20.7.19

Por entre aparas

No geral, as borrachas, que utilizo, sujam mais do que apagam. O primeiro ato é, assim, de limpeza para que possa eliminar o que não convém, embora a conveniência possa ser problema alheio.
- Vá lá, meu menino, passa a limpo que fica melhor!
Ser cortês é isso - aprender a limpar, aprender a apagar.
Tanto apagamos que pouco sobra! 
Ser cortês aprende-se a limpar, a apagar, a rasgar… de tal modo que as aparas se amontoam sem nos apercebermos do vazio que criamos…
Até que um dia, nos exigem que refaçamos o que apagámos - «o peito oculto», como se ele não tivesse sido eliminado antes, mesmo, de termos nascido…Nós, os que crescemos por entre aparas...sem acesso ao peito das reticências nem das metáforas e muito distantes das anástrofes da vida.

17.7.19

As dúvidas adensam-se

Ao contrário de quem «só sabe», eu sei cada vez menos… as dúvidas adensam-se a toda hora - as certezas esmorecem.
Oiço, mas fico sem saber se as palavras que me chegam refletem o pensamento de quem as profere, máscaras simpáticas do momento… que também podem ser odiosas… só porque não satisfazem os caprichos…
Emudeço na dúvida.

15.7.19

Desligar

Não sei se vai ser fácil desligar…
Há anos que o procuro fazer sob a forma de distanciamento, mas acabo sempre enredado… pois continuo preocupado, sobretudo quando a vaga de sabotadores vai engrossando… Uma vaga cuja retaguarda é constituída por encarregados de educação incapazes de distinguir quem recorre à disciplina para poder instruir de quem apenas os lisonjeia… porque vivem na ribalta política, académica, artística, ou ainda usam monóculo ou pingalim…
No próximo ano, vou trocar a luz pela penumbra.
Pode ser que, assim, desligue de vez…

13.7.19

Tudo é efémero

Continuo atento, mas a energia falta. As pernas já não acompanham a vontade e mesmo que as obrigue a cumprir a caminhada, elas encontram sempre forma de me lembrar que as não posso utilizar a meu belo prazer…
Entretanto, tudo convida as que lhes dê descanso ou que as substitua - o negócio da preguiça está por toda a parte, mesmo que saibamos que, daqui a um ano ou dois, os novos empreendedores consigam a salvífica declaração de falência. 
As offshores resolvem… Dizem-me que 30.000 milhões de euros atravessaram a fronteira!

11.7.19

O passageiro esturricado

O painel informativo regista um intervalo de 15 minutos entre o 783 Prior Velho e o 783 Portela. O passageiro prepara-se para na paragem do Aeroporto abandonar o primeiro e esperar pelo segundo autocarro, quando, na Rotunda do Relógio, se dá conta de uma outra alternativa - o 722 vem na roda. Afinal, com o calor das 14 horas, a mudança inesperada alivia da canícula…
Entretanto, o 783 Prior Velho liberta o passageiro na paragem do aeroporto… e o autocarro 722, numa ultrapassagem vertiginosa, deixa-o a esturricar mais 15 minutos à espera do 783 Portela… 

Os factos aqui ficam. Dos comportamentos é melhor nada dizer.
O que é curioso é que o passageiro há dias que se interroga se os comportamentos podem ser considerados factos…

9.7.19

Se fosse neutro

«Que o verbo seja um espelho…» David Mourão-Ferreira

Se fosse neutro, o verbo poderia ser o reflexo de uma escada que ligasse a terra ao céu…
Em baixo, o grotesco; no topo, o sublime; no intervalo, a diversidade…
Em baixo, o sublime; no topo, o grotesco; no intervalo, a diversidade…
A escadaria poderia ser bela, não fosse a soberba que nos faz discriminar a cada passo…
Não fosse a soberba (…) a escadaria poderia ser bela.

7.7.19

Um homem deve ler de tudo

«Um homem deve ler de tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija mais do que tanto, vista a curteza das vidas e a prolixidade do mundoJosé Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 159.

Por estes dias, 'de tudo' é a locução adequada. Todo o tipo de folhas, a maioria caduca… Por vezes, uma centelha, outras, uma orientação na floresta desavinda… sem esquecer o rigor do David Mourão-Ferreira do Motim Literário, textos dos anos 50 e 60 do século passado… 
(Um destes dias, volto a falar do crítico literário…)