20.6.10

Os corvos

«Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.» José Saramago, As Intermitências da Morte

Passei o dia longe de Lisboa, entre troncos e raízes, à beira-rio. Nas margens, os eucaliptos esventram o solo à procura da água que os faz crescer escandalosamente. Por perto, os jarros resplandecem, indiferentes à opulência do plantio vizinho. Do outro lado do rio, estendem-se vastos e viçosos campos de arroz, de milho, de batata e de tomate… Dos pinhais sopram as melodias dos melros e dos verdelhões; no rio grasna o pato; o crocitar dos corvos obriga-me a procurar-lhe o rasto…
E o negro rasto, que parece ser de dor, é fome de presa. Pouco importa o que aprendemos. No fim, de nada nos serve a argúcia… Só os corvos, inquietos, sobrevoam à espera que o público se retire.
/MCG

19.6.10

Formigas…


Formigas, caminhamos sem imaginar que podemos ser calcadas. O risco espreita-nos a cada instante, mas esse é o nosso destino. Tudo o resto é soberba e vaidade!

18.6.10

Gavetos e não só…

Haverá uma arquitectura de gaveto? E porquê “ de gaveto” e não “ de canto” ou “ de esquina”? Ou simplesmente perante a necessidade de ocupar as esquinas, o arquitecto procura encontrar a solução que  melhor se acomode a cada caso. Seja como for, a simples existência de uma esquina condiciona a solução, o que, no fundo, significa que devemos evitar que nos acantonem, a não ser que desejemos que o Arquitecto determine o nosso destino…
Entretanto, desconheço a origem etimológica de “gaveto”. Na sombra, há quem pense que este termo está relacionado com “gaveta”, que, de origem latina (gavata, gabata) terá chegado a este canto da Europa através dos cruzados provençais que, ao passarem, meteram os indígenas na gaveta e lhes ocuparam o lugar. O que me leva a pensar que quer se trate de arrumar na “gaveta” ou no “gaveto”, o gesto pressupõe sempre uma certa violência, uma certa dor ou, em alternativa, alguma dose de predação.
Em síntese, não sei se algum arquitecto de esquina já pensou nesta questão nem se vale a pena examiná-la. No que me diz respeito, os gavetos sempre me despertaram um complexo de inferioridade… e se continuo, ainda acabo por encontrar o trauma que me leva a pensar estas tolices…

16.6.10

Artistas, quase, anónimos…







Quando passamos, o que é que vemos? Passemos e suspendamos o passo… Artistas, quase, anónimos criaram o espaço que atravessamos. Na obra respira a vida, e nós passamos, sem alma…, ávidos de um porto nocturno, sem, de verdade, percorrermos o caminho…

14.6.10

Sonha-me (Ramos Rosa)

Sonha-me
no ouvido do espaço
mesmo se o que separa
me apaga

Se o deserto me queima as mãos
se estou caindo
se nunca fui real
se sou ainda o movimento da sede
talvez possas pesar
esta boca de sombra

Como se pode querer tanto
e como custa
não ter boca
para levantar a casa

Se fosse um ombro ou um aroma
a mão lisa da água
a dália de uma sombra
Ah se fosse um fruto de água
Boca será boca
Esta desamparada pétala?

António Ramos Rosa, JL 13.11.1990

Sempre que proponho a leitura de um poema, mesmo que liberta de instruções”, sinto uma rejeição tácita ou mesmo ostensiva.

No caso do poema de Ramos Rosa, não posso deixar de reflectir sobre alguns tópicos por demais evidentes:
+ a interlocução (sonha-me / talvez possas pesar / como se pode querer tanto / a interrogação final.
+ a atitude reflexiva e interrogativa do sujeito lírico.
+ a composição: declarativa; hipotética; interrogativa.
* as palavras-chave: boca /EU (desadaptado; irreal; em queda; revoltado; em demanda); casa; o outro ( ombro, aroma, mão, dália, fruto de água).
+ a transfiguração da língua por quem não pode ter boca: a respiração / a elipse / a metáfora / a metonímia / a anáfora / a interjeição / a questão de retórica / a rima solta…

12.6.10

Ponto de vista e opinião…

São os múltiplos pontos ópticos, isto é, os lugares de onde percepciono, que me configuram a consciência. Sem eles, o  meu mundo seria todo igual… Todavia, quando me ponho em marcha, as rimas tornam-se inesperadas, obrigando-me a contrastar os focos.. E daí nasce a consciência ou a má-consciência.

Por exemplo, na GEBALIS, as caixas de correio encontram-se esventradas; no contíguo bairro de lata vemos, junto à via pública, uma caixa devidamente identificada e em bom estado. Na mesma localidade, a limpeza e o lixo medem forças…; as plantas ornamentais rivalizam com as hortas; a simetria  contrasta com o desalinho…

Em consciência, estes diversos pontos ópticos dão-me que pensar, mas não chegam para formar uma opinião.

11.6.10

O Petrarquismo na lírica camoniana

Uma resposta para quem procura compreender o petrarquismo na lírica camoniana.

O petrarquismo
Uma maneira específica de encarar a relação entre a poesia e o sentimento amoroso que reivindica a correspondência entre a vivência amorosa e a poesia. Apresenta a novidade de se referir à caracterização do objecto da paixão, acentuando o facto de se tratar de um ser de carne e osso, desejável enquanto corpo, e, apenas, amado de forma exclusivamente espiritual, depois de morto.
O petrarquismo afasta-se progressivamente da angelização e da divinização da amada (do dolce stil nuovo).
Em Petrarca, misturam-se elementos contrários: aspiração à possibilidade de contemplar, em estado de pureza, a amada; e o desejo de posse física. Esta contradição provoca angústia e o despertar de uma consciência pecaminosa.
Petrarca encontra-se assim dividido entre impulsos opostos e por isso recorre a imagens e figuras de estilo capazes de descrever os efeitos da paixão em termos antitéticos e paradoxais.
Recorre a figuras de estilo como a metáfora, a antítese, o paradoxo, a hipérbole. Utiliza recorrentemente certos subgéneros poéticos como o soneto, a canção…
Em Camões, há um tempo em que imaginar não é bastante; falta-lhe a forma humana. Uma forma que chega a conduzi-lo ao desvario. Tudo «porque vos vi, minha Senhora.» Trata-se do tempo do desejo… o resto é imitação e memória. Imitação, onde cabe todo o passado das formas artísticas, que serve para apurar a pena. E memória que, apesar da morte do desejo, não deixa de ser mais simpática que «a apagada e vil tristeza» em que o poeta fenece, sob a agonia da pátria.