12.1.20

Sem exemplos não há abonação

O problema da qualidade da abonação atual depende dos exemplos escolhidos e sobretudo do critério. 
Será que ainda distinguimos os bons dos maus exemplos? Será que o que é um bom exemplo para uns é mau para outros e vice.-versa?
No passado, a abonação tinha em consideração a origem e as transformações, entretanto, ocorridas. E hoje?
Com tantos vira-casacas à solta, torna-se perigoso emitir um juízo de valor quanto mais abonar quem quer que seja, a começar pelo autor destas linhas…
Valha-nos o entendimento que da abonação tem Simon Winchester: «As abonações deviam mostrar exatamente o modo como uma palavra foi empregue ao longo dos séculos, como foi sofrendo mudanças subtis de significado, de ortografia ou de pronúncia e, talvez o mais importante, como e mais exatamente quando cada palavra entrou para a língua.» in O Professor e o Louco.

10.1.20

Por uma questão de coerência

A partir de hoje, decidi renomear a Caruma,  regressando ao tempo anterior… a nós.
Não querendo confundir aqueles com quem fui gastando os dias, este blogue passa a reconhecer os nomes pelos quais fui sendo nomeado - cabeleira; cabeleira gomes; gomes…
Em diferentes lugares fui sucessivamente tratado de modo distinto. Chegou a hora da síntese, já que a heteronímia me é avessa…
O gesto pode parecer incoerente, mas creio ser a melhor forma de deixar um fio condutor, a extinguir com o autor...
Melhor seria, talvez, evitar a ideia de autoria e cingir-me à criatura que foi rabiscando aqui e ali… O rabisco com as videiras lá longe, em latadas, no entanto, nunca chegou a ser para mim…


9.1.20

O ninho

Nenhum vento, nenhuma chuva. Nenhuma mão traquina. Nu, resiste à luz e, na sombra, espera o retorno, ciente de que não vai ficar, ali, ignorado…
Ainda há quem necessite do seu abrigo para que da casca possa eclodir a vida que, por ora, parece distante…
Só ele sabe que a vida é bem mais do que o tempo proclama… embora não saiba porque resiste ao vento, à chuva, à mão traquina.

(Há semanas que o observo, mas só hoje o ninho falou comigo.)

8.1.20

Da instrução do remoto infante

Os Lusíadas, canto III, 6 …

Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta setentrional do Sol luzente,
E aquela que por f ria se arreceia
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do Arcturo e do Ocidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E, pela Austral, o mar Mediterrano.

Da parte donde o dia vem nascendo,
Com Ásia se avizinha; mas o rio
Que dos montes Rifeios vai correndo,
Na alagoa Meótis, curvo o frio,
As divide: e o mar que, fero e horrendo,
Viu dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante
Não vê mais que a memória o navegante.
(…)
Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,

Em cujo senhorio o glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lhe não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.
(…)
"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,

E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros.

Fernando Pessoa

 O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.


5.1.20

O frio não apaga a luz da manhã

Jardim Guerra Junqueiro
O frio não apaga a luz da manhã nem faz esquecer o desassossego da viagem interminável de quem, num ímpeto solar, se lançou ao caminho do mar...
Os trabalhos dos dias de regresso nem seriam assim tantos, não fosse o incómodo da vida safada daqueles que desconhecem o compromisso, o respeito e a responsabilidade…
A safadeza colou-se de tal modo à pele que é cada vez mais difícil distinguir a ignorância da maldade, se não forem consanguíneas…
Não fosse essa inclinação atávica, a luz desta fria manhã colheria em nós o fruto destes cactos, mesmo que alguns espinhos continuassem na nossa memória…
Entretanto, na Rua dos Navegantes, as grades corridas. Por perto, João de Deus - a referência cada vez  mais esquecida!
(…)
Ah! Parece que a Sagres zarpou. Só volta em 2021... vai em busca do Encoberto… ainda a tempo de entronizar Sua Alteza.

3.1.20

O atraso como regra

A partida estava agendada para 6 horas da manhã de ontem, na estação rodoviária do Oriente. Ao certo, não se sabe qual é a empresa nem o local de embarque - minutos antes das 6, chegam dois autocarros da Ibercoach… Entretanto, o passageiro lá conseguiu perceber que faz parte da lista afortunada de viajantes com destino a França, Luxemburgo e Alemanha…
No controlo e no arrumo de bagagens a cabo do motorista, somem-se 50 minutos… passageiros há que chegam às 6:30, como se fosse habitual! 
Enfim, o autocarro nº 100 lá parte às 6:54...
A viagem é longa, a passageira esperava chegar a Hamburgo por volta das 24 horas de hoje, necessitando de estar em Frankfurt (como previsto) por volta das 18 horas… Mas não, vai perder a ligação. Vai ter de comprar outro bilhete. Talvez chegue amanhã, a Hamburgo, às 6 h da manhã!

1.1.20

O trabalho do leitor

«Um biógrafo não deve nunca elaborar e enfeitar, mas um leitor que faça o seu trabalho consegue formar, com base num punhado de pistas deixadas aqui e ali, um retrato completo do retratado e do que o rodeia. Dos nossos murmúrios, ele extrai uma voz; muitas vezes, mesmo se nada dizemos a esse respeito, vê nitidamente como era esse que estamos a retratar, e, sem uma palavra que o guie, adivinha precisamente o que lhe iria na cabeça. Ora, é mesmo para leitores assim que escrevemos, pelo que um tal leitor facilmente verá que Orlando era uma estranha mescla de estados de espírito…» Virginia Woolf, Orlando, pág. 55, cavalo de ferro, 2019

(Biografia. Retrato. Estado de espírito.)

Ao leitor, mais do que elaborar retratos, cumpre especificar e interpretar a incongruência dos estados de espírito gerados pelo apagamento da Memória, resultante da descontinuidade das vidas e da evolução tecnológica.
Um destes dias, a Orlando, pouco interessa se macho se fêmea, nada necessitará de fazer e, sobretudo, ver-se-á liberto da necessidade de pensar… talvez possa mergulhar na Natureza e por lá ficar até ser submerso.