23.4.15

Nesta hora canina

Cães há que têm muita paciência: esperam minutos a fio que os donos desfiem as vidas que não são deles, a não ser no cavaco abjeto. Castrados.
Outros há que aceleram a trela, embora saibam que só lhes resta içar a perna e regressar à sombra dos donos. Fingidos.
Da matilha, o melhor é nada dizer, pois, genuína, não descansa enquanto não ceva a perna ao primeiro incauto que encontrar...

Hoje, ao sair de um supermercado, uma mãe comentava para a filha ao ver-me passar: Olha que cãozinho tão lindo, como ele olha embevecido para o senhor. Na verdade, o cão parecia uma bexiga de porco pronta a estourar... Mas fiquei-lhes agradecido, vá lá saber-se porquê?

Nesta hora canina, apenas lamento não conhecer nenhum cão caçador exímio em cevar coelhos...

A culpa é da palavra que acelera a trela e se enreda nela.

22.4.15

Conjetura

Antes que a pergunta se perca: - Para quê mudar a cara, se basta substituir a máscara?

No teatro grego, a cara nunca se mostrava; e mais não era do que o suporte das contingências que habitavam a esfera...

O teatro na sua origem era a expressão possível da matemática, isto é, da thike da mathema. Dito de outro modo: a matemática era a arte (thike) que dava forma ao conhecimento (mathema) do espaço e do tempo, que media e pesava a matéria...

Mais tarde, a matemática, para se soltar da esfera inicial, criou uma outra esfera já só constituída por símbolos que esperam, um dia, apagar todas as máscaras pondo, assim, termo às contingências.

PS. Dedico esta conjetura ao nosso amigo MSR que faz hoje anos, mas que não pode deixar de estar triste, lembrando que a tristeza é inseparável da alegria. Bom é saber que a dor de hoje é a expressão da alegria  de ontem... 

21.4.15

Em abril, das mil águas, nem um pingo de vergonha!

Das mil águas, abril não dá conta, dir-se-ia mês de mil nuvens esbranquiçadas... 
O povo lá segue aparvalhado, incapaz de punir quem ordena, preferindo ser carrasco de mulheres e crianças...
Uma parte ainda continua a entoar hossanas a abril, à espera que este lhe traga «a paz, o pão, habitação, saúde, educação».
Em abril, as rosas e os cravos continuam a florescer  e a outra parte do povo, a fenecer. Se, pelo menos, abril cumprisse as mil águas, talvez quem ordena fosse na enxurrada, e o povo deixasse de ser carrasco de mulheres e crianças...

No abril que corre, para além das estéreis nuvens esbranquiçadas, quem ordena já abriu as comportas da propaganda de tal modo que o povo segue aparvalhado, incapaz de punir quem ordena, preferindo ser carrasco de mulheres e crianças, sem esquecer os náufragos da terra e do mar das partes do médio oriente e de áfrica...

Quem ordena bem sabe que a culpa é dos trabalhadores, dos que não têm trabalho, dos que não têm terra!...
Como disse hoje um distinto sindicalista, a culpa é do povo que não compreende a ação dos sindicatos; a culpa é dos trabalhadores que não se sindicalizam...
Em abril, das mil águas, nem um pingo de vergonha! Só a rosa, só o cravo!

20.4.15

O desconsolo de tanto naufrago da terra

Bom seria que o sol brilhasse por dentro. Não é tanto o frio, mas o desconsolo de tanto naufrago da terra de ódio, de guerra, de discriminação, de fome... Aqui, na europa, a insensibilidade é absoluta, pois, em vez de cerrar fronteiras, bem poderia ter apostado na cooperação económica e cultural com os povos do norte de áfrica, com vantagens mútuas...
Sempre que se levantam muros, criam-se condições para que hordas famintas acabem por os derrubar. Sitiados, os europeus deixam morrer às portas os vizinhos, e um destes dias morrerão eles próprios de inação.
A europa atual não é mais do que uma quimera, refém de um eurismo que, por si só, acabará por cair às mãos de hordas famintas, internas e externas. Mais uma vez tudo se joga no mediterrâneo...  

Por fora, o sol brilha...

Por fora, o sol brilha; por dentro, chuvisca.  Nem sequer faz frio, apenas uma ansiedade de incumprimento ou de culpa infantil...
Essa velha culpa sempre presente, cristalizada no respeito pela arbitrariedade, e de que nada serve confessá-la em privado ou em público, porque a autoridade se confunde com a alteridade e esta, ao contrário do que diz o pregão, em vez de libertar, oprime.
O próprio sol brilha ou esconde-se, alheio a qualquer tipo de ansiedade. 
Por fora, o sol brilha; por dentro, fogo. E eu, apenas, cinza - o que resta da caruma...

19.4.15

Uma pedra exposta ao sol

Raramente escrevo de manhã. 
Hoje, no entanto, talvez por ser domingo e por ter avistado um estúdio móvel da RTP junto à igreja do Cristo Rei, decidi registar a minha paragem no jardim Almeida Garrett.
Escolhi a pedra exposta ao sol e sentei-me. E assim aquela pedra se tornou na ara da comunhão vital, diferente da do pão e do vinho que outrora preenchia as minhas manhãs. Era um altar intimista que não comunicava ao mundo a sua existência e que, apesar de tudo, foi perdendo o seu fulgor inicial. A narrativa de tanto repetida virou rotina e o frio foi-se entranhando nos ossos...
Há dias, alguém me perguntou se não me arrependera, talvez, hoje, entrasse porta dentro de algum doente preso ao leito... e o não solto saiu-me da boca ainda antes de pensar.
Afinal, basta-me poder escolher uma pedra exposta ao sol!
(...)
E li o DN e já esqueci quase tudo, excepto que o Papa argentino agradece aos italianos a compaixão com que nos últimos dias têm acolhido os náufragos de África que, no essencial, só procuram a clemência do sol(o) europeu.

18.4.15

José Mariano Gago, testemunho autêntico

«o Camões precisa mais que a memória duma página, coisa de nada, difícil. Nem o Camões, nem cada um de nós com ele, cabemos no tempo da escrita do espaço duma folha. Mas quando teremos o tempo necessário?»  José Mariano Gago, Liceu Camões 100 Anos 100 Testemunhos

Do meu contacto, distante, com José Mariano Gago habitam-me três palavras: fascínio, autenticidade e benevolência.
Homem benevolente, pronto a acarinhar quem o ajudou a aprender e quem, por instantes, para servir um desígnio, via nele um facilitador de soluções... A benevolência estende-se a essa ideia simpática de que todos os homens precisam de mais do que uma folha para registar  a sua existência. (Tantos são os que ontem e hoje falam elogiosamente de José Mariano Gago e que não merecem sequer referência no rodapé da vida!
Homem fascinado pelo espaço, nas suas diversas escalas, mas que sabia que o tempo lhe poderia frustrar a ambição de ir além do conhecido. E sobretudo, um homem, que tinha a noção de que só o conhecimento salvaria o ser humano de si próprio... Por amizade, José Mariano Gago confessou um dia que o Liceu Camões, que o acolhera dos 10 aos 17 anos, fora a academia matriz que, afinal, sempre procurou construir enquanto homem político ao serviço do seu país...
Homem autêntico que nunca vi colocar-se em bicos de pés, manteve-se por largos períodos na sombra, apesar da sua inteligência e compaixão...