7.5.22

Não sei quem é o Speer de Putin

Para os megalómanos, destruição e construção encontram-se lado lado... Arrasam-se cidades para construir novas cidades, com avenidas maiores, com arcos de triunfo mais altos, para que a superação seja inultrapassável e inquestionável; aos seus olhos, os próprios povos ganham mais densidade, mesmo que a expansão seja aniquiladora, pois as vitórias  legitimadoras acabam sempre em derrota...
Poupa-se Paris para construir uma nova Berlim que ofusque definitivamente a cidade das luzes. Invade-se a Rússia para superar Napoleão...
No entanto, no caso da Rússia, não se percebe o que é que Putim quer construir que lhe assegure a imortalidade por mil anos... Eu, pelo menos, não sei quem é o SPEER de Putin...

( Para quem queira entender o desvario do atual czar russo, recomendo a leitura de alguns dos ensaios do livro de Elias Canetti, A Consciência das Palavras.)

Do Segredo e Singularidade, cito: 
«O círculo mais restrito que rodeia Hitler na residência de Obersalzberg (...) é constituído pelo bem experimentado fotógrafo, o motorista, o secretário, a amiga, duas secretárias, a cozinheira dietética e, por fim, mais uma pessoa de um género completamente diferente, o seu arquitecto particular. Todas elas, com esta única exceção, foram selecionadas segundo o princípio da utilidade mais primária.» 

5.5.22

A língua da rosa

O repuxo segura o fluxo, filtrando um murmúrio de queda de água...

O utente espera uma consulta salvífica das quedas recentes, como se o diagnóstico resolvesse por si a dor própria e alheia...
Mais longe, o som plangente não consegue delimitar o sonho avesso à realidade. 
Só a rosa parece conhecer o caminho, indiferente às cores que a cercam - espinhos protegem-na muito para além do seu tempo de vida...
Se a rosa escrevesse, a língua dela seria de pétalas...
No desastre de Mariupol, nem sequer há espinhos!
 

3.5.22

Se escrevesse cartas

Se escrevesse cartas várias vezes ao dia, e estas ainda fossem respondidas e entregues antes da lua chegar, então registaria que ao acordar logo a dor lombar se sobrepôs ao sol escondido pelos estores fechados... Claro que o destinatário deveria ser masoquista e nada ter para fazer, a não ser o registo sumário de minudências do quotidiano...Tempos houve que o destinatário dessas missivas se prestava a ser incomodado sem nada receber em troca, exceto uma atenção doentia e estéril...
E talvez lembrasse o amigo distante que partiu para o Brasil quando o Sol abrasava a cidade, e do qual, hoje, nada se sabe ou, talvez, haja quem saiba, mas ele tenha decidido que não quer ser incomodado com cartas de falso arrependimento... 
E também poderia recordar o outro amigo, escritor, que já não responde a e-mails porque se fartou da humanidade ou, melhor, da falta dela...
E ainda poderia escrever uma carta à Ucrânia, mas não sei se os bombeiros entregam cartas, já que deixei de ouvir falar de carteiros. Daqui, donde observo a Ucrânia, estou sem perceber se os códigos postais ainda são válidos ou se os russos os roubaram, porque odeiam os mensageiros... 
De qualquer modo, evitaria escrever à Ucrânia por causa do meu hábito de me queixar por tudo e por nada...  pois tudo o que ela me poderia responder acabaria por incomodar-me terrivelmente, mesmo se ela não me pedisse armas... apenas que a libertassem dos jogos de poder.

2.5.22

Se Kafka...

Se Kafka passasse por aqui antes de se ter transformado, aproveitaria para tudo anotar. 
Da greve da rodoviária à hipotese da roupa ficar por engomar, deixando para as 6:30 de amanhã o toque do despertar...
Da passagem matinal pelo supermercado à descoberta tardia de que o vistoso e apetitoso saco de fruta  escondia maças podres de alcobaça...
Da dificuldade em lidar com quem esquece atos recentes e guarda na memória vívidos episódios de outros tempos...
Das dores cuja intensidade é difícil de avaliar, mas que exigem uma torrente de analgésicos, de ansiolíticos e de hipnóticos... 
Dos passeios esburacados, inclinados, enraizados... dos degraus inesperados, dos olhos que abandonam os pés...
Das exigências, dos queixumes... dos espelhos que dá vontade de quebrar ou de eliminar de vez...

1.5.22

Suspenso pelo Meta / Facebook


A publicação de Uma Ideia Insensata teve como efeito uma suspensão de 48 horas, pois terei ofendido a Comunidade.
Afinal, a hipótese de que os americanos podem tirar proveito da invasão da Ucrânia pela Rússia sempre é 'insensata'.
Quanto à liberdade de expressão, é melhor não sair dos carris. 
Entretanto, vou seguir o exemplo dos pombos...

30.4.22

Uma ideia insensata

Para terminar este trágico mês de abril, em que alguns continuam a celebrar o passado enquanto que outros são chacinados ou obrigados a fugir do chão que os viu nascer ou os acolheu, vou anotar aqui uma ideia insensata: os americanos, mais do que a vitória da Ucrânia, desejam a derrota da Rússia.
Lá no fundo, os americanos sabem que tal vitória ucraniana só será possível com o envolvimrento direto da Europa, o que significa que, no melhor dos cenários, os povos da Europa também sairão muito mais pobres...
Esta ideia pode parecer insensata, mas surgiu-me no momento em que li que o Pentágono está a pressionar o governo português para que envie para Kiev um conjunto de blindados de lagartas do modelo M113A, de fabrico norte-americano, que se encontram no Campo Militar de Santa Margarida há quase 30 anos - veículos já em vias de obsolescência tecnológica. https://sol.sapo.pt/artigo/769878/eua-pressionam-portugal-a-ceder-blindados-a-ucr-nia

Enviar equipamento obsoleto não compromete os americanos, mas dá um sinal errado aos russos. E como bem sabemos, esta guerra não é só contra a Ucrânia, serve os interesses americanos e chineses, por mais que eles digam o contrário.

25.4.22

O pavor de Putin

Bem sei que no dia 25 de Abril recuamos no tempo e por lá ficamos umas horas, perdendo-nos em citações, umas mais poéticas outras mais grotescas... e poucos levam a mal.

No entanto, hoje, as minhas citações obedecem a uma preocupção distinta. Vou citar Elias Canetti, com uma singela recomendação. Procurem ler atentamente o ensaio PODER E SOBREVIVÊNCIA, publicado em 1962:

  • Entre os fenómenos mais sinistros da história intelectual humana encontra-se a fuga ao concreto.
  • O autêntico intuito do poder é tão grotesco como incrível: ele quer ser o único. Quer sobreviver a todos, para que nenhum lhe sobreviva. É a todo o custo que ele é quer escapar à morte e, portanto, não deve haver ninguém, mesmo ninguém, que lhe possa causar a morte. Enquanto houver pessoas, sejam elas quais forem, ele nunca se sentirá seguro.