31.10.19

31 outubro 2019



Álvaro de Campos

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,

Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,

Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco

Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,

Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,

Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,

Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,

Sempre, sempre, sempre,

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...



Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,

Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.

Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.

Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!

Quanto me emprestaram, ai de mim! eu próprio sou!



À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.

À direita o campo aberto, com a lua ao longe.

O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,

É agora uma coisa onde estou fechado,

Que só posso conduzir se nele estiver fechado,

Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.



À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.

A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.

Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.

Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima

Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.

Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha

No pavimento térreo,

Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?



Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?



Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,

Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,

Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,

E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,

Acelero...

Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,

O meu coração vazio,

O meu coração insatisfeito,

O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.



Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,

Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,

Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

11-5-1928



29.10.19

O Jardim (a escola) de Epicuro

Epicuro (341-270 a.C.) Ateniense, apesar de nascido em Samos. De saúde frágil, suportou 'estoicamente' a dor durante muitos anos.
Em 306, estabeleceu a sua escola filosófica (o Jardim) em Atenas, com o objetivo de promover a philia, a amizade e a felicidade.
Em termos de doutrina, Epicuro nega a providência divina dos estoicos, admitindo a existência de deuses que, no entanto, não se preocupam com o homem. 
Ao contrário da lição corrente, o seu epicurismo nega o deboche por causa do sofrimento que ele acarreta, e a felicidade só  existe se for expressão da ausência de paixão e de perturbação, equivalendo à ataraxia interior do filósofo, que, assim, o aproxima dos deuses.
Em termos de vida pública, o epicurista deve viver, escondendo-se.
De destacar que sete mulheres integraram a escola de Epicuro. Só uma era casada; as restantes eram prostitutas que teriam renunciado ao seu ofício, ao converterem-se à filosofia. Na época, o facto de o Jardim acolher mulheres e escravos era escandaloso.
(Bibliografia: Maria Helena U. Prieto, Dicionário de Literatura Grega, Verbo, 2001)

27.10.19

A dívida interna

Para frente é que é o caminho! Não faço ideia de quem inventou tal máxima, mas compreendo a intencionalidade. O problema é que os espinhos podem ser muitos e faltar a disposição para os extirpar. 
No discurso político dos últimos dias, assomam as promessas eivadas de uma certa magia que não deixam de me arrepiar. 
Parece que se parte do zero, quando, no ponto de partida,  o que está por pagar são milhares de milhões… e a dívida mais preocupante é a interna - vastos sectores profissionais são miseravelmente remunerados, a maior parte dos fornecedores esperam desesperadamente por umas migalhas do orçamento. Sem esquecer que, em nome do aumento do consumo, se continua a estimular o endividamento de cada português.
Por vezes, é necessário fazer marcha atrás se se quer acertar o passo.

26.10.19

O figurino e a ordenança

Há imagens da atualidade que associamos de imediato a imagens antigas, só que o significante verbal esfumou-se. Porém, o significado permaneceu ao longo dos tempos.
Falamos de um soldado ao serviço particular de um oficial.
Entretanto, a pesquisa deu resultado já que a memória não  devolvia o significante.
Consta que na Assembleia da República há centenas de ordenanças que, pensava eu, tinham como missão disfarçar a ignorância dos seus senhor (peça desculpa pela medieval ausência da forma feminina e da presença da sintaxe bantu!), mas parece que não é bem assim: o ordenança continua a zelar pelo figurino, a aliviá-lo do peso e a contracenar com ele…
Seja como for, espero que não levem a mal a associação, pressupondo que tenham estado atentos ao empastelamento destes últimos dias… e não há por aqui qualquer remoque aos ordenanças de Belém...
Finalmente, aviso que este post foi escrito sob a influência de um dicionário de Literatura Grega que permanentemente me adverte para a minha ignorância e para o perigo da consequente estupidez.

25.10.19

A soma das notas

À verdade da história só se aplica o critério da verosimilhança,  porque a matéria da história é de natureza verbal - a realidade pode ser o ponto de partida ou a outra face da moeda, mas sem qualquer compromisso.
Há, todavia, quem insista na anotação do real, como se a soma das notas correspondesse a uma paisagem segmentada no tempo, numa sequência temporal.
O passado, porém, é irrecuperável - um monte de cacos que nem um arqueólogo consegue reconstruir -, uma ânfora perdida no fundo de um galeão destruído por corsários (ou seriam piratas?) ao serviço de Sua Majestade.
A história com maiúscula não existe!
Fiquemo-nos, assim, pelas histórias, se o tempo sobrar. E esse parece ser o maior desafio, o do tempo sobrante… o das histórias que o poderiam preencher, em que a verdade e a mentira litigam entre si...

24.10.19

A rua dos trastes

A rua não pode ser uma lixeira para onde se lançam os detritos, os trastes, os filhos, os desadaptados, os desempregados, os estropiados, os delinquentes e os idosos…
A rua das esplanadas e das ciclovias não consegue esconder a pobreza social e cultural que prolifera nas cidades, pretensamente modernas... 
A rua dos trastes, um destes dias, será dos corvos.
MARCHA FÚNEBRE
Com lixo, dinheiro dos outros, e sangue inocente,
Cercada por assassinos, traidores, ladrões (a salvo)
No seu caixão francês, liberalissimamente,
Em carro puxado por uma burra (a do estado) seu alvo,
(…)
Passa para além do mundo, em uma visão desconforme,
A República Democrática Portuguesa.
O Lenine de capote e lenço,
Afonso anti-Henriques Costa.
Mas o Diabo espantou-se: aqui entram bandidos
Até certo ponto e dentro de certo limite.
Assassinos, sim, mas com uma certa inteligência.
Ladrões, sim, mas capazes de uma certa bondade.
Agora vocês não trazem quem tivesse tido a decência
De ao menos ter uma vez dito a razão ou verdade.

Fernando Pessoa

23.10.19

A sala de aula não é a rua

A sala de aula é, por definição, um espaço social.
Desde o início, as regras devem ser claras, sobretudo as consagradas nos estatutos do aluno e  do professor. 
Para professor e aluno, há direitos e deveres específicos, sendo necessário conhecê-los e, se necessário, debatê-los de forma disciplinada...
Em síntese, a relação é tanto mais problemática quanto mais os intervenientes desprezarem o processo de construção de uma relação saudável que visa a consolidação do processo de ensino-aprendizagem...
A sala de aula não é igual a tantos outros espaços sociais, sejam o pátio, a rua ou até o jardim em frente. Por exemplo, a linguagem, os gestos, o tom de voz obedecem a regras específicas que é preciso aprender - tanto professor como aluno.
Aprender pressupõe formação e, neste aspeto, há muito que o Ministério da educação descurou as chamadas "ciências da educação" - para não lhes chamar 'pedagógicas' - e há muito que as famílias, ao questionarem o modelo de educação, se deixaram cair no 'deixa andar' ou, em alternativa, na constante desautorização dos professores.
(Este apontamento resulta da informação diária de que está na moda agredir alunos e professores.)