20.12.16

Línguas de fogo...

Não sei se as metáforas ensandeceram, mas as que encontro andam tão estafadas que me apetece calcá-las e deixá-las a fenecer. Parecem ter sido moídas por um energúmeno, que atolado numa qualquer lixeira, decidisse lançá-las aos abutres de serviço na Academia ou lá como se chama o clube  de sapiências que tomou conta das universidades, politécnicos, institutos e quejandos...
Ouvi dizer que as metáforas só são pertinentes se perderem a referencialidade e ficarem a levitar no espaço cerebral dos seus criadores, deixando os leitores a decifrar puzzles irresolúveis. Basta sonegar duas ou três peças para que a metáfora se eleve acima das cabeças, para depois sobre elas poisar como língua de fogo...
O problema é que as línguas sagradas parecem ter vontade própria, pois são elas quem decide quem integra o falanstério dos eleitos, são elas quem agracia e quem deixa de fora... E os eleitos não se fazem rogados, desatam a voz, assaltam as cadeiras e ocupam-nas vitaliciamente.
Há até uns tantos, que depois de mortos, ainda continuam assombrar-nos com a sua inexplicável opacidade.   

19.12.16

Transtorno coletivo

Poder-se-á pensar que a tirania é um privilégio dos estados ou daqueles que aspiram à conquista do poder, mas, pela amostragem dos últimos anos, a violência individual serve-se (ou esconde-se por detrás) de causas mais ou menos nobres para satisfazer instintos autodestrutivos. 
Temos assim uma conjugação explosiva que levará inevitavelmente a uma permanente retaliação e à morte de qualquer tipo de humanismo que ainda possa persistir.
As mortes, por exemplo, em Alepo, em Ancara e em Berlim são a prova do transtorno coletivo em que vamos mergulhando.

18.12.16

O que mais irrita...

 
O que sobra do Império é bastante absurdo!
As portas de madeira carcomida, o metal ferrugento, os púcaros amachucados, as aves empalhadas  e depois, uma natureza defenestrada e pessoas fascinadas por uma melopeia guerreira, convencidas de que a mudança liberta, mesmo se a nova exploração as torna infra-humanas.
O que mais irrita é a quantidade de ferrugem, os arquivos mortos, a ideia de que nada vale a pena.





Está quase tudo na exposição de Antonio Ole. A bromélia, não.

O mapa do tesouro

«O governo de Passos Coelho prometeu o mapa dos diamantes a Angola, uma semana após ter tomado posse e quatro dias antes de ser derrubado no Parlamento.»

Enquanto uns esfolaram e mataram, durante 100 anos, para rastrear o território angolano, um governo desmiolado entrega o mapa do tesouro.
Gesto solidário, pensarão uns; gesto perdulário, pensarão outros.
Por mim, é mais um ato irresponsável, de desrespeito pelo passado, mesmo se de sangue.

Quanto às contrapartidas, o tempo dirá... ou talvez o Correio da Manhã.

17.12.16

Desabafo em dia de ranking

Espaço vetusto. Equipamento obsoleto. Corpo docente envelhecido. Corpo discente heterogéneo e mal preparado...

Ranking tradicional: 146 (10,85).
Ranking alternativo: 225 (0,58)

Todos os dias são esforçados, mas os resultados não premeiam o empenho da comunidade escolar.
E no próximo ano, tudo continuará...

Claro que há sempre quem olhe para o lado. Ainda por cima... para o lado errado.

16.12.16

O telefonema do Hospital Central de Lisboa

Se não formos direto ao assunto, ninguém nos segue.
Pois, faça-se a vontade de quem ainda a tem ou pensa ter!
A cirurgia estava marcada para as 11 horas. A receção no hospital Curry Cabral marcada para as 10h45.
Às 10h05, o telefonema: - o Senhor ainda está em casa? Não vale a pena deslocar-se, o anestesista acaba de avisar que não pode estar presente...

No metro, o utente do SNS desespera. (Preparara-se para a intervenção, há meses considerada urgente, desmarcando todos os compromissos previstos para a semana anterior ao Natal, não ingerira qualquer alimento, sólido ou líquido, avisara os amigos... e a agora o telefonema! Ainda pensara que estivessem preocupados, não fosse ele atrasar-se. Nada disso! E de chofre, nova pergunta: - Será que é possível realizar a cirurgia no Natal ou no Ano Novo?)

Sob chuva intensa, o paciente desloca-se à Secretaria do Hospital. A explicação não muda uma vírgula: - O anestesista não apareceu. (Já na  consulta de preparação, também marcada para uma sexta-feira, o anestesista não aparecera.) A funcionária, solícita, procura encontrar nova data na agenda - um nome de outro doente é riscado... e a cirurgia fica marcada para o dia 27, uma terça-feira, dois dias depois do Natal...

(O testemunho é do "adulto responsável", cujo dever é acompanhar o doente no pós-operatório, prestando-lhe os cuidados que o SNS passou a delegar nas famílias para evitar maiores custos.)

15.12.16

Um pássaro esverdeado

Acordo cedo. A gata arranha a porta. E não sei se acordo cedo porque a gata arranha a porta ou se a gata arranha a porta porque acordo cedo.
Ela sabe que não lhe quero abrir a porta, mas que pode tirar vantagem, pois reforço-lhe a ração da madrugada. Eu quero distraí-la do objetivo inicial, no entanto desconfio que o objetivo dela seja diferente do imaginado.
Até porque a gata, satisfeito o apetite, desloca-se para a sala, e imobiliza-se junto do computador à espera que eu o ligue... e verifique quem está online ou se, no tempo de Morfeu, algo aconteceu de verdadeiramente insólito.  E esfíngica, observa todos os meus movimentos até que eu conclua as rotinas da madrugada...
Só reage à abertura da porta que dá para o patamar... aí, ela consegue esgueirar-se e não perde a oportunidade de subir o lanço de escadas que dá acesso ao sótão. Abro a porta do elevador à espera que ela queira entrar, porém ela prefere regressar a casa ou, em alternativa, descer o lanço de escadas que dá acesso ao 11º andar.
(a escrita, neste, momento torna-se mais difícil, pois ela insiste em dar-me marradas e em digitar uns sinais ++++, o que é o menos, pois de seguida a vítima é o S. José que corre o risco de ficar sem bordão.)
A Sammy vive cá em casa como viveria em qualquer outra casa, apesar de aqui ela poder exercitar-se no varão, sem nunca esquecer o seu velho peluche - um pássaro esverdeado, reduzido à expressão mínima. Por vezes, oferece-mo... e eu agradeço.
(... )
Há uma hora atrás, perguntaram-me se iria "passar o Natal à terra". Pergunta inofensiva, mas que me surpreendeu de tal modo que eu retorqui "Qual terra?" E pensei "aquela terra nem cemitério tem!" Só agora dou conta que não posso voltar à terra, pois a Sammy não gosta de descer de elevador, embora possa voar atrás do velho peluche esverdeado...
Entretanto, já lhe prometi que, um destes dias, vamos ler  O Gato Preto, de Edgar Allan Poe:

«Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda a certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei esclarecê-los