18.5.06

Gigantes ou anões...

O eterno problema da fronteira
Levámos três séculos a construir a fronteira continental.
Levámos outro século a expandi-la.
Ficámos três séculos e meio a defender a nova fronteira. A cada investida do castelhano, do muçulmano, do otomano, do holandês, do francês, do belga, do alemão, do italiano, do inglês, do russo, do chinês, do americano, do indonésio, retraiu-se a fronteira...
Sacrificámos fazenda, homens, mulheres e crianças e, em nome da divina fronteira ou da fronteira divina, chacinámos outros homens, outras mulheres, outras crianças...
E regressámos ao torrão natal como se nada se tivesse passado... a nossa nova fronteira fora sacrificada em nome da emancipação dos povos, do direito que todos os povos reivindicam de ter o seu torrão original.
Hoje, para deixar que o tempo continue a fluir, fazemos parte da nova fronteira europeia... deixámos de ser o rosto que fitava o atlântico e passámos a ser uma cloaca transfronteiriça, à nossa maneira, temperada de lusofonia...
Defendemos acerrimamente o castelo sem castelão, a paróquia sem pároco, o hospital sem médico nem utente, a câmara sem munícipes, a escola sem estudantes, a caserna sem soldados... e estamos dispostos a não arredar pé em nome da nossa última fronteira... afinal, aquela que nunca conseguimos fixar.
E porquê? Porque nos falta o sentido das proporções - Gigantes ou anões...

17.5.06

- Pode ser a sombra de um fulgor!

Palavras afogueadas regressam quebradas de estupor Múrmuras ecoam prantos de dor Cansadas as palavras anoitecem à espera de um rumor - Pode ser a sombra de um fulgor!

15.5.06

Estaremos, de facto, a digitar?

Às nove horas, em Miraflores: a classe média, mansamente sentada, espera o momento redentor da análise... e eu, com a cabeça num tinteiro HP21, procuro-o numa rua, onde o lojista há muito desistiu de o vender.
Às 10 horas, no Colombo: encontro o desejado tinteiro, mas fico preso na caixa... uma expedita funcionária telefonava para um lugar aonde outro expedito funcionário deveria ter chegado.
Às 12:30, nos CTT de Torres Novas: 22 outras pessoas esperam pacientemente à minha frente, para pagar as contas da água, da luz e, sobretudo, para receber a pensão. Lentamente, olham para os relógios e para os rostos sombrios dos vizinhos, na expectativa de que falte alguém.
Às 13:30, nos CTT de Torres Novas: sou atendido.
Um acto simples: Para reencaminhar o correio, bastou preencher um impresso, no balcão ao lado, apresentar uma certidão de óbito de um obstinado mensageiro, mostrar uma procuração de..., ouvir a funcionária perguntar se não havia, de facto, alguém que passasse a levantar o correio porque «só os próprios é que poderiam reencaminhar o correio», refutar os argumentos aduzidos; fotocopiar numa secção interior os documentos carreados para um hipotético processo; digitar os dados que eu acabara de registar manualmente no impresso, passar um cheque de 67,20 € - nos CTT não há multibanco!-, esperar que simpaticamente a funcionária me devolvesse uma cópia do meu impresso e digitasse demoradamente um recibo... Sorrir de agradecimento e sair às 14:15 da estação dos CTT de Torres Novas...
Às 15:00, no Lar: Uns parecem não saber o que estão ali a fazer; outros não sabem explicar aquele braço inchado, aqueles dedos pisados... aconteceu de manhã, talvez às 9:00, num turno de que já não há memória... fico ali até às 16:00, à procura de palavras que me permitam uma aproximação a um tempo «felizmente bem diferente deste, onde não havia esta degradação». Infelizmente, não as encontro e saio, mais uma vez, a pensar que, ali, as palavras estão a mais...
Às 19:00, em casa: o tinteiro HP21 lembra-me que me falta reservar lugar em 2 companhias aérias que permitam a S. viajar entre o Porto e Budapeste, fazendo escala em 2 aeroportos londrinos, em cerca de 12 horas.
Em menos de 30 minutos, as reservas estavam feitas, digitando apenas...

14.5.06

E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

Sérgio Tréfaut, nascido em 1965, no Brasil, filho de pai português e de mãe francesa, realizou em Portugal um documentário que deveria ser objecto de estudo nas escolas portuguesas - LISBOETAS, 2004.
Este documentário mostra a vaga de imigrantes que chega a Lisboa e arredores em finais do séc. XX e no início do século XXI. Oriundos da Rússia, da Ucrânia, da Moldávia, da Roménia, do Brasil, de Angola, da Nigéria..., estes imigrantes rapidamente descobrem - felizmente o realizador dá-lhes voz! - a pequenez do país: construtores civis sem escrupúlos, serviços de imigração, onde a hipocrisia e a burocracia rivalizam; olhares xenófobos e concupiscentes; um sistema educativo completamente desfasado da vida activa...
Só a entreajuda lhes permite suprir as múltiplas dificuldades resultantes da clandestinidade a que se vêem forçados, apesar do país necessitar deles como de pão para a boca...
Antigo país de escravistas, que gerou no século XX mais de um milhão de incultos e pobres emigrantes, Portugal trata, agora, estes imigrantes (claramente mais instruídos) como os novos escravos de que perdera o rasto, primeiro no Brasil e, posteriormente em África.
O documentário LISBOETAS mostra-nos uma Lisboa desconhecida que acabará por emergir a nossos olhos da pior maneira, caso não se aposte numa política de integração. A não ser que eles, simplesmente, partam cansados da nossa arrogância, do nosso chauvinismo... os que ficarem acabarão por soçobrar em fundamentalismos espúrios, em delinquências noctívagas, caindo nós e eles naquele abismo de peçonha a que Sá de Miranda se referia já no séc XVI:
«Entrou, dias há, peçonha / clara pelos nossos portos,/sem que remédio se ponha:/ uns dormentes, outros mortos,/ alguém pelas ruas sonha./
Não sei se Sérgio Tréfaut conhece Sá de Miranda, sei, no entanto, que este caústico documentário me faz sonhar que, apesar de tudo, e com o contributo destes novos imigrantes, poderemos modificar esta enfadonha e miseranda realidade. E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

13.5.06

Para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura...

«Toda a experiência humana é susceptível de ser transfigurada, vivida num outro plano trans-humano.» Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, A Essência das Religiões
Se Mircea Eliade se visse confrontado com um grupo de jovens com um difuso conhecimento da essência da religião e como uma visão exacerbada (ou inibida) da sexualidade, como é que abordaria o modo como, por exemplo, José Saramago descreve o misticismo das múltiplas monjas que passaram (e passam) a vida enclausuradas num qualquer convento?
Tendo como axioma que as monjas o são (ou o foram) por imposição exterior à sua vontade, Saramago não se furta, ao descrever a esperada relação com o sagrado (no caso, Jesus Cristo), de as apresentar como protagonistas de uma sexualidade grotesca disfarçada de misticismo:
« atormentam-na diabos, sacudindo-lhe a cama, e lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando, aquela porque gozou...» Memorial do Convento.
E este tema não é fortuito na obra, se lembrarmos a natureza dissoluta de D. João V, a presença cupidinosa e sádica do infante D. Francisco, o falso angelismo de D. Maria Ana, o profusamente repetido sado-masoquismo das procissões, das touradas e dos autos-de-fé. Tudo parece reduzir-se a uma sexualidade que, proibida pela Igreja inquisitorial, alastra das alcovas reais aos conventos, invade as ruas para confluir num mar de decadência irreversível.
Num país de trevas, sem futuro, há, porém, uma esperança abençoada por um iluminado e sonhador - O Padre Bartolomeu Lourenço: Blimunda (de Jesus!) e Baltasar (Mateus?) - «este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele Memorial do Convento
Compreende-se que o autor queira ajustar contas com padrões culturais que são objectivamente responsáveis pela humana predação, mas, no contexto actual, que efeitos poderá ter no jovem leitor a abordagem de uma obra como Memorial do Convento? E se os jovens seguirem o caminho da esperança pregado por José Saramago?
À primeira vista, Baltasar e Blimunda (sem esquecer o Padre Voador) parecem protagonistas de uma experiência humana transfigurada. Mas sê-lo-ão, de facto?
Terá algum dia, o ME reflectido sobre os textos que moldam a educação em Portugal? A resposta está para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura.

11.5.06

Esta enfadonha realidade

«O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias.» karl Popper, Sobre a Liberdade, 1958
Popper não conhecia esta nossa enfadonha realidade em que qualquer pessoa, independentemente da idade ou do saber, se pronuncia com o maior à-vontade sobre qualquer obra, sobre qualquer acção, sobre qualquer projecto.
Por exemplo, é comum dizer:«Saramago não sabe escrever.» «Quem lhe atribuiu o Nobel não sabe nada de Literatura». Ao mesmo tempo que não se percebe que qualquer texto narrativo, descritivo, opinativo... obedece a uma regra simples: introdução; desenvolvimento e conclusão. Pelo menos três parágrafos! E não consta que Saramago infrinja este princípio.
Se os parágrafos são longos, se as vírgulas têm o valor de travessões, se a maíuscula pode introduzir o discurso directo é porque as situações são apresentadas recorrendo a uma técnica cinematográfica, a única, até ao momento, capaz de relatar a simultaneidade das situações, acções, das intervenções verbais dos protagonistas e mesmo do vedetismo interventivo, isto é, dos empastelamentos que voluntaria ou involuntariamente caracterizam a acção verbal e gestual humana.
É essa representação da complexidade que atravessa o discurso -e, conseguentemente, a gramática - de Saramago. Por mais que se explique que a gramática é um conjunto de normas que regem uma língua e que numa língua se podem inscrever múltiplas sub-línguas que com ela interagem e, que, inevitavelmente, numa gramática da língua (portuguesa, por exemplo), se podem inscrever outras gramáticas, geradas por todos aqueles que alicerçam a instituição Literatura, parece que a linearidade mental nos impede de compreender a complexidade do mundo que habitamos.
E por isso o caminho que continuamos a percorrer é o da superficialidade, do reducionismo, do chiste e, de per si, da arrogância inquisitorial que nos permite aniquilar o talento em nome de uma qualquer verdade.

9.5.06

Entre a espada e a rosa...

Hoje quase que poderia dizer que foi um dia sem história, não fosse ter-me cruzado com a estátua de D. Afonso Henriques já depois de me ter deslocado ao Hospital Rainha Santa Isabel, em Torres Novas.
Esta falta de consideração pelo regimento régio, outrora severamente punida - pois quem se atreveria a colocar Isabel antes de Afonso, mesmo que santa? - deve ter sido responsável pela informação prestada pelo serviço de atendimento de que o Senhor Doutor C., «por motivos imprevistos», deixara de dar consulta de neurologia no referido hospital. E que, certamente, os CTT se teriam atrasado a dar-me a infausta notícia.
Perante a exclamação da funcionária, fiquei um pouco surpreendido: - «Já ontem não apareceu qualquer doente!» Surpreendido? Só um pouco! pois a data da consulta anterior também fora alterada. E durante a consulta, o doutor fizera-me um cerrado questionário sobre os efeitos psicossomáticos de uma punção lombar.
De facto, devo sofrer de algum distúrbio neurológico: Como é que é possível que eu não tenha ordenado os acontecimentos e tirado a conclusão adequada?
Os Serviços hospitalares no dia 17 de Abril terão redigido a nota que explicava que o Senhor Doutor C dispensava hereticamente as rosas da rainha santa; de imediato, os CTT prontificaram-se a entregar-me os espinhos; os outros doentes avisados já não compareceram na 2ª feira, dia 8 de Maio (mês dos maios e das maias!), e eu, ali, com aquela senhora numa cadeira de rodas!, atrevia-me a comparecer, à hora marcada, para uma consulta que todos sabiam, menos eu, que fora definitivamente adiada.
Por um segundo, vi erguer-se a espada de D. Afonso Henriques naquele horto de rosas...