24.3.17

A condição humana

Ainda não havia tempo, quando duas criaturas bíblicas, que residiam num lugar paradisíaco, desafiaram Deus, sendo desterradas, como o próprio termo sugere, para a Terra, e condenadas a trabalhar, a sofrer e a multiplicar-se.
Foi essa desobediência que gerou a condição humana: as duas criaturas, ao perderam a imortalidade, tornaram-se efémeras, fracas, vulneráveis e, sobretudo, conscientes da sua pequenez.
No entanto, a mudança de estado não lhes destruiu o sentido do desafio. Através da multiplicação e do trabalho, acreditaram ser-lhes possível regressar à casa original, embora o percurso lhes pudesse exigir sacrifícios infindáveis e, em particular, a morte.
Mas nem a morte inexorável os levou ao desespero absoluto, isto é, à renúncia. Pelo contrário, definiram rumos precisos, cuja meta derradeira é a imortalidade, aonde se poderá chegar pela via do heroísmo (herói clássico) ou pela via da santidade (santo)...
E são estas as rotas escolhidas pelo homem para superar a condição humana. Todavia, "incapaz de assistir num só terreno", o homem gasta boa parte do seu tempo a disputar qual das rotas é a verdadeira, de tal modo que a imortalidade se tornou alcançável pelos caminhos do ódio e da destruição...
Talvez seja por isso que os jovens preferem viver num universo paralelo - o paraíso lúdico. Só que lá não deixam de procurar a imortalidade, ao quererem a todo custo superar os jogos com que o Incognito Deo lhes junca as vidas...

Há, contudo, riscos: neste desterro, a multiplicação já é possível sem um verdadeiro empenho dos filhos e das filhas das duas misteriosas criaturas bíblicas, o trabalho humano pode perfeitamente ser realizado por todo o tipo de máquinas... apenas sobra a dor (humana) materializada numa depressão sem fim.

23.3.17

Funcionário público não é filho de Deus!

Funcionário público não é filho de Deus!
Quem tem 48 anos de descontos pode reformar-se sem penalização.

Governo elimina o factor de sustentabilidade para todas as reformas antecipadas.
O novo modelo só se aplica a quem desconta para a Segurança Social. Os funcionários públicos manterão o regime atual.

O melhor é não pensar mais no assunto! Esclarecido para todos os efeitos!

22.3.17

A montante e a jusante do terror

" - O que importa é o que cada um tem na cabeça!" - resposta de um jovem revoltado.

Ao contrário do que se apregoa, o terror não tem origem nem na ideologia nem na doutrina nem na cultura nem na moral. O terror tem origem na necessidade de cada um afirmar a sua presença no mundo de que se sente excluído...
Ao contrário do que se pensa, a escola não inclui. A escola afunila. 
À saída, a escola abre para a terra de nenhures..
E é nessa terra de nenhures que o desespero humano se transforma em horror.
(...)
Entretanto, os comentadores insistem em explicar o terror, atribuindo-o à ideologia/doutrina islâmica, a maquinações satânicas cujo o único objetivo é estender o medo, gerando choques ideológicos, religiosos e culturais propiciadores de eugénicas guerras.  

21.3.17

Os novos cafres

Segundo a edição online do Semanário Económico, a presidência da República portuguesa considera que “é inacreditável e inaceitável” que Vítor Constâncio, atual vice-presidente do BCE, aceite a aplicação de sanções ao país, questionando “o que é que Vítor Constâncio está lá a fazer” .

Há (ou deveria haver) um verbo que dá conta do que acontece a um português quando se muda para os trópicos ou, em alternativa, para instituições de alto gabarito - o português cafrealiza-se.
Outrora, portugueses houve que se deixaram voluntariamente assimilar pelos cafres... o que, em certos casos, me pareceu de bom gosto tal era a selvajaria que florescia no reino...
Hoje, apesar de continuarmos a viver acima das nossas possibilidades - há quem diga que o excesso sempre foi do Estado e das empresas! -, não faltam portugueses que, colocados estrategicamente em altos cargos internacionais, não desprezam a oportunidade de passar a viver de acordo com a bitola dos tempos modernos, esquecendo, de vez, a proveniência.

20.3.17

Aliteração interrompida

A temperatura baixou. As nuvens avolumam-se. A chuva parece que chega amanhã.

Sobe a tensão e a irritação. Turva-se o olhar, até parece que um madeiro se atravessa... Primeiro, avança pela esquerda e, depois, pela direita... O rosto enrubesce e, cambaleante, avança rua acima ou será rua abaixo?
A própria voz emudece e a mão tem instantes em que desobedece... e quando tal acontece já a Primavera é sem regresso...

A gata subiu o teclado, indiferente às flores que vão começar a murchar, e seguiu o seu caminho...

19.3.17

O texto

O texto. Diz. O quê?
Afinal, o texto não diz. 
Para que dissesse, era preciso que os olhos pousassem sobre ele. Descortinassem os parágrafos. 
Cada parágrafo, constituído por frases simples ou complexas. Enunciados...
 ...e que as palavras tivessem um significado preciso e, por vezes, ambíguo, mas não aleatório...
Era preciso que os olhos descortinassem a ordem das palavras e vislumbrassem a disciplina a que são submetidas...
Era preciso que as palavras dissessem o mundo, não o nosso, mas o de quem as ordenou...era preciso que as respeitássemos como representação, literal ou simbólica, ou, apenas, prenúncio...Era necessário que não as flexibilizássemos em demasia, que não as denigrissemos nem as branqueássemos
... nem as ignorássemos
Talvez, o texto pudesse dizer. O quê?
- Logo se veria!

18.3.17

A rendição portuguesa

«Cerca de sete meses antes do fim da guerra, em 30 de Setembro de 1973, os efectivos militares em Angola contavam com 65 992 homens (...) Em 1961, eram 6500 militares...» Rui de Azevedo Teixeira, A Guerra de Angola 1961/1974, Quidnovi.

No século XVI, os padrões já não garantiam a presença portuguesa no mundo. E porquê? Por causa do deficit demográfico... Entretanto, foi-se gerando a ilusão do Império na metrópole, alimentada pelos novos métodos de colonização, assentes na ideia da superioridade moral do cristianismo europeu - uma colonização, no caso português, mitigada, porque, devido ao deficit demográfico, se viu forçada à miscigenação...
            e depois vieram as guerras de prova de ocupação, decorrentes da Conferência de Berlim, e, sobretudo, 'a guerra colonial' como prova de vida do Estado Novo...
Se no terreno, a guerra parecia poder continuar enquanto a Guerra Fria se mantivesse ativa, a verdade é que o esforço de guerra se tornara insuportável... de tal modo que a rendição portuguesa se precipitou.
Nos últimos anos, dilacerados por dentro, insistimos na nossa superioridade moral, por exemplo, em relação a Angola, incapazes de julgar a peste que tudo vem dizimando.