16.3.16

Avolumam-se as pausas

Avolumam-se as pausas - discutem-se os últimos escândalos, a bola, a família, a falta de educação, os excessos... dos outros, as insuficiências dos outros, os erros dos outros...

Por vezes, as pausas são interrompidas para regressar ao trabalho de mostrar ao chefe que o posto de trabalho não foi desertado...
De qualquer modo o esforço é inglório, porque o chefe não descola do lugar que ele próprio determinou ser o seu. 
Hoje a pausa é em frente de um televisor, de onde é possível avistar um funeral de alguém que por aqui passou, sem que, aparentemente, tenha deixado qualquer indício... 

(Começo a pensar que sou invisível! Eu que não sou chefe, observo e registo sem que isso desperte a mínima atenção. Do outro lado, o televisor vai mostrando imagens que não descortino; a própria voz da repórter é abafada por um discurso múltiplo sobre as insuficiências e os erros dos outros, no caso, das outras, por ora, ausentes...)

15.3.16

"Eu fui teu amigo"

Embora sempre ocupado, em algum momento deves ter pensado naqueles amigos que te ignoravam, mas que na tua morte não iriam desperdiçar a oportunidade de saudar a tua jovialidade, a tua fraternidade, o teu  talento.
Nesse momento, o teu sorriso seria amargo, mas por pouco tempo, pois faltava-te o tempo para suportar a mediocridade, embora soubesses que a melhor forma de te desforrares seria representar essas vidinhas postiças.
Desta vez partiste, sem qualquer encenação, sem qualquer sorriso, mas nem por isso a mediocridade irá desaproveitar o momento de dizer "eu fui teu amigo"...
No que me diz respeito, a tua morte trouxe-me à memória que falta algures o teu testemunho, e não sei se foi porque, à data, estivesses ocupado ou, simplesmente, porque as tuas palavras poderiam destoar...

(Na morte de Nicolau Breyner.)

14.3.16

Sou eu que gosto e mais ninguém!

O gosto será determinado pela vontade? Do tipo 'eu não quero gostar de sopa e portanto não gosto de sopa'.
A decisão parece resultar de embirração!
Se os adultos não comem sopa, por que motivo dão sopa à criança... E mesmo que os adultos comam sopa, a vontade de afirmar a diferença, não vá o exemplo coartar-lhe a liberdade, obriga à rejeição sob a forma de choro, grito ou simplesmente de boca cerrada...
(...)
Os dias passam e o gosto vai ficando cada vez mais apurado: eu quero, eu não quero; quero, não quero; não... já disse que não!
Por outro lado, o gosto não exige aprendizagem, não requer conhecimento do outro, nem do contexto em que ele nasceu, cresceu e morreu...
Sou eu que gosto e mais ninguém!
(...)
O gosto foge de qualquer forma de desgosto... e se não for suficientemente convincente, parte para a demolição de todo e qualquer património, porque nada pior para o gosto do que admitir que outro possa ter realizado qualquer coisa digna de admiração...
Sou que gosto e mais ninguém!

13.3.16

Da paixão, da morte, da vida

Nos anos 70, durante três anos e meio, desci e subi diariamente a Calçada do Combro (Lisboa). À época, as igrejas viviam envergonhadas...
Na sala de aula, por mais de uma vez, procurei explicar o que era a arte do Barroco, dando exemplos livrescos, quando poucos números acima se situava um dos expoentes do Barroco e do Rococó do séc. XVII - a Igreja de Santa Catarina ou a Igreja dos Paulistas.
À época, a sede do MRRP tinha mais influência na juventude que frequentava o Passos Manuel ou a Escola D. Maria I.
(..)
Hoje, regressei à Igreja de Santa Catarina para ouvir o CRAMOL (Grupo de Canto de Mulheres) interpretar um conjunto de polifonias e menodias tradicionais de mulheres, evocativo do tempo religioso dos mistérios da vida e da morte .
A execução foi primorosa e por isso merecedora de aplauso, até porque nos restitui cânticos do tempo rural, evitando a mistura tão do agrado das gerações urbanas.
A Igreja encheu, sobretudo, de mulheres, mas isso já são contas de outro rosário... e o prior não ficou a perder...

«A Senhora da Saúde
Tem uma rosa no rosto
Que lhe deram os romeiros
No dia 15 de Agosto»
Manhouce /Beira Alta

Pessoalmente, prefiro o título: Da vida, da paixão, da morte. No entanto, aceito que o lugar possa explicar a inversão... O que não quer dizer que compreenda.

12.3.16

Dois em um, na Ulmeiro

Passei pela Ulmeiro, no nº 13 da Avenida do Uruguai. Mais do que os livros, quem ali mais desperta a atenção é o gato, de que desconheço o nome, mas lembrou-me o velho Bonifácio d'Os Maias. Deitado ao sol na montra da livraria, parecia desprezar quem por ali se comprazia em apreciar o seu porte soalheiro em vez de se fixar na livralhada mais ou menos de teor religioso que ali dormitava...
Entrei, uma simpática senhora, um pouco mais velha do que eu próprio, prontificou-se a esclarecer alguma questão, embora de imediato remetesse para os identificadores afixados nas estantes...
(Sobre a guerra do Rift nunca ouvira falar e o proprietário (?) que se encontrava na penumbra nada disse, o que me levou a pensar que há certos acontecimentos, sobretudo os trágicos, que não interessam a ninguém - milhares de espanhóis, e não só, foram massacrados e, provavelmente, ficaram para sempre nas areias do deserto. Talvez, no entanto, não seja esta a única versão... se eu viajasse até Marrocos, e investigasse as relações do Magreb com as potências colonizadoras - Espanha e França - talvez encontrasse um outro livreiro capaz de me elucidar sobre o primeiro quartel do século XX...)

Como não gosto de entrar numa livraria e sair de mãos a abanar, virei a minha atenção para a estante que indicava Literaturas Africanas. Apenas 5 livros, e eu já os tinha todos... O mesmo sucedeu na estante Literatura Brasileira!
Acabei por encontrar um livrinho em bom estado do Mário Cláudio, que afinal, é dois em um, porque, de um lado, oferece prosa e do outro, poesia... O resto da livraria, não tive coragem de o percorrer...
Preferi visitar o cemitério do Lumiar, onde os ciprestes continuam perfilados e, hoje, visitados por aves que não consigo identificar - não eram corvos nem gaivotas! Talvez estivessem de passagem, como eu, e me seguissem até à Quinta das Conchas...
Ainda observei os eucaliptos, mas neles só poisavam os pombos e um ou outro melro.

11.3.16

Com a idade...

«O movimento não se confunde com o espaço percorrido. O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de percorrer.» Tese de Bergson

Com a idade, o espaço percorrido cresce, e na cabeça de certas pessoas incha de tal modo que pouco sobra para que o resto do corpo consiga mover-se...
Essas pessoas vivem num espelho que lhes reflete as frustrações e os delírios. Reclamam direitos por serviços prestados e detestam ser contrariadas.
O outro perde em autonomia e ganha em servidão... e à medida que serve vai pensando se não se enganou no caminho.
Desmeditando, está na hora de voltar a servir, que os deuses já se inclinam sobre a nossa insubordinação.

10.3.16

Marcelo, oficialmente, esqueceu Fernando Pessoa

Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa prestou homenagem a Vasco da Gama e a Luís Vaz de Camões. E, oficialmente, esqueceu Fernando Pessoa.
Esperemos que o "espírito" do Estado Novo não esteja de regresso. Há, no entanto, indicadores que perturbam: "venham a mim os pobres de espírito!"
Como diria José Rodrigues Miguéis, "o pão não cai do céu"...