14.5.06

E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

Sérgio Tréfaut, nascido em 1965, no Brasil, filho de pai português e de mãe francesa, realizou em Portugal um documentário que deveria ser objecto de estudo nas escolas portuguesas - LISBOETAS, 2004.
Este documentário mostra a vaga de imigrantes que chega a Lisboa e arredores em finais do séc. XX e no início do século XXI. Oriundos da Rússia, da Ucrânia, da Moldávia, da Roménia, do Brasil, de Angola, da Nigéria..., estes imigrantes rapidamente descobrem - felizmente o realizador dá-lhes voz! - a pequenez do país: construtores civis sem escrupúlos, serviços de imigração, onde a hipocrisia e a burocracia rivalizam; olhares xenófobos e concupiscentes; um sistema educativo completamente desfasado da vida activa...
Só a entreajuda lhes permite suprir as múltiplas dificuldades resultantes da clandestinidade a que se vêem forçados, apesar do país necessitar deles como de pão para a boca...
Antigo país de escravistas, que gerou no século XX mais de um milhão de incultos e pobres emigrantes, Portugal trata, agora, estes imigrantes (claramente mais instruídos) como os novos escravos de que perdera o rasto, primeiro no Brasil e, posteriormente em África.
O documentário LISBOETAS mostra-nos uma Lisboa desconhecida que acabará por emergir a nossos olhos da pior maneira, caso não se aposte numa política de integração. A não ser que eles, simplesmente, partam cansados da nossa arrogância, do nosso chauvinismo... os que ficarem acabarão por soçobrar em fundamentalismos espúrios, em delinquências noctívagas, caindo nós e eles naquele abismo de peçonha a que Sá de Miranda se referia já no séc XVI:
«Entrou, dias há, peçonha / clara pelos nossos portos,/sem que remédio se ponha:/ uns dormentes, outros mortos,/ alguém pelas ruas sonha./
Não sei se Sérgio Tréfaut conhece Sá de Miranda, sei, no entanto, que este caústico documentário me faz sonhar que, apesar de tudo, e com o contributo destes novos imigrantes, poderemos modificar esta enfadonha e miseranda realidade. E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

13.5.06

Para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura...

«Toda a experiência humana é susceptível de ser transfigurada, vivida num outro plano trans-humano.» Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, A Essência das Religiões
Se Mircea Eliade se visse confrontado com um grupo de jovens com um difuso conhecimento da essência da religião e como uma visão exacerbada (ou inibida) da sexualidade, como é que abordaria o modo como, por exemplo, José Saramago descreve o misticismo das múltiplas monjas que passaram (e passam) a vida enclausuradas num qualquer convento?
Tendo como axioma que as monjas o são (ou o foram) por imposição exterior à sua vontade, Saramago não se furta, ao descrever a esperada relação com o sagrado (no caso, Jesus Cristo), de as apresentar como protagonistas de uma sexualidade grotesca disfarçada de misticismo:
« atormentam-na diabos, sacudindo-lhe a cama, e lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando, aquela porque gozou...» Memorial do Convento.
E este tema não é fortuito na obra, se lembrarmos a natureza dissoluta de D. João V, a presença cupidinosa e sádica do infante D. Francisco, o falso angelismo de D. Maria Ana, o profusamente repetido sado-masoquismo das procissões, das touradas e dos autos-de-fé. Tudo parece reduzir-se a uma sexualidade que, proibida pela Igreja inquisitorial, alastra das alcovas reais aos conventos, invade as ruas para confluir num mar de decadência irreversível.
Num país de trevas, sem futuro, há, porém, uma esperança abençoada por um iluminado e sonhador - O Padre Bartolomeu Lourenço: Blimunda (de Jesus!) e Baltasar (Mateus?) - «este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele Memorial do Convento
Compreende-se que o autor queira ajustar contas com padrões culturais que são objectivamente responsáveis pela humana predação, mas, no contexto actual, que efeitos poderá ter no jovem leitor a abordagem de uma obra como Memorial do Convento? E se os jovens seguirem o caminho da esperança pregado por José Saramago?
À primeira vista, Baltasar e Blimunda (sem esquecer o Padre Voador) parecem protagonistas de uma experiência humana transfigurada. Mas sê-lo-ão, de facto?
Terá algum dia, o ME reflectido sobre os textos que moldam a educação em Portugal? A resposta está para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura.

11.5.06

Esta enfadonha realidade

«O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias.» karl Popper, Sobre a Liberdade, 1958
Popper não conhecia esta nossa enfadonha realidade em que qualquer pessoa, independentemente da idade ou do saber, se pronuncia com o maior à-vontade sobre qualquer obra, sobre qualquer acção, sobre qualquer projecto.
Por exemplo, é comum dizer:«Saramago não sabe escrever.» «Quem lhe atribuiu o Nobel não sabe nada de Literatura». Ao mesmo tempo que não se percebe que qualquer texto narrativo, descritivo, opinativo... obedece a uma regra simples: introdução; desenvolvimento e conclusão. Pelo menos três parágrafos! E não consta que Saramago infrinja este princípio.
Se os parágrafos são longos, se as vírgulas têm o valor de travessões, se a maíuscula pode introduzir o discurso directo é porque as situações são apresentadas recorrendo a uma técnica cinematográfica, a única, até ao momento, capaz de relatar a simultaneidade das situações, acções, das intervenções verbais dos protagonistas e mesmo do vedetismo interventivo, isto é, dos empastelamentos que voluntaria ou involuntariamente caracterizam a acção verbal e gestual humana.
É essa representação da complexidade que atravessa o discurso -e, conseguentemente, a gramática - de Saramago. Por mais que se explique que a gramática é um conjunto de normas que regem uma língua e que numa língua se podem inscrever múltiplas sub-línguas que com ela interagem e, que, inevitavelmente, numa gramática da língua (portuguesa, por exemplo), se podem inscrever outras gramáticas, geradas por todos aqueles que alicerçam a instituição Literatura, parece que a linearidade mental nos impede de compreender a complexidade do mundo que habitamos.
E por isso o caminho que continuamos a percorrer é o da superficialidade, do reducionismo, do chiste e, de per si, da arrogância inquisitorial que nos permite aniquilar o talento em nome de uma qualquer verdade.

9.5.06

Entre a espada e a rosa...

Hoje quase que poderia dizer que foi um dia sem história, não fosse ter-me cruzado com a estátua de D. Afonso Henriques já depois de me ter deslocado ao Hospital Rainha Santa Isabel, em Torres Novas.
Esta falta de consideração pelo regimento régio, outrora severamente punida - pois quem se atreveria a colocar Isabel antes de Afonso, mesmo que santa? - deve ter sido responsável pela informação prestada pelo serviço de atendimento de que o Senhor Doutor C., «por motivos imprevistos», deixara de dar consulta de neurologia no referido hospital. E que, certamente, os CTT se teriam atrasado a dar-me a infausta notícia.
Perante a exclamação da funcionária, fiquei um pouco surpreendido: - «Já ontem não apareceu qualquer doente!» Surpreendido? Só um pouco! pois a data da consulta anterior também fora alterada. E durante a consulta, o doutor fizera-me um cerrado questionário sobre os efeitos psicossomáticos de uma punção lombar.
De facto, devo sofrer de algum distúrbio neurológico: Como é que é possível que eu não tenha ordenado os acontecimentos e tirado a conclusão adequada?
Os Serviços hospitalares no dia 17 de Abril terão redigido a nota que explicava que o Senhor Doutor C dispensava hereticamente as rosas da rainha santa; de imediato, os CTT prontificaram-se a entregar-me os espinhos; os outros doentes avisados já não compareceram na 2ª feira, dia 8 de Maio (mês dos maios e das maias!), e eu, ali, com aquela senhora numa cadeira de rodas!, atrevia-me a comparecer, à hora marcada, para uma consulta que todos sabiam, menos eu, que fora definitivamente adiada.
Por um segundo, vi erguer-se a espada de D. Afonso Henriques naquele horto de rosas...

8.5.06

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente...

(Se os predicados parecerem insólitos, asseguro que isso é fruto do pouco uso! Absolvidos os predicados, regressemos às coisas difíceis.)

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente e, por isso, não se lhe pode exigir que cultive a memória. Mas nem mesmo assim me conformo que não haja uma efectiva aposta no estudo da História dos séculos XIX e XX.

Perante o quadro de Francisco Goya que retrata os desmandos dos exércitos napoleónicos, os alunos do ensino secundário empastelam russos, pides, judeus, nazis, jesuítas, familiares-do-santo-ofício e até cenas de filmes belicistas a-não-ver.

Felizmente, são quase todos contra a guerra, embora desconfiem que sem ela o mundo não avançaria.

E por isso, numa primeira oportunidade, estão prontos a mudar de campo, pois como bem sabemos todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha.

7.5.06

A máscara que chora...

Finalmente pude ver a exposição "Frida Kahlo 1907 - 1954" no Centro Cultural de Belém. E digo, finalmente, porque procurei a exposição ainda antes da sua inauguração, motivado pelo cartaz que reproduzia o quadro "Coluna Partida", de 1944. Ignoradas as circunstâncias da sua produção, este quadro parece emergir de um delírio de Dalí. Mas não, ele enraíza-se num autodomínio ímpar perante as contrariedades da vida, sobretudo, as constantes limitações de ordem física. Expõe a altivez da consciência perante a fragilidade do corpo, de tal modo que o auto-retrato se transforma num meio capaz de capturar aquela parte que de si parece afastar-se, deixando-nos ver a tortura da imobilização, o cansaço e a dor... a dor de si.
E quando deixa de olhar para essa dor de si, vê, em si e naqueles que lhe estão próximos, formas e cores que nos deixam antever um México nativo, onde a vida e a morte se encontram genuinamente ligadas. Onde o culto dos mortos é uma forma de vida, bem diferente da encenação espanhola da morte, inventada pela Contra Reforma.
Na arte de Frida, a máscara não esconde, não finge... a máscara que colocamos quando já não há nada a ocultar, a máscara chora.

6.5.06

1961, a preto e branco

A oportunidade de ver, na Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de 1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.
Em 1961, começava a frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr. Oliveira Salazar.
Muito longe dali, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros. Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.
Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início à guerra do Ultramar como resposta ...
Só muito mais tarde, compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária -fora um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.
E também muito mais tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento do Norte...
Em 1961, quando o luto (o negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também, percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...
Mas será que ainda vamos a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!
PS: Este filme não deve ser confundido com o do realizador Scolari!