13.8.22

A intromissão

«Todo o ato de perguntar é uma intromissão.» No entanto, «antes de lhe ser feita a pergunta, uma pessoa, muitas vezes, não sabe o que pensa.» Elias Canetti, Massa e Poder, pp. 345 a 351, ed. cavalo de ferro

Ultimamente, tenho evitado fazer perguntas por mais que me apetecesse ouvir as respostas,  porque isso poderia deixar o interlocutor sem saber o que responder...
Por um lado, temo que à falta de perguntas corresponda um alargamento da ignorância e, por outro lado, receio que, afinal, a minha curiosidade não passe de puro abuso.
Fiquemos por aqui, deixemos as perguntas à matreirice de quem, antecipadamente, se preparou para o ofício da dissimulação.

9.8.22

Atos inacabados


Sinto que é meu dever andar devagar, no entanto todos me convidam a andar mais depressa, não por palavras mas por atos inacabados...
Atos inacabados são aqueles que solicitam a nossa a atenção para que os corrijamos, os completemos ou, por vezes, para que os realizemos na sua totalidade.
Pode parecer absurdo, mas o problema resulta mais do meu excesso do que da falta de zelo alheia. 
Afinal, nada se perderia se reduzisse a minha ação a assegurar algum sossego.
A verdade é que por este caminho, mais não sou do que uma assombração num mundo de marionetas.

7.8.22

Estar vigilante


Por muito voluntaristas e obstinados que sejamos, pouco podemos fazer... Há sempre uma força que se opõe à nossa vontade e que impõe um rumo advinhado ou, mesmo, inesperado...
Lutar é certamente uma obrigação, mas, frequentemente, o combate é contraprudecente, porque esgota todos os recursos e energias.
Dir-se-ia que o estado de vigília é o que mais se adequa a certas circunstâncias da vida, na expectativa de que o Tejo não seque de vez.
Entretanto, o mar continua por mais algum tempo.

2.8.22

O Jorge Saraiva


Conheci-o ali perto já lá vão mais de 20 anos...
Tinha fortes convições, que sabia defender, mesmo quando a insistência em certos comportamentos lhe podia ser nefasta. Mais do que a vidinha, punha em primeiro lugar a aposta numa sociedade liberta de predadores... Acreditou quase sempre que seria possível construí-la e, para tal, não se poupou a esforços como professor e como agitador de consciências.
O Jorge era amigo do seu amigo, mesmo que, por vezes, a relação se tornasse tensa. Os seus amigos sabem-no bem... Agora partiu, não importando as circunstâncias. 
Enquanto a memória resistir, continuarei a vê-lo do lado de fora do gradeamento do Liceu Camões. À espera do toque, mesmo quando ele deixou de se fazer ouvir.

31.7.22

Parecia algodão

 

Como materializar a ideia quando se foge dela? 
Ainda cedo, num banco de jardim, o sentimento de vazio instala-se. A pedinte conhece todos os transeuntos e dá bons conselhos a desconhecidos beberrões,  de copo de cerveja na mão, que desafiam os presunçosos portelenses... Bem regados, procuram a briga que evito com um monossílabo imperceptível...
Continuo a ler 'A Vida e o Sonho', de Maria Judite de Carvalho, numa edição bilingue, que só atrasa a leitura... 
Falta-me  a coragem do sonhador Adérito que prefere  a rotina à mudança, talvez porque lá, no fundo, não passa de um cobarde incapaz de aproveitar as oportunidades que a vida lhe oferecia ...
«Er fühlte sich alt, fürchterlich alt und müde, sehr, sehr müde. Auch sehr traurig.»
Parecia algodão, mas os sonhos parecem não querer nada com a vida. Ou serão as circunstâncias?
Como materializar a ideia quando se foge dela? 

27.7.22

Sem recuo


Por tudo e por nada, somos convidados a avaliar a nossa última experiência... O problema é que frequentemente não sabemos de que entidade se trata.
Se por algum motivo apanhamos a conversa a meio, já só ouvimos classifique de 1 a 10... e se perguntamos 'o quê', a máquina limita-se a enunciar, verbo inadequado à situação,  a repetir 'classifique de 1 a 10...
Infelizmente, a voz humana deixou de estar presente na comunicação ou surge muito tardiamente...
E é assim quando necessitamos das instituições, ou melhor, das entidades. 
A automatização desumaniza, isola.

23.7.22

Do que observo


Apesar de tudo o que se questiona, a realidade é bem mais complexa do que desejamos e, sobretudo, é dinâmica. o que, em muitos casos, traz desorientação e frustração.
Do que observo, sinto que o processo é cumulativo e irreversível para quem não consegue lidar com a mudança social e tecnológica.
Chegámos a um ponto em que a solidão é inultrapassável, porque quando se fica para trás não há palavra que nos demova. 
As promessas vão sendo substituídas e, finalmente, esquecidas...
A palavra já não engrena. Secou.