20.10.19

A vida

'Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...'
Álvaro de Campos, A Passagem das Horas

No Facebook, ainda há almas sensíveis atentas à passagem das estações que, acima de qualquer outro valor, colocam a Vida, até porque o Sol regressa todos os dias, mesmo se oculto.
A mensagem de vida é constante na poesia de Fernando Pessoa - para além da vida, Nada, só a Vida...

19.10.19

A casa ibérica

Barcelona out 2019
A metáfora atrai e chega a entusiasmar os iberistas que acreditam que a Ibéria deveria ser um espaço de acolhimento de todas as culturas que nela tentaram desabrochar ao longo dos séculos…
O problema é que neste espaço foram sendo erguidos demasiados castelos que foi necessário defender e assaltar de armas na mão… 
Na Ibéria, o cavaleiro e o monge preferiram sempre a cruzada - a conquista. 
Na Ibéria, dos fracos não reza a história, mesmo quando estes possam ser maioria.
Na Ibéria, o espírito democrático nunca prevaleceu. Muito menos, a ideia de uma casa federada.

18.10.19

Talvez não

Em descanso e desinteressado? Talvez não.  
Olhar de desilusão? Talvez não.
Desleixado? Talvez não.
De facto, nem ela, a estátua, conhece a razão por que se encontra naquele largo...
Nem eu sei porque razão ela chama a minha atenção.
Sinto! 
Como se fosse possível dizer o que sinto! Como se houvesse alguma relação  do sentimento com a sensação!
Contentar-me-ia se pudesse voltar a olhar a estátua escondida num recanto de agosto - mais do que olhar é já perversão...
Talvez não.

17.10.19

Falam-te de água...

Basta uma palavra, inesperada, para nos fazer saltar...
Por exemplo, 'trinfar'...

Falam-te de água as
andorinhas no trinfar dos beirais

cedo te falarão de mim
ainda que não saiba quando a
próxima primavera
António Souto, O Milagre do Entardecer, circularidade, Onyva, 2019

Sim, 'trinfar' existe: 'soltar a voz' (falando-se da andorinha).…  
E assim o leitor procura as águas dos beirais, que anunciam a migração, ao entardecer, na expectativa, que haja regresso da fala, sempre primaveril, bucólica.
… haja regresso da poesia do António Souto.
Por agora, a chuva cai dos beirais e fala-nos do milagre do anoitecer...

16.10.19

Neste dia

Maria Antonieta foi julgada, condenada por traição, e guilhotinada em 16 de outubro de 1793. Já lá vão 226 anos|
O edifício do Liceu Camões foi inaugurado em 16 de outubro de 1910. A desejada reabilitação está em curso lento, com ou sem nevoeiro...

Este que aqui escreve veio ao mundo, com bastante dificuldade e alguma dor, no dia 16 de outubro de 1954, pelas 6 horas da manhã. Talvez seja esse o motivo porque gosta de se levantar cedo...
Presentemente, sente-se mais próximo do edifício projetado pelo Ventura Terra do que da Maria Antonieta pois, apesar de tudo, prefere submeter-se a algumas obras de conservação a imaginar a cabeça a separar-se do pescoço.
Enfim, há quem diga que hoje tem início uma nova vida, mas não me parece. Talvez, alguns descontos aqui e ali… sem regresso ao ponto de partida, e já distante do tempo da caruma.

15.10.19

Escrever

Há quem escreva porque tem muito para dizer e procure dizê-lo de vários modos, uns mais tradicionais, outros mais audaciosos. No entanto, muitas vezes, a audácia é filha da preguiça de quem não quer fazer o caminho antigo… Dir-se-ia que o disparate compensa…
Dizer muito ou pouco nada adianta, porque já só interessa  não o que é dito mas o que se deseja no momento, e o desejo não respeita qualquer tradição, qualquer moral… nem pode mesmo ser confundido com o cio, pois este costuma ser sazonal.
Forçado a fugir do caminho antigo, eu já só escrevo porque nada há para dizer, no sentido do interdito.

13.10.19

Por maior que seja a dor

«Il y a quelque chose de vrai quand je dis que tout bien, et même toutes les créatures, sont par rapport à Dieu moins qu'une fève comparée au monde entier. C'est pourquoi, si j'étais un homme bon et avisé, je devrais à juste titre renoncer à prier Dieu qu'il me donne la santé.» Maître Eckart (1260-1328), La Divine Consolation

Eu que, só por distração, peço qualquer coisa, começo a apreciar a teologia de Maître Eckart. Nunca me passou pela cabeça que, devido à minha incapacidade de aceitar a existência de Deus, viesse a reconhecer que um mundo sem Criador fosse absurdo… A questão para Maître Eckart colocava-se de um modo distinto - se havia criaturas tinha que haver criador. E esse criador tudo definira no tempo da criação… À criatura, por maior que seja a dor, só resta agradecer os momentos em que ela se ausenta.
No essencial, a minha incompreensão nunca teve nada a ver com o Criador, mas, sim, com o Deus de dor (Cristo / o Filho) a que me deveria submeter.
A consolação não passa pela submissão.
A consolação é um modo de aceitação, em que, apesar de grão (fève), disponho de um certo número de oportunidades e, sobretudo, a oportunidade de não cortar as pernas às criaturas, minhas vizinhas.