29.9.18

Da voz, o silvo

Quando se enfurecia, a voz tonitruava, ouvia-se bem longe. Todos o conheciam pela voz assustadora, cheia de promessas de vergastadas… 
Era baixote, atarracado, trabalhava de sol a sol, mas a terra árida não lhe multiplicava o grão nem lhe devolvia as palavras - seguia um plano de que ele não era parte.
Só a vergasta o acalmava. Quando ela desabava sobre a vítima, ninguém mais o ouvia. Só um silvo repercutia…
Porquê? Não sei. Temo, no entanto, que da voz já só me sobre o silvo, mesmo quando ela se enfurecia porque a terra árida seguia um plano de que ela, por culpa própria ou alheia, não fazia parte.
Há dias em que a terra é toda árida!

28.9.18

A lucidez de Laborinho Lúcio


Quando me falou de olhar o ensino a partir das crianças fiquei com a ideia de que ia falar-me de competências e de vocações...

Sim, há para mim um aspecto fundamental que é este: vivemos perturbados e preocupados com a necessidade de gerar competências, competências, competências. E não nos damos conta de que encharcamos as crianças de tal maneira com competências que nunca chegamos a saber quais são as suas capacidades. Ora a escola tem um período inicial, que pode ser de anos, deve ser de anos, em que fundamentalmente o importante deve ser soltar as capacidades máximas de cada criança. E agora que eu conheço a capacidade máxima de cada criança, então sim, introduzo as competências. Como é que vou saber as suas capacidades? Distinguindo competência do conhecimento. Conhecimento, até há pouco tempo, estava ligado a uma certa universalidade do saber. Hoje, o conhecimento está muito ligado à sociedade de inovação, à criação de valor, portanto, muito comprometido com uma sociedade tecnológica. Mas o conhecimento mais global, mais universal, é fundamental para desenvolver as capacidades, e quando confundimos conhecimento com competência ou o entalamos dentro desta ideia de sociedade de inovação, entulhamos as crianças com coisas que não lhes dizem nada e deixamos de ser capazes de compreender as suas capacidades. Desenvolver as capacidades de uma criança é um dever que qualquer pessoa ligada à escola e à educação. A seguir vamos trabalhar o conhecimento, que já permite desenvolver pensamento crítico, escolher. Competências e capacidades
Se Laborinho Lúcio tem razão, isso significa que, ao entrar no ensino secundário, cada aluno já deverá ter consciência das suas capacidades… isto é, cada aluno levará consigo um registo das suas capacidades, competindo ao professor colocá-lo em situação de… Fazer o quê?

25.9.18

Mediador

Hoje, 25 set., iniciei o dia com uma ideia que fez o favor de se evaporar. 
Atravessei a cidade segundo um plano subterrâneo inexplicável para quem a percorre quotidianamente à superfície, mas perfeitamente aceitável para quem se habituou a viajar de metro…
Hesitei em saudar Mário de Carvalho por ter chegado aos 74 anos. Afinal, há certos gestos que o Facebook insiste que realizemos, independentemente da distância a que vivemos.
Descobri que Fernando Pessoa escolheu o dia de 1 de abril para anunciar que «o poeta é um fingidor.» Admirável sentido de humor!
Conclui que 'ao espalhar por toda a parte' a memória 'daqueles que por obras valerosas / Se vão  da lei da Morte libertando', Camões assumiu definitivamente o papel de mediador, sem o qual o mérito teria o mesmo destino que a ideia matinal
E depois, há aquelas Autoridades que ninguém reconhece como tal - Harold Bloom, Eduardo Lourenço… 

23.9.18

Não vou ...

Não vou abdicar, nem reformar-me, nem a enterrar (espero), vou apenas poupar as palavras de tão vulgares que elas circulam. Por isso não estranhem a minha ausência. 
Regressarei se houver algo de nobre a acrescentar. 
De momento, sinto-me cansado de tergiversações - da moleza mental que medra nas redes sociais.

22.9.18

Pacóvio suburbano

Apesar de tão viajado, de tão condecorado, quem é que se lembra dele? Caído no esquecimento, a contas com uma cunha pacóvia, regressou agora, zangadíssimo com a plebe do Rio, declarando alto e bom som que se recusa a mergulhar com eles, porque são «pacóvios suburbanos».
O uso do valor restritivo do adjetivo 'suburbano' leva-me a pensar (?) que o diplomata não quis deliberadamente referir-se àquela gente de origem obscura que, de tempos a tempos, assalta a grande metrópole, em nome de sombrios valores ancestrais. 

21.9.18

Martins da Cruz abandona os pacóvios do PSD

António Martins da Cruz disse: “Não me revejo em pacóvios suburbanos”. Martins da Cruz
Diga-se de passagem que a vida do PSD nunca me entusiasmou, embora não me seja indiferente, até porque o país muito sofreu sob a batuta de Cavacos, Durões, Santanas e Coelhos…, alguns deles zelosos pacóvios…
O que me espanta é que o ilustre alfacinha Martins da Cruz só agora se tenha apercebido da existência de pacóvios no PSD até porque serviu o "filho de Boliqueime" mais do que uma década…
A verdade é que é difícil encontrar um pacóvio que tenha sido tão condecorado como ele. Pelo menos, 25 condecorações!
Porque será que levou tanto tempo?

20.9.18

Dentro do espelho

«- Quem tem poder, se tem poder, quer que o vejam.
- Porque a política é um espelho - disse o outro. (…) 
- Mas o espelho está sempre presente - disse o outro. (…)
- A verdade é que um espelho é a televisão - disse o caixa.
- Exacto - disse o outro. Um espelho que guarda as caras.
- Tem-nas todas lá dentro e quando nos olhamos vemos a cara de outro.»
                                   Ricardo Piglia, A Cidade Ausente

Quando os estímulos exteriores são muitos, recolho-me na leitura. Só que ela devolve-me o circo… Por mais que faça, não escapo à greve dos enfermeiros, à paralisação dos taxistas, à lição do Professor Marcelo Rebelo de Sousa. 
Todos eles se movem na «caixa», alardeando poder. Todos eles «estão ali» à espera da minha sujeição, do meu reconhecimento…