21.10.15

O discurso indireto não é fiável

«O discurso indireto não é fiável.»
Este pequeno enunciado tem vindo a assombrar-me, de tal modo que decidi contextualizá-lo. Em primeiro lugar, descobri que a autora de tal ideia é a lexicógrafa e semióloga francesa Josette Rey-Debove (1929-2005).

Na obra Le Métalangage, Armand Colin, 1997, Josette Rey-Debove considera o discurso indireto como infiel, pouco verdadeiro, desorientador, incapaz de dar a conhecer o que foi dito, função que só pode ser assegurada pelo discurso direto. E acrescenta ainda que o discurso directo não passa de uma 'tradução' e coloca todos os problemas ligados à significação da enunciação, à sua interpretação, à sua reformulação (contração e amplificação). 

No tempo em que a opinião é construída pelo comentador, convém não esquecer que os enunciados deste são pouco fiáveis, porque, afinal, mais não são do que traduções / traições de uma voz que não sabemos o que é que efetivamente terá pensado / dito.

Na comunicação como na acção, o melhor é não deixarmos as palavras por mãos alheias...

20.10.15

O narcisismo das pequenas diferenças

«Não é fácil aos homens abandonar a satisfação (...) da inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis.» Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilização, pág. 71, Imago.

A expressão "narcisismo das pequenas diferenças" é de Freud, e hoje vou utilizá-la para significar o que se passa na vida política portuguesa. 
Um pouco por toda a parte se fala de impasse, de falta de acordo total, ou até de displicência na abordagem da questão central: quem vai constituir um governo de legislatura capaz de nos fazer sair da austeridade em que mergulhámos... 
Olhando para o discurso dos protagonistas destes dias, para o tom agressivo que salta das suas palavras, percebemos que eles se sentem confortáveis com as escolhas que os respetivos espelhos lhes devolvem. 
Lembram, no entanto, o imperador chinês que decidiu medir de alto a baixo a China, tendo para o efeito mobilizado toda a população, sem perceber que o resultado final seria a morte do seu povo, já que não sobrava ninguém para produzir o que quer que fosse...

19.10.15

Passos e Costa recriam o paradoxo de Orwell

«Nós não nos contentamos com uma obediência negativa, nem mesmo com a mais abjecta submissão. Quando, finalmente, se dirigirem a nós, deve ser pela sua própria vontade.» Nota de rodapé 127, in A Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard.

Passos e Costa digladiam-se com um único objetivo: a submissão voluntária do adversário. Pouco importa que o povo português saia prejudicado...
E a prova de que a estratégia é de terror é que não procuram qualquer consenso, entendido este como etapa fundamental para que possa ser constituído um governo que sirva globalmente os portugueses...
Se a regra do diálogo passasse pelo consenso não atirariam para a praça pública dezenas de propostas para depois virem dizer que as propostas não são sérias...

De nada serve acusar Costa ou Passos, porque, na verdade, ambos estão interessados em deitar o adversário ao tapete, esperando que o derrotado se sente voluntariamente à mesa e teça loas ao vencedor.

Estes jogadores merecem cartão vermelho!

18.10.15

Renegados

«Depuis plus de vingt ans, je traque les mêmes crapules! On dit qu'il n'y a que les imbéciles qui ne changent pas... peut-être... mais ce sont les renégats qui le prétendent!» Siné, Massacre, Livre de Poche, 1973.

Não é que eu siga com muita atenção os jogos políticos, começo, no entanto, a ouvir falar de deputados, designadamente do Partido Socialista, que se preparam para votar favoravelmente o programa e o orçamento da Coligação. Na sua perspetiva, mantêm-se fiéis ao ideário socialista, mas, como diria Siné, não sendo imbecis... vão passar à História como renegados.

17.10.15

Fora de nós...

Quando o corpo deixa de estar presente nos lugares de rotina, a voz ausenta-se e a manhã acorda de forma estranha. As árvores inermes registam um sopro deliquescente.
(...)
Aos poucos, a manhã regressa ao normal com outros corpos presentes; outras vozes porosas elevam-se e atravessam as árvores em salvas retumbantes.
(...) 
Fora de nós, a luz incendeia os corpos e, mesmo sem voz, a vida escorre... Entretanto, o tempo desfaz o calendário, porque o corpo deixou de estar presente nos lugares de rotina. 

16.10.15

Alexandre Quintanilha na Escola Secundária de Camões

"Take care of freedom and truth wil take care of itself." Richard Rorty, 2007 / Cuida bem da liberdade e a verdade vencerá.

No dia do centésimo sexto aniversário do Liceu Camões, o Professor Doutor Alexandre Quintanilha proferiu, no  Auditório 'Camões', uma conferência sobre "O conhecimento: para que serve?" ou , numa perspetiva mais especializada, "Neuropotenciação e os desafios do "melhoramento humano". 
De forma clara e concisa, combinando o registo técnico com o registo corrente, Alexandre Quintanilha soube explicar a uma assembleia maioritariamente constituída por jovens, os desafios que a ciência e a tecnologia, em particular, no âmbito da saúde, colocam  quanto à possibilidade de "promover / capacitar o bem-estar humano", alterando o ambiente "natural", o ambiente "social", o "estado cerebral" e a biologia. 
Creio que grande parte do sucesso desta conferência deve atribuir-se à pertinência e à qualidade dos exemplos e, particularmente, à capacidade argumentativa, eivada de uma fina ironia, como quando o orador fundamentou algumas ideias: "somos mais filhos da mãe do que do pai" e "toda a medicina é contra a natureza" ou, ainda, se referiu ao tema do 'risco', opondo os conservadores aos mais ousados...
Finalmente, numa abordagem ética e verdadeiramente humanista, Alexandre Quintanilha mostrou que as ciências estão ao serviço do "melhoramento humano", apesar do risco de, em sociedades que desprezam a democracia, a ciência ser colocada ao serviço do "mal".

15.10.15

Na Pasmaceira

«O Pasmado estava ali porque ali deviam cruzar os comboios. Tudo o mais, entrementes, conspirava contra a sua existência. A aridez, o turbilhonar constante das brisas, o isolamento, uma como tenebridade paisagística especial, e também, justo é dizê-lo, a crença de que o sítio era corte de fantasmas e campo não sei de que espíritos de velhos guerreiros de outros tempos (que ali se teriam defrontado e mutuamente vencido) fazia do arredor paragem indesejável - onde só por obrigação se passava, ou ia, ou ficava.» A. Rego Cabral, Tundavala, A Oeste de Cassinga, pág. 270, Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa.

Este é um romance do tempo em que os engenheiros ousavam enfrentar o anátema que os condenava à redação de monografias e relatórios. A literatura era, em Portugal, uma coutada reservada aos juristas, médicos e diletantes.
Um romance de um engenheiro que defendia que a técnica era a alavanca do mundo e, em particular, do mundo português em Angola. Sem a engenharia, o desenvolvimento do território ficaria nas mãos de decisores letrados, mas ociosos... 
A pasmaceira era o estado de alma dominante. 
Infelizmente, entre os políticos, poucos eram os engenheiros verdadeiramente empreendedores. E quando surgia algum, a cáfila, que geria as finanças públicas e impunha a filosofia do espírito, acabava por ostracizá-los...
Na pasmaceira até a guerra era preferível à engenharia, ao desenvolvimento, à atividade produtiva.

Neste romance, o Pasmado é apenas uma estação de caminho de ferro, isolada num território hostil, mas fundamental para o escoamento do minério. Na Pasmaceira atual, a cáfila que gere a res publica encerra e desmantela tudo, em nome do eurismo - uma filosofia cujo espírito está cunhado no euro.
Neste romance, os heróis são os engenheiros, os técnicos, os trabalhadores..