27.8.18

O olhar preso

Se a perda de memória impressiona, a fixação em certas memórias ainda impressiona mais, sobretudo, quando o desfecho era inevitável…
O olhar preso destrói a vida, torna-a absurda, como se o único objetivo fosse recuar até um ponto descontínuo e desconfigurado…
Se me perguntam por que motivo rasgo tantos papéis, é porque sei, agora, que eles se tornaram um peso inútil; sei agora que o importante é a sombra das árvores… tanto sol!

26.8.18

O que impressiona

«O que impressiona é a perda da memória, o sair das relações reais… A própria perda da memória insensibiliza. Você não tem ternura nem ódio às pessoas, porque não se lembra delas, não as conhece...» José Cardoso Pires, entrevista ao JL, 21.05.1997

a rasgar papéis, continuo... 
como aquelas oliveiras que não chegaram a ser minhas…
as figueiras, asfixiadas
perdem sentido
porque um dia por pensar
parti
papéis em vez de árvores
Já nem a sombra!

25.8.18

A rasgar papéis

Estou aqui a rasgar papéis,
a rasgar o tempo
e só me lembra a sombra de árvores, 
desejada…
Enchi papéis, 
preenchi o tempo e só choro a sombra das árvores, 
perdidas…
Tenho pena de rasgar estes papéis, 
de rasgar aquele tempo, 
que hei de fazer... 
Talvez ainda sobre uma árvore…
A rasgar papéis inúteis,  
rasgo outro tempo, 
quem quer saber daquelas árvores…
Por mim, deixava aqui todos estes papéis,
todas estas árvores,
não, o melhor é esquecer aqueles incêndios...

24.8.18

O comboio de Caminha

Passava o comboio, nele viajava sua excelência o presidente do conselho. Discreto. Parecia um relógio suíço...
Passava, lento, o comboio, nele o adubo mergulhava na noite que o dia era de sementeira...
Passava o comboio, nele a tropa adormecida seguia viagem sem bilhete de volta. Partia em defesa da pátria do outro lado do mar...
Passa o comboio, vai para Caminha ao encontro do Primeiro. Leva o rebanho, seguro que a Hora não pode ser desperdiçada...
No cais, estamos nós a ver passar o comboio...

23.8.18

Paciência

Praia da Cabana do Pescador
- Eu não tenho paciência para esta Madalena! (Avó)
- Para a bebé ao colo: A Madalena já vem! (Mãe)
Estou à espera que a Madalena surja das águas do mar...
Por enquanto só as bolas de berlim e o ondulado da banda sonora...
À volta, um país rico de sol, de pó, de lixo, de cabeças vazias... Uma toalha que se estende fácil, dois velhos que comem umas pevides... Uma fila desalinhada avança na linha de água e as bolinhas de berlim apregoadas no areal.

22.8.18

Credor forçado

O que é novo seduz, mesmo que haja mil entraves financeiros, ecológicos e humanos...
Talvez seja por isso que ninguém defende o alargamento do aeroporto Humberto Delgado…
Hoje, por exemplo, fui ao Parque Quinta das Conchas… Ao caminhar, comecei a ouvir os motores dos aviões… Segui o ruído, e ao longe avistei as aeronaves…
Será que não seria mais inteligente libertar os terrenos necessários para o alargamento e criação de novas pistas?
Confesso, no entanto, que não percebo nada do assunto, mas, como credor, interessa-me saber onde é que o meu contributo vai ser aplicado, já que quero crer que o Estado Português está disposto a amortizar a dívida resultante de todas as decisões precipitadas e megalómanas dos seus governantes nas últimas décadas...
Agora que se discute o Orçamento para 2019, gostaria que os Partidos impusessem um número objetivo para o progressivo ressarcimento de todos os credores, mas sem privilégios nem cedência a interesses corporativos.

21.8.18

Na roda de náusea

Um Adeus Português


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.


Alexandre O'Neill, in 'Poesia Completas' 

Em 1950, Alexandre O'Neill ( 19.12.1924 - 21.08.1986) viu-se impedido pela PIDE, na sequência de uma cunha de um familiar seu, de ir ao encontro de Nora Mitrani. Esta surrealista francesa viera a Lisboa proferir uma conferência, La Raison Ardente... O 'Neill apaixona-se e neste belo poema de amor vinga-se "da roda de náusea em que giramos"...