26.8.20

À espera que a maré suba


À espera que a maré suba, que a noite chegue ou nem por isso. Mas se assim for, já não é espera, nem sequer do Godot. 
Dizem que saber esperar é uma virtude. Por exemplo, o alentejano é virtuoso porque sabe esperar. Espera no banco à beira da casa…
O alentejano, no entanto, só sabe esperar no banco da rua. Se o mandam para casa esperar, morre de tristeza. Não sabe o que fazer ao olhar...

24.8.20

Conversa adiada

Durante uns anos, o professor Carlos Eduardo Nunes Diogo colaborou comigo na formação de professores na Universidade Autónoma de Lisboa - a relação foi sempre cordata, apesar de parca em palavras… Mais tarde, encontrei-o na escola Secundária de Camões, como colega diligente e quase sempre sorridente. E as palavras continuaram raras, como se houvesse uma distância intransponível…

Hoje soube que o Carlos Diogo partiu, adiando as nossas palavras. Talvez, com mais tempo…

23.8.20

Está lá quase tudo...

Não creio que as palavras possam acrescentar o que quer que seja. Por elas, o silêncio é mais esclarecedor… O absurdo está em querer dizer por palavras o que nos escapa.  Ou em insistir em dizer por outras palavras. Metáforas para quê?

22.8.20

Agradeçamos! Vinde e dizimai-os!

O Reino Unido anunciou hoje um aumento do número de novos casos de covid-19, com o país a registar 1.288 infeções nas últimas 24 horas. Já em Itália, foram registados 1.071 casos de contágio, o maior aumento diário desde maio.

Ávidos da moeda do estrangeiro, abramos os mãos e acolhamo-lo nas nossas casas, deixemo-lo usufruir do pão e da cerveja e, no fim, revigorados da sua presença, dancemos até ao nascer do dia... se a ira divina não se tiver, entretanto, abatido sobre as nossas cabeças…

20.8.20

Não ter a quem servir

Não é um juízo! Pelo menos, livre. Apesar da rebeldia, que imaginava legítima, tudo o que dizia, mais do que fazia, era sempre uma resposta, embora não fosse confrontado…
Se a morte do estímulo acontecesse, a revolta perdia motivação e, no lugar dela, sobejava somente desorientação ou, em muitos casos, teimosia que, por vezes, era lida como convicção.
Não ter a quem servir aborrece-o!
Falta-lhe um rosto, mesmo se irado, mesmo se oculto. 
Paradoxalmente, hoje, serve um bicho invisível que o obriga a cumprir um dos objetivos da retórica - instituir a distância, estar atento aos movimentos do outro para que haja lugar para o confronto. 
O confronto e não o consenso! Como se a vida da Terra dependesse da eliminação quotidiana da memória…

19.8.20

Tudo sossegado

É assim! Uns correm para o litoral, outros para o interior. Aqui ao lado, poucos se movem. Nem as canas de pesca se agitam; descansam pensativas na corrente... Talvez as aves lhes tenham desviado o cardume! A maré vai cheia - a água do mar sobe, ali, para os lados da Póvoa de Santa Iria, ao contrário da mártir, que do Nabão foi dar nome às areias do Tejo… para, depois, continuar o seu caminho para lá da foz.
 

18.8.20

Mestre da inquietação

Uns afrontam-se alheios à condição. Outros, em nome de uma essência bacoca, descontextualizam tudo, como se fossem os únicos portadores da verdade... 
E depois há os apressados, formados na escola do oportunismo, que pensando agradar a gregos e a troianos, se dedicam a criar mamarrachos e a plantá-los um pouco por toda a parte.

E esta semana, sob pretexto de uma homenagem no dia em que Miguel Torga faria 113 anos, na quinta-feira, a junta de freguesia de São Martinho de Anta, lembrou-se de usar a raiz (do negrilho) como base para uma escultura do rosto do escritor transmontano, uma intervenção feita por Óscar Rodrigues. De acordo com o presidente da junta, José Gonçalves, a raiz estava a entrar em podridão, e houve, assim, uma súbita urgência de fazer alguma coisa. 

. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954

Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!