21.10.07

Adeus, Até amanhã

Este documentário de António Escudeiro deixou-me uma estranha emoção. Ao ver aquelas imagens do passado e do presente do Sul de Angola, senti que também eu regressava a lugares familiares. Lugares povoados por brancos que construíram cidades, o pioneiro caminho-de-ferro de Benguela, portos à escala internacional, pesqueiros… Mas o meu regresso é bem diferente do de António Escudeiro: ele nasceu lá, filho de engenheiro que chegou a director do caminho-de-ferro; estudou lá, em escolas, onde predominavam os brancos e os mestiços. Nessa Angola austral, os brancos eram felizes. Hoje, os brancos são raros, o caminho-de-ferro recupera lentamente, as cidades continuam destruídas; apenas as autoridades provinciais recuperaram para si alguns palacetes; os negros, esses, em magotes percorrem todos os caminhos, tentando vender a pouca produção que vão conseguindo.

António escudeiro vê o cinema do Huambo arrombado, as máquinas de projectar espreitando, por detrás de uma parede imorredoura, um horizonte imprevisível, mas ameaçador. E eu, também, percorro aqueles morros, estupefacto com a cegueira branca, que descobri na denúncia feita por Pepetela e, sobretudo, por Ruy Mário de Carvalho. Também eles, brancos-mestiços de Angola. Todos eles brancos de segunda!

E eu que nunca fui a Angola, tenho cada vez mais a sensação que lá vivi sempre. Mesmo, agora, começo a pensar naquele professor de História, de Arlindo Barbeitos, que levou o aluno preferido a visitar o cemitério para lhe ensinar a ler a história do colonialismo. Ao ver entrar António Escudeiro no cemitério, pensei, aqui está um espaço onde a diferença de cor ou de pele não fará sentido. Mas não. Esquecera que só o branco tinha direito àquele intra-muros.

Apesar de tudo, o documentário "Adeus, Até amanhã" merece ser estudado com atenção pelo que deixa ver do que aconteceu nos últimos 30 anos na martirizada Angola e, sobretudo, pela cor dos panos e pelo olhar abismal daqueles milhares de crianças que espreitavam as câmaras e que respondiam em coro, nas despojadas salas de aulas.

Por mais que queiramos esquecer, a Europa é responsável pelo atraso da África…

17.10.07

Aos 53 anos, fragmentos…

São muitos os anos, quando relembro que outrora um médico me assegurou que não chegaria aos 39. Não lhe recordo o rosto nem a voz, esfumou-se numa enfermaria branca como ele.

O dia foi de sinais contraditórios: os amigos não esqueceram a palavra ou o gesto solícito; mas outros (e não sei como classificá-los!) passaram o dia a delimitar o território como se pudessem correr algum perigo. Mas como se o poder nunca me interessou?

Foi, no entanto, um dia de surpresas: o conselho pedagógico mostrou-se participativo e reivindicativo, numa girândola de olhares cruzados e, por vezes, desorientados (pela primeira vez, a mesa teve dois pólos!) Hoje, os meus neurónios desdobraram-se num movimento circular inesperado.

Surpreendentemente, alguém que, por vezes, consegue fazer-me desesperar, na placidez dos dias, ofereceu-me "A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna", de Zygmunt Bauman.

14.10.07

Sem vergonha…

" Um ministério é um grupo casual de indivíduos, que intrigaram para estar ali." (…) O país "paga e reza."Eça de Queiroz, Maio de 1871

Em Torres Vedras, um grupo mais ou menos casual intriga para conquistar o poder. Em Fátima, a desavergonhada Igreja esbanja o suor do povo e ainda o acusa de grosseria. No Terreiro do Paço, um ministro das finanças corta nas pensões de reforma acima dos 600 euros, como se 700 ou 800 euros fossem suficientes para pagar a alimentação, os cuidados de saúde, os lares…

Quem anda por aí, vê, um pouco por toda parte, sinais de riqueza…. Riqueza cuja origem é desconhecida e, portanto, não tributada.

Será assim tão difícil enviar meia dúzia de polícias a cada marina, a cada imobiliária, a cada banco, a cada discoteca, a cada catedral? Se o fizessem, os agentes perderiam a vontade de passar pelas delegações sindicais ou deixariam de ficar parados em frente dos bancos, das ourivesarias…

(…)

Neste fim-de-semana, dormi mal. Despertei, várias vezes, a pensar no motivo que nos leva, ao olharmos para um monumento, a admirá-lo sem nos preocuparmos com a biografia do arquitecto, se andava triste ou alegre, se bebia ou era abstémio e, ao mesmo tempo, quando lemos um poema ou um romance, a só querer saber se o poeta ou o romancista foram infelizes na infância, pederastas, pobres, provincianos ou cosmopolitas. Que diferença há entre um poema e uma catedral? Entre um Poeta e um Arquitecto? Será uma questão de escala?

Parece-me que este desassossego não abona muito a meu favor. Sobretudo do meu fim-de-semana.

E ainda mais grave: gastei, também, uma boa parte da noite de sábado para domingo, a pensar no papel do conselho pedagógico na escola actual. E fiquei descoroçoado, sem saber qual é o campo de acção deste órgão. Acordei com a ideia que me compete pensar a organização escolar e a actividade docente tendo como único objecto o crescimento harmonioso de todo e qualquer ser que entre na escola, independentemente da fase de aprendizagem em que se encontre. A escola deve preparar o ser para que, no futuro, possa ser um arquitecto, um pedreiro, um poeta, um linguista, um físico, um cozinheiro, um matemático, um pintor… e não, um bêbado, um delinquente, um pederasta, um branco, um negro, um indiano, um fundamentalista…

À escola não interessam os intriguistas que procuram chegar aos ministérios!

11.10.07

Aporias

Tenho evitado comentar os casos do dia: o regresso à escola dos funcionários europeus; o topete dum empregado da RTP, em tempos de "precisa-se colaborador"; a iniciativa auto-formadora de dois agentes da ordem que confundiram uma delegação sindical com uma escola; o desaparecimento da ministra da educação; uma basílica que apenas custou aos crentes 70 milhões de euros; o secretismo das organizações e o cinismo dos dirigentes; a dor de cotovelo de quase todos; e, sobretudo, a indiferença e a descrença da maioria…

Inimigos, marchamos, lado a lado, sobre um campo de minas, sem querer perceber que ainda nos falta aprender a ler. Que ler pode ser uma actividade permanente, a única capaz de nos oferecer uma alternativa à "apagada e vil tristeza" do orgulho, da presunção e da prosápia.

Ler abre-nos a porta da alteridade… e toda a escrita é uma forma de leitura, de epifania…

(Apesar do ruído e do grito, da histeria das confrarias…)

5.10.07

Afonso Vaz Botelho - Que devo eu fazer agora?!

A 1 de Dezembro, a 5 de Outubro e a 25 de Abril, os que ainda têm trabalho param para celebrar a refundação da Nação. Primeiramente, libertámo-nos do estrangeiro, em segundo lugar, pusemos termo ao que restava do Antigo Regime e, finalmente, deixámos ruir o Império, liquidando, no acto, o Estado Novo.

Qualquer destas datas assinala o fim de um ciclo, dando início a outro. E por isso em vez de celebrarmos a libertação – esperança fugaz -, deveríamos reflectir sobre o modo como os portugueses se empenham na revitalização da colectividade. O que é que, de facto, nos interessa?

A resposta? - Podemos encontrá-la no Retrato de Uma Família Portuguesa, de Miguel Rovisco. Perante o perigo, perante o invasor, a família desmorona-se e uma parte foge: para o Brasil ou para a Europa, tanto serve!

Nascido em 1959, Miguel Rovisco suicidou-se em 1987, um ano depois de Portugal ter "entrado" na União Europeia. Aos 27 anos, já escrevera mais de 20 peças… No plano existencial, o seu suicídio não se explica – poderia ser um acto gratuito e repentista de algum existencialista à deriva num universo órfão de Deus! Mas não.

O desespero e a rebeldia de Miguel Rovisco nada tinham a ver com a divindade. A causa primeira encontrou-a na indiferença e no alheamento das elites nacionais, incapazes de compreender a força civilizadora do teatro.

As elites não lêem ou, pior, se o fazem, não resistem à tentação de censurar a obra alheia, desvirtuando-a de tal modo que o autor se verá obrigado a renegá-la. Mas Miguel Rovisco, em vez de desistir ou de renegar a obra, preferiu que um comboio lhe desfizesse o corpo para que a voz se pudesse ouvir bem alto no palco das consciências que nos governam…

Hoje, 5 de Outubro de 2007, que novas razões podem impedir os Roviscos desta Nação de se suicidar?

(Lá bem no alto, sobre os cedros, já avisto 250 altos funcionários da Comissão Europeia que, sem qualquer razão para se imolarem, se preparam para "regressar à escola", prometendo um futuro radioso… Mas, ao contrário do que acontece na maioria dos palcos, apenas teremos direito a um solilóquio…)

 

 

 

 

2.10.07

Outubro chegou…

E com ele o Outono… estação ou crepúsculo? Há dias em que o crepúsculo avança sobre o corpo, deixando-o exaurido. Contra a maré, lutamos porque ainda não é o tempo da noite…

Se passarmos à Sociedade, fica-nos a dúvida se também podemos falar de Outono… No entanto, os sinais são muitos: Mendes perde para Menezes; os pais perdem para os filhos; os funcionários perdem para a arbitrariedade do Governo que, entretanto, vai nomeando uma nova classe de carrascos que se encarregará de o substituir na zelosa missão de redução de custos…; isto sem falar das equipas de futebol que perdem sistematicamente perante as estrangeiras, salvo raríssimas excepções…

Para nos alegrar, sempre vão despontando alguns vencedores: a equipa de rugby que terá ganho o campeonato do mundo, à portuguesa, claro está; Mourinho que lá encontrou maneira de roubar o Abromovich (?) – mas quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão; Luís Filipe Menezes que, depois de endividar a Câmara de Gaia, se propõe vender o país por um cêntimo… E Sócrates que nos quer convencer que com ele ganhamos todos: as grávidas; os velhinhos e as velhinhas; os desempregados; os jovens; os delinquentes; os empresários; os comentadores políticos e, sobretudo, os funcionários públicos…

E nem vale a pena falar de Marcelo Rebelo de Sousa, o Sumo-sacerdote da Nação Portuguesa, cujo brilho só poderia ser ofuscado pelo laureado José Saramago, caso ele não tivesse escolhido o exílio filipino…

Se alguém se der ao trabalho de ler esta página outonal, peço-lhe que não se esqueça do CONTEXTO, (CUM+ TEXTUM), o que o obrigará a ler todos os textos mais ou menos coevos. Caso não o queira fazer, faça como a maioria: torne-se crente de uma qualquer confraria ou de uma qualquer autoridade.

O Outono chegou.

27.9.07

Quem quer…

Quem quer vai, quem não quer manda.

Tento ignorar a moralidade do adágio, mas, qual refrão, não me sai da cabeça.

Incapaz de esperar, sinto que avanço desnecessariamente… mas continuo o caminho como se uma voz me ordenasse o rumo.

Há quem pense que cultivo a opacidade quando, de facto, procuro, em mim mesmo, um sentido… talvez mesmo uma missão. Esta ideia, que me foi inculcada na juventude, acaba por me infernizar os dias.

Corre-me no sangue um padrão que me segura ao chão.

O padrão, cultural ou apenas de pedra, traça-me uma rota em que me perco a cada instante, e continuo a ver-me lá longe, na foz do Zaire, sem entender o motivo.

Antevejo um imenso caudal, a coberto de uma sufocante e esplendorosa vegetação, e apesar do tinir das azagaias sombrias, subo o rio, à procura da nascente da minha infância.

Ao contrário dos rios de Saramago – O Almonda e o Tejo – que, de tempos a tempos, o cercavam na Azinhaga, o meu rio, o Zaire, deixava que eu o abraçasse, ficasse a vê-lo… a ir, a fluir…

E na minha cabeça, corre o Zaire que me sussurra: Quem quer vai, quem não quer manda.