3.7.12

Alvoroço no 83

Duas malas de viagem (75X35 cm), um casal de franceses (75X65 anos), na zona reservada a idosos e a portadores de deficiência, incomodam apenas até que um robusto invisual entra, esbracejando, no autocarro.

O desbocado invisual arreda tudo quanto lhe aparece pela frente, procurando sentar-se no lugar ocupado pelo francês, e, quando advertido que o passageiro era estrangeiro, desfaz-se em impropérios contra os turistas pobretanas que vêm para cá espezinhar os portugueses…

Poder-se-ia pensar que se trataria de uma altercação de alguém zangado com a vida, quando, subitamente, o sobrelotado 83 entrou em convulsão. De um lado, um grupo minoritário que defendia  e compreendia os pobres turistas; do outro lado, um grupo maioritário que resolveu secundar o invisual, dando expressão, em bom vernáculo, ao impulso xenófobo…

Chegados ao aeroporto, os turistas lá foram apanhar o avião, sempre sorrindo… e o 83 pôde, finalmente, rolar em paz!

Quero crer que estes turistas jamais voltarão a Portugal! Oxalá me engane!

30.6.12

Cisterna escura

(José Rodrigues Miguéis, O Amanhecer da Incerteza, Diário Popular, 8/11/ 1979)

De regresso ao Alto de Santa Catarina, Baltasar sente vontade de fugir, pois «a vida era este cárcere estreito e circular, uma cisterna escura onde nos debatemos, correndo em volta a tactear as paredes da nossa pobre experiência, prisioneiros teimosos e repetidos…»,  e relembra os amigos d’A Sementeira: «que sabia deles? quem eram, que sentiam, que pensavam na realidade como indivíduos atrás dos pórticos das Ideias e das Boas Intenções?»

A leitura abre-se para o Real: o que é A Sementeira? Já conhecia a Seara Nova? Mas, até este momento, nunca pensara que não há seara sem sementeira! Talvez tivesse pensado… Sabia que o republicano José Rodrigues Miguéis fora acusado de ser muita coisa: bolchevista, anarquista, burguês, reacionário… ao sabor dos ventos que iam soprando… mas, de repente, a minha ideia de que a ficção de Miguéis se alicerça no conhecimento do real  solidifica.

Em 1979, Miguéis para melhor conhecer o rumo do 25 de Abril mergulha nas páginas da revista anarquista A Sementeira (Setembro 1908 a Agosto de 1919) – a obra-prima de Hilário Marques, nas palavras de João Freire, Análise Social, vol. XVII (67-68), 1981-3.°-4.º, 767-826.

Aqui chegado, também eu me debato nessa cisterna escura em que somos formatados, apesar de, perceber que, ainda, há alguns pontos de fuga possíveis.  

29.6.12

Da safadeza

Farto de circunlóquios, mergulho nas páginas amarelecidas do Diário Popular do dia 25 de Outubro de 1979 e encontro, entre bares e prostíbulos, as divagações de Milheiro e de Baltasar sobre o modo como os portugueses encaram a realidade. (José Rodrigues Miguéis, O Amanhecer da Incerteza / Do «Idealista no Mundo Real»)

Interessante é ver que, em 1979, as viciosas personagens de Miguéis refletem sobre a nossa tendência para transigir com a vida, a nossa inclinação para o «compromisso pulha», apesar de, repetidamente, prometermos expor tudo no Roteiro da Safadeza Nacional. E é Milheiro que, já suficientemente alcoolizado, aponta a causa da nossa renúncia: a ilusão, nascida com Viriato, de que somos portadores de um grandioso destino.

Através de Milheiro, Miguéis mostra que não basta ler Camilo, Eça ou Junqueiro, porque a verdadeira Bíblia da Pátria deve ser procurada no Soldado Prático e na Peregrinação e, sobretudo, n’ A História Trágico-Marítima.

Mas isso era o que Miguéis propunha em 1979! E hoje, o que é que propomos?

27.6.12

O distribuidor

Decorria o Portugal-Espanha, e eu pus-me ao caminho. A linha vazia! Nem sombra de TGV!

(Embora não perceba nada de futebol, quando olho para a colocação dos jogadores em campo, procuro, de imediato, o distribuidor. Hoje, como nos últimos tempos, não vi ninguém com essa capacidade! A simples hipótese de uma vitória resultar de uma cavalgada desenfreada por uma das alas causa-me calafrios!)

Entretanto, nada faz sentido. Para quê combater a Espanha se dela somos uma parte!? Se queremos ganhar o Europeu / um lugar no mundo, devemos começar por ganhar Portugal… e isso só acontecerá a partir do dia em que a Ibéria se constituir num verdadeiro espaço cultural, económico e político. E para isso, as nações ibéricas precisam de distribuidores.

( O distribuidor é aquele indivíduo que tem uma visão global do campo / do espaço ibérico e é, a cada momento, capaz de flanquear o jogo.

A Ibéria sempre teve os seus defensores, mas os nacionalismos oportunistas têm vingado sempre.

Agora que perdemos, o melhor é apoiarmos Espanha na próxima partida… e talvez o TGV volte a fazer sentido!

26.6.12

A porta

Sentados (ou deitados?) esperamos a resposta. Talvez o telefone toque, um amigo envie uma sms ou um email caia na caixa de correio. De vez em quando, reunimos e exigimos… que o telefone toque, o amigo envie uma sms ou o email nos traga boas notícias.

Lá fora há um caminho (até vários!), mas o difícil é vencer a porta e sair. Sair, percorrer o caminho, as vezes que for necessário, disponíveis para agarrar o destino – o nosso!

( Quando a escola não nos deixa caminhar.)

24.6.12

Um dia perguntei


«Há, por um lado, o romance que analisa a dimensão histórica da existência humana, e por outro lado, há o romance que é a ilustração de uma situação histórica, a descrição de uma sociedade num dado momento, uma historiografia romanceada. (…) Ora, eu nunca me cansarei de repetir: a única razão de ser do romance é dizer aquilo que só o romance pode dizerMilan Kundera, Conversa sobre a arte do romance
Um dia (02.05.1997) perguntei se, para compreender o romance PAULA de Isabel Allende, seria necessária conhecer a História do Chile, mas, à luz de Kundera, o ato era de retórica – « Não. Tudo o que precisa de saber, o próprio romance di-lo.»
Apesar de saber a resposta, a questão era heurística – visava encaminhar o aluno a descobrir por si mesmo… Contava com o desejo, o interesse do aluno…
Por seu lado, o aluno ansiava pela resposta que lhe evitasse percorrer o caminho. As exceções eram raras!
(Hoje, esse caminho continua por percorrer!)

22.6.12

Do ensaio…

Foi com Montaigne (1533-1592) que a literatura se assumiu como literatura de ideias – ESSAIS. Para o ensaísta, o texto, sem descartar o tom panfletário, expõe uma epifania, uma visão súbita do mundo sem passar pela ficção imaginada.

Como se sabe, a fortuna de Montaigne resultou da capacidade de fundir elementos oriundos de géneros diversos nos ESSAIS, como se eles mais não fossem que a matéria de que o ensaísta era feito: «Je suis moi-même la matière de mon livre

Ora, parece que José Saramago, à semelhança de Montaigne, ao escrever certas obras – O Manual de Pintura e de CaligrafiaEnsaio sobre a Cegueira / Ensaio sobre a Lucidez – visava não só dar expressão a essa «visão súbita do mundo», em tom irrisório, mas passando pela «ficção imaginada», passe a redundância.

E foi essa opção que permitiu que Saramago fugisse à explicação sistemática, ocultando a ideologia, mas lançando sucessivos foguetes no coração da noite.

Uma noite sem fim!