27.6.10

Os brincos de ouro…

Vi, ontem, com alguma surpresa, a ariana Marlene Dietrich transformada numa cigana (Lydia), no filme Golden Earrings, de Mitchell Leisen, estreado em 1947. Para o efeito, Marlene concebeu a sua própria maquilhagem e aprendeu a tocar correctamente cítara. E como mandava o figurino segregacionista, Marlene representa uma malcheirosa e suja cigana que, quase, viola o Coronel Ralph Denistoun (Ray Milland) que, perseguido pelos nazis, é transformado em cigano. A cena da sua metamorfose é brilhante, sobretudo quando ela, a cigana,  lhe desflora a primeira orelha para prender os brincos de ouro (elemento de disfarce e, ao mesmo tempo, estruturador da narrativa).

À época, em Hollywood, os casais inter-raciais eram proibidos (Código Hays). No entanto, como, no filme, Lydia e Ralph não passam de amantes, em que um deles é temporariamente transformado em cigano, a transgressão é tolerada…

(… o que me leva mais uma vez a destacar a importância do contexto histórico e do contexto de enunciação…; sem eles, a interpretação torna-se arriscada e incongruente.) 

26.6.10

Da interpretação…

«Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas.»José Saramago, As Intermitências da Morte

A interpretação de um texto (das linguagens) pressupõe um razoável conhecimento do contexto de enunciação e uma enorme atenção ao significado da palavra. Para que a ideia não seja atraiçoada, há que percorrer o enunciado, observando-lhe a sintaxe e, sobretudo, procurar com rigor o significado da palavra. Nenhum autor ama a ambiguidade, a não ser que esta lhe permita dar conta dos equívocos em que facilmente caímos.

A fatuidade, a impaciência e a avidez desvalorizam a atitude heurística, relativizando qualquer esforço interpretativo. Na escola portuguesa, a insolência verbal (e não só…) há anos que vem ganhando terreno, à sombra da “indisciplina”, mas, de facto, o que acontece é bem diferente: a instrução / a codificação da aprendizagem matou a educação ( o lugar onde o domínio e a consequente valoração dos códigos de linguagem é essencial).

Se nos últimos dias as incongruências linguísticas me perturbaram pelo desrespeito que evidenciavam pelo texto camoniano, ontem, na Esc. Sec. de Camões, fiquei um pouco mais tranquilo: A Academia do Bacalhau de Lisboa premiou os quatro melhores alunos do 11º e do 12º anos, na disciplina de Português, todos com classificações entre os 19 e os 20 valores.

Para quem queira descobrir esta singular academia: www.academiadobacalhaudelisboa.com e / ou O GAVIÃO DE PENACHO

24.6.10

Impropriedades…

«Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas.» José Saramago, As Intermitências da Morte 

Há quem:

- tencione visitar “o estrangeiro”…

- diga que o rei ordenou que se construísse o convento para agradecer o “bastardo” que a rainha lhe colocava nas régias mãos…

- prefira a “purificidade” à pureza da língua ou “grandificar” a coragem do povo lusitano…

- “mergulhe” no Memorial do Convento com enorme subtileza, confundindo o Padre Bartolomeu de Gusmão com o (Padre) Bartolomeu Dias, a esta hora, a contas com os “navegadores” que lhe invadiram o terreiro… 

- goste do verbo “focar-se”…

- pense que D. Sebastião recebeu Vasco da Gama no regresso da Índia…

- refira que, no Canto X de Os Lusíadas, quem voltou à Pátria foi o Rei…; imagine que os navegadores estão de partida e o fazem por obediência a um rei, possessivo…; ou imagine que os nautas pedem ao rei que nunca mais os envie para o mar porque estão de pouca saúde…

22.6.10

Em tempo de equívocos…

Os teólogos católicos defendem que José Saramago nunca soube ler a Bíblia. Acusam-no de nunca ter ido além da leitura literal. Saramago, afinal, nunca percebera  o que havia de literário no texto bíblico. A argúcia teologal não passa disso mesmo, basta lembrar que a Inquisição sempre condenou, baseando-se na leitura literal. Ora Saramago pertence a uma geração que aprendeu no seio do Partido que o inimigo do povo português era, em primeiro lugar, o Tribunal do Santo Ofício, o braço dilecto da Contra-Reforma que nos dominava desde o século XVI, mesmo que esse Partido servisse um dogma de sinal contrário. (O terreno é fratricida!)

Bem sabemos que a Literatura é inimiga do dogma, que ela exige uma leitura plural… e que sempre que se torna “oficiosa”, as obras que a constituem são devoradas por cronos.

Em princípio, todos deveríamos ter uma noção do que é a Literatura. No entanto, encontramos, por exemplo,  nas provas de exame de Português e de Literatura Portuguesa, indícios de que isso se está a perder. Se relermos os questionários, percebemos que as perguntas não pressupõem rigor interpretativo dos textos seleccionados ( de Camões, Fernando Pessoa, António Lobo Antunes. E por isso aos alunos não é pedido que interpretem globalmente os textos. Quem percebeu que o POETA INTERPELA O REI? QUE A MUDANÇA DE MENTALIDADE EXIGE QUE O REI ALTERE O ALVO DO SEU OLHAR?

E porquê?

Porque de há uns anos a esta parte, a vontade de filtrar e controlar a leitura adoptou as vestes teologais que nunca deixaram de estar presentes nos «iluminados» que nos governam e nos conselheiros que os adulam. Todos eles  lêem pouco … e seguem a velha cartilha do miserável ‘controleiro’…

20.6.10

Os corvos

«Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.» José Saramago, As Intermitências da Morte

Passei o dia longe de Lisboa, entre troncos e raízes, à beira-rio. Nas margens, os eucaliptos esventram o solo à procura da água que os faz crescer escandalosamente. Por perto, os jarros resplandecem, indiferentes à opulência do plantio vizinho. Do outro lado do rio, estendem-se vastos e viçosos campos de arroz, de milho, de batata e de tomate… Dos pinhais sopram as melodias dos melros e dos verdelhões; no rio grasna o pato; o crocitar dos corvos obriga-me a procurar-lhe o rasto…
E o negro rasto, que parece ser de dor, é fome de presa. Pouco importa o que aprendemos. No fim, de nada nos serve a argúcia… Só os corvos, inquietos, sobrevoam à espera que o público se retire.
/MCG

19.6.10

Formigas…


Formigas, caminhamos sem imaginar que podemos ser calcadas. O risco espreita-nos a cada instante, mas esse é o nosso destino. Tudo o resto é soberba e vaidade!

18.6.10

Gavetos e não só…

Haverá uma arquitectura de gaveto? E porquê “ de gaveto” e não “ de canto” ou “ de esquina”? Ou simplesmente perante a necessidade de ocupar as esquinas, o arquitecto procura encontrar a solução que  melhor se acomode a cada caso. Seja como for, a simples existência de uma esquina condiciona a solução, o que, no fundo, significa que devemos evitar que nos acantonem, a não ser que desejemos que o Arquitecto determine o nosso destino…
Entretanto, desconheço a origem etimológica de “gaveto”. Na sombra, há quem pense que este termo está relacionado com “gaveta”, que, de origem latina (gavata, gabata) terá chegado a este canto da Europa através dos cruzados provençais que, ao passarem, meteram os indígenas na gaveta e lhes ocuparam o lugar. O que me leva a pensar que quer se trate de arrumar na “gaveta” ou no “gaveto”, o gesto pressupõe sempre uma certa violência, uma certa dor ou, em alternativa, alguma dose de predação.
Em síntese, não sei se algum arquitecto de esquina já pensou nesta questão nem se vale a pena examiná-la. No que me diz respeito, os gavetos sempre me despertaram um complexo de inferioridade… e se continuo, ainda acabo por encontrar o trauma que me leva a pensar estas tolices…