28.5.22

O mal absoluto

A publicação em livro d' Os últimos dias da Humanidade, de Karl Kraus, data de 1922. O texto original é constituído por 209 cenas em que Kraus 'encena' o teatro da guerra em todas as suas dimensões... a guerra como mal absoluto...

Na atual situação, para mim absurda, embora para os beligerantes seja a ultima ratio, decidi reler a obra... e sem mais delongas, passo a citar:

O OPTIMISTA: Mas então não é indiferente qual a arma que causa a morte? Até onde é que o senhor está ainda disposto a acompanhar o desenvolvimento técnico das armas?
O ETERNO DESCONTENTE: Até nenhum sítio, mas se tiver mesmo que ser, o máximo que vou é até à besta. É claro que, para uma humanidade que acha que o fundamental da vida é matarmo-nos uns aos outros, é indiferente a maneira como trata da questão, e a liquidação em massa é mais prática.

Relembro que estas cenas começaram a ser escritas em 1915...

27.5.22

A (des) Humanidade

Uma parte da Humanidade destrói outra parte da Humanidade. No entanto, a Humanidade não se esgota nessas duas partes... Há uma terceira parte que assiste à destruição, alheando-se ou beneficiando mesmo dessa aniquilação...
A expressão da situação é repetitiva, contraria as regras da escrita fina, mas tal como na guerra, as regras não se aplicam ao contrário do que defende a diplomacia. Guerra é guerra. Cobardia é cobardia.
Ainda se esta guerra fosse a dos 'últimos dias da humanidade', mas não, estes últimos dias são apenas os últimos de todos aqueles, visíveis ou invisíveis, que já não podem ter esperança porque o tirano continua a agir sem verdadeira oposição, aproveitando o nosso cansaço, a nossa desatenção, o nosso egoísmo.... na Ucrânia, no Afeganistão, na Síria, na Palestina, na Venezuela, no Brasil, na Africa,  quase toda, nas explorações agrícolas, nas fábricas, debaixo dos tetos dourados ou arruinados, debaixo das arcadas, nos vãos de portas, nos hospitais, nos lares...
A destruição da Humanidade está em marcha, mas ainda não é a dos últimos dias... 

21.5.22

Nós e a guerra...

Por aqui já não se vai à guerra! No entanto, há sempre quem vá visitar as ruinas deixadas pela guerra... 
Em segredo, de capacete e colete à prova de bala, atravessa-se as ruas esventradas pelos mísseis inimigos, esperando que as televisões tenham capatado o sentimento de horror e, sobretudo, a oferta de que Portugal solidário está pronto para reconstruir os jardins de infância e as escolas...
Só espero que não entreguem à Parque Escolar  tal projeto de reconstrução!

Ressalve-se que, desta vez, o Marcelo tirou o tapete ao Costa, ao destapar o segredo, pois o impediu de entregar os velhinhos blindados M113A, que nos foram vendidos há 30 anos pelos americanos... 
De qualquer modo, o Marcelo já foi convidado para ir a Kiev e iremos vê-lo à frente da coluna de blindados...


19.5.22

Pessoa de todas as horas

Fernando Pessoa "manteve-se na infância sem construir uma identidade", diz biógrafo Richard Zenith

Não sei, mas duvido.
Creio que Fernando Pessoa não só construiu uma identidade, como foi imaginando muitas outras para se libertar da solidão...
Por outro lado, a identidade não resulta apenas da vontade individual - ela é tecida pelas circunstâncias  em que o ser se desenvolve... E Fernando Pessoa cresceu em circunstâncias muito particulares.
Por muito que apeteça dissecar o ser através da obra legada, convém não esquecer que o Ser não se confunde com o produto da sua imaginação por mais poderosa que ela seja, não se confunde com o desvio lebidinal de que possa ser acusado ou encomiado.
Bem cedo, Pessoa começou a construir a sua identidade, como a maioria dos pessoanos bem sabe... É uma realidade a que ninguém escapa, mesmo que os frutos possam nunca amadurecer.

17.5.22

Perto ou longe

Perto ou longe, uma criança nasce...

e a morte, perto ou longe, perde sentido...

Herodes foi tirano único.

Putin está a destruir a Ucrânia.

Nem que recorra a todas as armas,

 perto ou longe, uma criança nasce

... e tudo recomeça

e a morte perde sentido.

Perto ou longe, uma criança nasce...

Desde que uma criança nasça, 

pode-se morrer sem desespero.


15.5.22

Ernst Jünger em Angola

«Quilumbo, 26 de Outubro de 1966
José, o criado preto, falava fluentemente alemão, e isso deixou-nos admirados. A coisa explicava-se porque desde criança - era órfão, suponho - ele foi criado nesta casa e numa convivência íntima com o patrão.
Viveram juntos o momento da revolta (1961). Durante a fase mais crítica, as mulheres e crianças foram enviadas para o litoral, os homens ficaram na fazenda. Os criados da casa, que estavam ao lado dos patrões, foram sujeitos a chantagens. O plano previa três fases e o assassinato de todos os brancos. Mas fracassou logo na primeira, que só por si já fez correr sangue a mais. Os detalhes, pensados do outro lado do Congo, eram demasiado sofisticados para os indígenas.
Como quem não quer a coisa, o Senhor Smidt perguntou ao José: 'E quem é que vos ia pagar se nós não estivessemos cá?' E ele caiu na armadilha: 'Foi isso mesmo que eu sempre lhes disse.'
(...) A propósito da pergunta de Smidt van Dunge: se um negro que foi fiel durante trinta anos de repente se torna inimigo, a explicação só pode estar na natureza da dominação. Ele será fiel enquanto for dominado. E começa a pensar na sua própria pele quando o senhor deixar de se sentir seguro no seu lugar. A moral cede à física; não é louvável, mas é humano, (...). (Tradução de João Barrento de excertos de Siebzig verweht I, 1980.)

A natureza da dominação continua a ser uma questão essencial no despoletar dos conflitos. No entanto, a informação tende a tratar tudo de forma uniforme e unilateral. Parece que a barca se inclina sempre para o lado do dinheiro...

13.5.22

Dissonâncias 2

«A notícia do dia, de tão repetida e comentada, ofende os ouvidos de quem ousa ligar o aparelho de televisão.» Caruma, 11.12.2021

Hoje, sexta-feira, dia 13, de manhã à noite, a morte de Rendeiro, numa cadeia de alta segurança na África do Sul, virou tema dominante. 
Dezenas de comentadores repetem o óbvio. 
As cerimónias de Fátima perderam fulgor e a guerra na Ucrânia ficou mais longe.
Desconfio que Rendeiro acabou por encontrar a fórmula para nos lembrar que, por cá, há muito tempo que o rei vai nu e que a Corte se vinga do parvenu.