cujos contornos nos obrigam a viajar do séc. XVI ao séc. XXI, de modo a perceber por que motivo a colonização do Brasil foi diferente da angolana, apesar do colonizador ser o mesmo, apesar dos holandeses que procuraram simultaneamente ocupar os dois territórios, apesar do «brasileiro» ser fruto da mistura do branco europeu com o negro africano, apesar de, em momentos vários, o «brasileiro» ter sido atirado para os braços de Angola.
Numa viagem fascinante, Ruy Duarte de Carvalho dá conta da extensa investigação que fez no terreno, observando e lendo. Lendo e cruzando: Cadornega, Blaise Cendrars, Sir Richard Burton, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha... o engenheiro Theodoro Sampaio - verdadeiro protagonista da desmedida brasileira... Tudo para poder responder às perguntas do velho Paulino e, sobretudo, quando for visitar os pastores cuvale, pois, há muito que o autor chegou à evidência:
«Quem é analfabeto nada lê, de facto, e também de facto pouco ou nada lêem aqueles que beneficiaram de aprendizagens modernas mas evitam, recusam mesmo, porque antes de mais lhes intimida, toda a escrita que não lhes proponha uma sopa de letras liquidificada pelas tecnologias da mediatização, ou propostas ditas literárias devidas a talentos jornalísticos assim-assim que para se imporem chegam até a vigiar-se de muito perto, não venham a incorrer na desvantagem de querer voar eventualmente mais alto, o que aliás acabaria, quem sabe, por revelar, também, a efectiva tibieza dos seus talentos.» op.cit, pág. 225
No que me diz respeito, creio que, por uns tempos, vou viajar com Ruy Duarte de Carvalho para que ele me possa guiar pelos sertões da alma humana, à procura da verdeira medida da desmedida...