18.11.07

Confluências

O lugar onde o Tejo e o Zêzere tinham o hábito de confluir. Agora, estão dependentes das comportas... apesar das divergências, em Constância, fluem Camões, Vasco Lima Couto, Alexandre O'Neil, Baptista Bastos... e quantos mais?










16.11.07

Às horas cor de silêncios e angústias…

 

Para Fernando Pessoa, o tempo tinha cor, mas a paleta era apertada, feita de verde, cinzento, por vezes, azul e quase sempre preto. Por detrás dos óculos, erguia-se um fundo branco envolto em preto, e nas lentes, lentas partiam as naus nocturnas. Não se sabia se regressavam ao cais, mas se o faziam, as naus apodreciam para lá do silêncio do horizonte, num poente de cinzas. Ele queria que acreditássemos que naquelas cinzas ainda soprava a chama. No entanto, sabia bem que o fogo (a alma) quando se extingue se esconde debaixo da pedra, à espera que o vento se levante e se incendeie em notas quebradas…, novas vozes feitas naus que partiram um dia do Cais Absoluto – ideia feita da angústia de quem não aceita que a vida passe e não passe…

Para Fernando Pessoa, as palavras tinham a cor da música que ele não sabia bem se ouvira e no não saber estava toda a angústia que separava a partida da chegada, e na noite do Cais divino soprava uma vaga e doce aragem.

(Em homenagem a todos aqueles alunos que nesta noite, entre sonhos de sargaços, procuram compreender como é que se podia cantar naquele navio encalhado num cais de perdição...)           

11.11.07

A Casa-Museu

A Casa-museu existe um pouco por toda a parte. Escondida, envergonhada, de tempos a tempos, lá recebe um visitante, também, ele tímido e um pouco assustado.

A Casa-museu oferece a privacidade do seu antigo proprietário, quase sempre, ridícula e acanhada. Espera-se que o homem ou a mulher se tenham conseguido erguer daquelas quatro paredes e tenham deixado obra, lá longe, na capital, no estrangeiro, no mundo.

Por exemplo, o Alexandre Herculano de Vale de Lobos (Santarém), surge de pés-de-fora, tal é a pequenez da cama. Visto daquele lugar não ombreia, de modo nenhum, com o Herculano que jaz nos Jerónimos. Mas, mesmo lá, a centralidade, é fugaz ao olhar, quase sempre atraído para um qualquer evento musical. Pelo menos, sempre vai ouvindo música. Na casa-museu, talvez oiça os pássaros!

Ora, Salazar, tendo em conta a dimensão do homem, também merece a sua casa-museu, em Santa Comba Dão. Não irá incomodar ninguém e sempre deixará feliz algum turista ou algum nostálgico que por ali passe. A memória do homem deve ser preservada, até para que não se repita.

Desta vez, tenho de concordar com o Vasco Pulido Valente, apesar de eu saber que ele detesta o cheiro a caruma. Detesta tudo o que cheire a campo. O que faria ele, se o desterrassem para a província? É por isso que ele concorda que Salazar seja banido para Santa Comba.

7.11.07

A iliteracia

Estou a chegar lá! Uma vida de formulários, convocatórias, regimentos, regulamentos, actas, tabelas... - tudo ferramentas funcionais, ou melhor do funcionário!

A própria exclamação perdeu emoção. Está saturada de convenção. Neste momento, fujo da acta, da convocatória, do regulamento, do plano, mas penso se não seria melhor voltar lá, se este intervalo não me vai ser cobrado...

De facto, ao funcionário compete estar permanentemente de plantão. Zelar desinteressadamente pela saúde do patrão.

E nessas horas - todas as horas - deixamos de ler, de escrever, de descobrir; deixamos de ser vistos como uma ameaça, um risco...

( De qualquer modo, já não necessito de censor - eu próprio exerço esse mester: vou regressar à convocatória, sabendo, de antemão, que depois desta, outra me espera e que, se não cumpro a primeira, dificilmente realizarei a segunda.)

É a engrenagem! O cárcere dos dias e das noites!

3.11.07

De graça...

"Dei-lhes de graça meu coração/E o que ele tem." Fernando Pessoa, 10/10/1933
É isso mesmo! Trabalhar de graça, sob a ameaça rasteira do processo disciplinar, da mobilidade, do despedimento.
Funcionário, empregado a tempo inteiro. De dia e de noite. Sem efectiva contagem das horas. Na expectativa de que morra cedo para sossego da segurança social.
Nem o vento sopra lá fora.
Só a febre da alma se agita, insegura, arranhando-me por fora, sem que o coração chegue a saber que está definitivamente morto.
Lá longe, o barril de petróleo continua a matar a esperança... e a chuva fustiga impiedosamente os deserdados...

28.10.07

Bucólica


- Ó meu senhor, será que viu por aqui umas vacas? Incrédulo, depois de olhar à direita e à esquerda, repliquei: - Não é frequente ver vacas num parque campismo! No entanto, ainda não refeito, perguntei-lhe: Mas o senhor perdeu as suas vacas?
- Não, as vacas não me interessam; procuro o maioral… E o pobre homem lá deu meia volta, sem, no entanto, poder evitar que eu lhe explicasse que seria pouco provável que as vacas andassem por perto, pois, naquela manhã, os caçadores fizeram uma batida monte abaixo até à rede do parque. Eu bem os vira do lado de lá da rede, armas apontadas e canídeos a farejar…
Mas o homem desinteressara-se completamente da minha explicação e seguiu o seu caminho.
O problema dos caçadores à porta do parque de campismo era meu e não dele: eu acordara bem cedo a pensar que, com tamanho tiroteio, era bem provável que não pudesse mostrar a nascente do Alviela aos meus convidados…
O que me faz pensar que há longos anos tento explicar o que, de facto, ninguém me solicitou. O que me pedem é muito simples: - Será que viu, por aqui ou por ali, umas vacas? E eu conto-lhes a história da domesticação das vacas, do trigo, da colonização, das fartas e das estéreis caçadas… E o meu interlocutor deixa de me ouvir porque, afinal, as vacas não passavam dum pretexto. O que ele procurava era o maioral, a ver se ele lhe pagava um copo…
Se ao menos tivesse adivinhado! Ter-lhe-ia pago uma cerveja e, em troca, ele teria dito: - muito obrigado, meu senhor.
Esta bucólica não respeita nenhum cânone, nem mesmo o da simplicidade. É apenas uma forma de esconder uma enorme vontade de zurzir nuns figurões, uns maiores e outros mais pequenos, que ultimamente têm abusado da paciência da arraia-miúda. Será que os maiorais já não querem saber das vacas?!
Zus! O lugar onde a língua acaba.
/MCG

22.10.07

De que me servem estes papéis?

São tantos os papéis,

todos empilhados

numa serra fútil

(a aliança salta do dedo

num esgar último)

estes papéis são resposta

a uma única pergunta

cansada de fugas inúteis

De que me servem estes papéis?

Já me vejo arder,

o vento ainda sopra a meu favor,

o cântaro avança sôfrego,

mas eu atravesso os meus papéis

já cinza

De que me servem estes papéis?