15.5.20

Numa avenida de Lisboa

Nesta avenida - que exagero, não passa de uma rua com dois sentidos!- por volta do meio-dia, torna-se difícil circular, de carro ou a pé…  Há veículos em segunda fila um pouco por todo o lado, e nos passeios, amontoam-se pessoas de todas as idades para comprarem o almoço pronto a devorar… Parece que já ninguém se dá ao trabalho de cozinhar!
Como não se entra nos estabelecimentos, fica-se nas imediações a cavaquear… as máscaras sobem e descem, de acordo com o grau de estranheza. Se caem ao chão, depois de uma sacudidela, voltam a ser colocadas ao pescoço e depois, sobem à boca e ao nariz, mas não totalmente, não vá o ar esgotar-se.
Nesta avenida de Lisboa, os comportamentos não divergem dos, por exemplo, da avenida de Moscavide. E curioso, quando penso nisso, apercebo-me que ambas são encimadas pela respetiva igreja…, uma mais rica, outra mais pobre, tal como os fregueses do estômago e dos deuses.

13.5.20

A morte dos macróbios

Neste blogue, nunca utilizei as palavras 'micróbio' e 'macróbio'. Aqui, desde 2006, terei repetido tantos vocábulos, a propósito e a despropósito! No entanto, apesar do termo me ser familiar, o 'micróbio' nunca despertou o meu interesse. Por sua vez, o 'macróbio' chamou a minha atenção ao ler a seguinte afirmação de José Saramago: «ceia melhorada nos asilos, que bem tratados são em Portugal os macróbios»... O ano da morte de Ricardo Reis, pág. 29. À época consultei o dicionário Aurélio, e fiquei esclarecido: aquele que vive muito ou tem idade avançada
Não pensei mais no assunto até que, com a chegada do Covid 19, percebi que este vírus vitimiza principalmente os longevos, provavelmente, os que têm ceia melhorada nos asilos, se bem entendermos a ironia saramaguiana. Em Portugal e no resto do mundo, sobretudo naquelas partes onde os mais velhos são colocados em depósitos bem rentáveis…, frequentemente clandestinos…
Os macróbios incomodam, mas enriquecem muita gente que, agora, vai sacudindo a água do capote.

11.5.20

Ideia absurda

De tanto ouvir, acabo por me interrogar sobre o significado de certas expressões. Por exemplo: 'regressar à normalidade'.
Se regressar já é, em si, prova de irrealismo, e não vale a pena voltar à água do rio, então, regressar à normalidade é uma monstruosidade...
Se antes do COVID-19, o planeta estava à beira do caos, do abismo, para quê voltar a esse estado de total desvario, de perdição?
O que sempre definiu o homem foi a sua capacidade de adaptação, ou melhor, de transformação da realidade.
Parece assim que este é o momento certo para nos reajustamos mais em função das necessidades do planeta do que dos nossos interesses. Ora o que ouvimos, a cada momento, é a voz do interesse egoísta - individual e coletivo.

10.5.20

Em casa

«Ce ne sont pas les informations qui font le journal, mais le journal qui fait l'information."Umberto Eco

Ficar em casa é deixar de ver a realidade, é ficar refém da mediatização.
No rio não se especula, não se intriga… as aves procuram o sustento, respeitando as distâncias...
Em casa, o mundo encolhe, deforma-se... torna-nos amorfos…
Saia de casa, aprenda com as aves.

9.5.20

Viajo com os suspeitos do costume

Em casa. Viajo. Nas últimas semanas, por Lisboa, com José Saramago. Ontem, iniciei nova viagem, por Milão, com Umberto Eco…E assim, sem sair de casa, retomo viagens já realizadas, mas que, vistas desta minha janela, estavam por concluir…Estas viagens, por vezes exigentes, têm o condão de me fazer avançar por lugares que julgara perdidos ou sem sentido...Quando viajo, não perco nada, ao contrário do Poeta que andava perdendo países para os poder, simplesmente, fingir.

7.5.20

Movimentos

As aves passam, levam consigo o arroz integral. Fazem-no em movimentos sôfregos e fortuitos… como se temessem a voracidade felina ou até humana…
Não sabem o que é o medo, mas pressentem o perigo, antiquíssimo, muito anterior à própria vida…
E nós, parece que não temos medo, deslocamo-nos em movimentos sinuosos, silenciosos, sabendo, de antemão, que as bombas de outras guerras foram suspensas - que não há razão para nos recolhermos nas caves…
No entanto, o que mais tememos é não ver nem ouvir o tracejado das gotículas assassinas, seletivas - antiquíssimas, muito anteriores à própria humanidade.
Arroz integral? E se fosse trigo roxo? Provavelmente, as aves afastavam-se, perdiam o apetite, deixavam de chamar a família para o repasto...
E nós? Ansiamos pela família e servimos-lhe trigo roxo!

5.5.20

O recolhimento

Voluntariamente, tenho vivido no ano de 1936, seguindo o caminho de Saramago. Não é fácil! Mas liberta-me do discurso sentencioso de quem não sabe recolher-se e, desta vez, não me estou a referir à prosa do nobel…
O confinamento como dever cívico soa-me a astúcia política de quem não quer perder ou  quer ganhar votos…
Creio que o recolhimento é a atitude mais sensata e mais desafiante. E, afinal, o José viveu uma parte da sua vida numa ilha vulcânica!