7.8.06

Perplexidades de férias

Já, aqui, falei do GPS que, entretanto, resolveu ser bom conselheiro se exceptuarmos algum desconhecimento de certos terrenos em que a mão humana terá actuado recentemente. No entanto, estou algo perplexo sobre a utilização deste equipamento já que descobri que um francês e um alemão se encontram presos no Irão, acusados de terem entrado ilegalmente em águas iranianas (ou pelo menos proclamadas como tal!) na posse de um suspeitíssimo GPS. Por outro lado, as autoridades francesas também penalizam severamente os condutores que utilizem este aparelho como meio de “controlar” os seus radares. No meu caso, ainda não descobri como é que posso ludibriar as autoridades (!!?), embora tenho descoberto que o GPS me dá uma indicação sobre a velocidade do veículo mais rigorosa do que o conta-quilómetros – 7 quilómetros para baixo. O que eu ainda não referi é que fui traído pela restante tecnologia. O meu Vodafone mobile connect card, que me devia permitir aceder à Internet, revelou-se um fiasco. Apesar de ter comprado previamente 50 Mbytes de modo a embaratecer o roaming, só uma vez conseguir aceder à Internet em terras de Espanha e de França. Segundo o serviço de apoio ao cliente, a minha versão do software data de 2004 e por isso não suporta esta minha pretensão. O interessante é que vou ter que pagar por um serviço de que não usufrui! Por sua vez, o meu telemóvel (da TMN) deixou de poder ser recarregado, recorrendo, por exemplo, ao sítio online da CGD. E sem saldo, não se pode fazer nada, nem mesmo comunicar com a TMN, apesar dos sms da operadora a lembrar-nos as modalidades de recargamento, em roaming. E isto aqui tão perto! Imaginem-se as dificuldades em comunicar por telemóvel com uma filha que ora está na Hungria, na Roménia, na Áustria, ora na Eslováquia, na Croácia… E se tivermos a pretensão de mergulharmos, em plenas férias, nos vales pirenaicos espanhóis e franceses, então, mais vale, gastar uma semana das férias a certificarmo-nos que o nosso manual de bordo responde a todos estes escolhos. Entretanto, esta região dos Hautes –Pyrénées é extremamente agradável, apesar de, talvez à semelhança de certas estações de caminho de ferro portuguesas, nos presentear com paragens de autocarro por onde, desde o início de Julho até 12 de Dezembro, não passa qualquer destes veículos. Quem quiser deslocar-se, só no seu próprio veículo o poderá fazer, e isto quando a gasolina chega a custar 1, 48 euros. A União europeia parece, no serviço ao utente, estar bem afinada. Já em Sória, tive a felicidade de descobrir um centro comercial aberto ao público, tipo “Colombo”, onde o hipermercado só abrirá em Dezembro para desconforto e prejuízo dos restantes lojistas! No entanto, o que são estes problemas se comparados com os dos libaneses, dos palestinianos, dos afegãos, dos iraquianos ou dos milhares de africanos que desesperadamente procuram entrar na Europa?
Quanto ao que vale a pena visitar, registe-se que a cidade de Lannemezan parece de costas voltadas para o turismo. Basta pensar que, lá, é mais fácil comprar flores do que tomar o pequeno almoço. Nos cafés, não é visível qualquer tipo de pastelaria. Num deles, chegaram a dizer-me que só vendiam bebidas, que fosse à padaria… Encontra-se, no entanto, um espaço preparado para receber auto-caravanas… com electricidade, sanitários, lavagem de loiça… Tudo muda quando nos aproximamos de Arreau e de St-Lary-Soulan.

Arreau

Arreau, uma típica cidade pirenaica, entre St-Lary e Lannemezan.
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6.8.06

31 de Julho e 1 de Agosto La Puebla de Castro, Lago Barasona Calor, muito calor. Os acessos ao vale prometem, mas a água do lago, nesta época do ano, não parece muito cristalina. O extenso parque de campismo está cheio de holandeses que vão estorricando ao sol, depois de uma passagem pela piscina ou pelo lago. De pele branca e cabeleira loira, estas famílias holandesas, que parece que nunca viram o sol, cozinham metodicamente as refeições diárias nos alvéolos, profusamente ocupados pelas respectivas tendas, atrelados e roulotes, para depois se encharcarem em mil e uma bebidas, todas elas coloridas. Alguns franceses e belgas quase não se fazem notar. De portugueses nem vale a pena falar… Os espanhóis ocupam preferencialmente os bungalows (bangalós), não se misturando nestas avenidas neerlandesas. Em alternativa, o percurso pedestre para La Puebla de Castro, mostra, do lado esquerdo, pequenas hortas, onde predominam o tomate, a cebola, o feijão verde, o pimento e o melão, e do lado direito, podemos ver uma zona florestal mal tratada, mas que esconde belas e ricas vivendas. À medida que avançamos, o percurso pedregoso torna-se sinuoso e, sob o intenso calor das 17 horas, decidimos voltar para trás pois não encontrámos os vestígios românicos que o roteiro nos prometia… e La Puebla de Castro esfumou-se… 2 de Agosto Vindos de La Puebla de Castro, chegámos à Vallée du Moudang, tendo entrado em França pelo Tunnel d’Aragnouet-Bielsa. Este túnel de 3 Km, a 1860 metros de altitude, foi inaugurado em 1976. Há uma diferença significativa em termos de paisagem e de clima. Os verdadeiros Pirinéus parecem estar deste lado. Será? Estamos instalados junto a um sonoro rio, num camping municipal, onde as restrições são muito maiores do que em qualquer camping espanhol. A torrente é fraca, mas pode aumentar a qualquer momento em virtude da abertura das comportas das múltiplas centrais hidroeléctricas existentes na região.

30.7.06

O GPS e o caos...

«Les gens ne changent pas. Ce sont les choses qui changent.»Boris Vian, L'écume des Jours
(28 de Julho) Em Madrid, o GPS enlouqueceu ao chegar à Avenida de Portugal… O software não estava preparado para responder às alterações criadas pelas obras naquela avenida, na zona Puente del Rey e nas praças vizinhas. Advinham-se, por ali, obras faraónicas. A E90 (NV) morria numa misteriosa encruzilhada, sem que as autoridades dessem qualquer atenção ao trânsito verdadeiramente caótico. Despreocupadamente, ocupavam-se dos múltiplos acidentes que iam ocorrendo. O GPS, por seu lado, ordenava: faz inversão de marcha, vira à esquerda, encosta à esquerda, sai daqui a 200 metros, na próxima rotunda, sai na 5ª saída… Já na auto-estrada da Corunha, continuava a ordenar: encosta à esquerda, vira à esquerda, contrariando as regras elementares do código da estrada… Se fosse a obedecer ao GPS, a esta hora estaria, no mínimo, preso… Para sair daquele labirinto, já que a E90 desaparecera de vez, ainda, consegui a proeza de entrar num terminal rodoviário subterrâneo, sem que ninguém se sentisse incomodado. Acabei por obedecer ao GPS que, mal entrei no subterrâneo, ordenou: faz inversão de marcha. De facto, não havia outra alternativa… Farto da Avenida de Portugal e de Madrid, rumei a Segóvia, onde já tarde, parei, finalmente, no camping o “Acueducto”. Curiosamente, Segóvia fazia parte dos meus planos de Páscoa. E ainda há quem negue que Deus escreve direito por linhas tortas! Segóvia Património da Humanidade desde Dezembro de 1985. Acueducto-Catedral-Alcazár. E em Segóvia não faltam as igrejas: de San Martin, de Nuestra Señora de l’Asunción y de San Frutos (nome curioso para uma catedral, edificada no século XVI), de San Andrés, de San Esteban, de San Quirce, de La Santísima Trinidad, de San Nicolás, de San Miguel, de la Compaňia de Jesus, de San Sebastián, de San Juán de los Caballeros… e também não faltam os mosteiros e os conventos, para além do imponente e turístico Alcázar e da inevitável Plaza Mayor… E para atenuar um pouco este expressivo e fanático catolicismo, podemos visitar a JUDERÍA, confinada, a partir de 1480, a um bairro a sul da cidade, sobre o Vale del Clamores… Entretanto, na católica Espanha, só os conversos puderam permanecer na cidade após o édito de expulsão, em 1492…

24.7.06

Enquanto ardem as cidades libanesas...

«Quando a invasão ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam / O seu jogo de xadrezFP/RR (1/6/1916)
Lá longe, enquanto ardem as cidades libanesas, os grandes eleitores, cinicamente, adiam as tréguas na expectativa de que Israel conclua a desvastação que lhes permitirá celebrar a vitória sobre as forças do Mal.
A ignomínia judaico-cristã alastra, obrigando milhões de indefesos a abandonar as casas a que jamais poderão voltar e nós, por aqui, indiferentes, continuamos a armar as nossas pequenas ciladas...
Em 14 dias, nos bastidores, desenhou-se uma nova estratégia e o sentido do voto mudou radicalmente. Os eleitores não fizeram qualquer exigência aos eleitos. E estes também não apresentaram qualquer projecto nem fizeram qualquer promessa.
Terminada a nova eleição, sente-se um alívio generalizado. Como se cada um acabasse de se libertar de um terrível fardo.
O que é que, de verdade, nos move? Será que queremos responder a esta pergunta crucial?
A Escola ainda está a tempo de nos ajudar a responder a estas questões se quiser colocar os olhos na sua única razão de ser: o aluno. Ou, então, mais vale fechar a porta porque os jogadores de xadrez há muito que abdicaram da vida...
E por isso, para aqueles que se possam interrogar sobre o que me move, esclareço que não abdico...

23.7.06

A responsabilidade é francesa...

"Nullum recusare periculum"
O legado romano deixou-nos uma noção de responsabilidade associada ao exercício da autoridade (auctoritas). Se, um dia, o homem peninsular quis(?) limar o seu comportamento teve que pedir auxílio aos franceses ou, melhor, suportar a presença dos franceses que o ensinaram a responder pela terra (a mulher, quase sempre) que ficava a seu cuidado. O vassalo aprende a responsabilidade com o (a) senhor. As cantigas de amor testemunham essa aprendizagem, tal como as cantigas de escárnio e maldizer mostram a dificuldade do homem peninsular assumir a responsabilidade - a dificuldade em responder pelos seus actos. O homem da cantiga de amigo (o amigo peninsular) parte, sem consciência dos seus actos. Sem dar notícia, deixa a saudade nas ondas, no vento que irrompe pelos pinhais e pelas ermidas...
A assunção da responsabilidade exige que a comunidade não se alheie dos problemas e que não ceda ao capricho da manada...

19.7.06

Cabeças desafinadas...

Neste pequeno mundo harmonioso, em que se cruzam vaidades flamejantes e se disfarçam inépcias, uma pergunta salta violenta:
- Mas então os Coordenadores não têm o direito de votar segundo a sua própria cabeça?
Esta pergunta foi dada como resposta a uma outra pergunta ( a melhor defesa é o ataque!):
- Como que é que os membros de cada Departamento irão reagir perante a decisão dos seus Coordenadores de concentrar numa única cabeça os poderes executivo e pedagógico?
( A sereia começa a embalar-nos com o mote: Governar em dita...dura... dita...dura...)
Esta pergunta, para mim, não é uma questão de retórica. A aceitação passiva desta decisão significa que rejeitamos efectivamente qualquer projecto que ouse apelar à participação da comunidade educativa.
"Quando uma pessoa que organiza e orienta um projecto ou actividade de grupo" - o Coordenador - delega essa competência numa cadeira vazia, essa pessoa, se pensasse pela sua cabeça, deixava, também, vazia, a sua cadeira...

17.7.06

Um corrector esdrúxulo...

Uns preferem o discurso esdrúxulo, outros o discurso descarnado.
Quando a um examinando de poucas palavras sai um corrector esdrúxulo, podemos dizer que está tramado. E se à concisão juntar uma letra miudinha, seca, tímida - reveladora de uma personalidade introvertida - então, não tem qualquer hipótese. O corrector esdrúxulo prefere a letra garrafal, alongada, pronta a derramar-se num infinito oceano lírico...
Hoje, tive a oportunidade de observar como trabalha o corrector esdrúxulo: rejeita a letra miniatural, embora sublinhe zelosamente os grafemas maiúsculos que histericamente se elevam sobre a imaginária pauta; rejeita a brevidade da resposta sem cuidar de lhe interpretar o sentido (o conteúdo?); rejeita a fria e simples enumeração dos traços da personagem; rejeita a resposta crítica do examinando que, seguindo o autor, entende que D. João V teria feito melhor em investir o ouro do Brasil na construção da passarola do que na construção do convento de Mafra; rejeita a competência argumentativa e o espírito de síntese porque o examinando ao expor a tese (no 1º parágrafo) não explicitou que a exploração espacial possa ter resultado da incapacidade dos políticos resolverem os problemas da sua terra. No entanto, o examinando desenvolveu a tese, argumentando que o egoísmo, o desejo de protagonismo, nos levam frequentemente a cortar com os nossos semelhantes, em nome de uma singularidade e de uma superioridade discutíveis.
Esta fobia do corrector esdrúxulo valeu ao examinando uma surpreendente classificação final de 7,5 valores, perdendo, pelo menos, 4 valores.
Uma parte do problema reside precisamente na falta de qualidade das provas de avaliação e na forma arbitrária como são classificadas...
Ora, esta questão só pode ser resolvida no âmbito da formação inicial e contínua dos professores...

16.7.06

Problema II

I - "Há que evitar que aqueles alunos que leram os autores indicados pelo Programa de Português possam ter melhores resultados do que aqueles que se limitaram a preencher formulários, a fazer relatórios, a digitar mensagens electrónicas, a desrespeitar os colegas e os professores, a faltar às aulas, a anular a matrícula. E porquê? Porque os primeiros podem ter memorizado os conteúdos sem nada terem compreendido." (Pensamento cavo do presidente da Associação de Professores de Português)
Na perspectiva deste singular teórico do ensino da língua portuguesa, os autores da lusofonia (poetas, romancistas, dramaturgos, ensaístas) são uma maçada que tolhe a inteligência da nossa juventude.
Tal como as nossas escolas merecem um novo modelo de gestão, a APP merece uma direcção orientada para o ensino e para a aprendizagem da língua (sem escamotear a cultura e a literatura lusófonas!), mais preocupada com a formação dos professores...
Não podemos ignorar que o futuro de Portugal passa pelo território da lusofonia. E só conhecendo a alteridade lusófona, poderemos ser aceites como parceiros na construção do futuro.
II - Retomando o Problema I
Quem é que, desde 1974, recusa que as escolas sejam dirigidas por gestores profissionais, enquadrados por um conselho escolar (pedagógico, técnico e administrativo) que trabalhe para que os alunos tenham efectivo sucesso escolar?
Quem é que, em vez de avaliar e corrigir as causas do insucesso educativo, forçou uma revisão curricular posta em causa desde o início? A quem é que serve a actual revisão curricular?
Quem é que dá a mão a Associações espúrias que, em nome de uma globalização paroquial, aposta num conjunto de competências mínimas que impedem que o aluno tenha sucesso escolar e, sobretudo, sucesso na vida?
Quem é que, nos últimos 30 anos, entregou a formação de professores dos ensinos básico e secundário a instituições incapazes de formarem os seus próprios docentes? A formação de professores foi entregue às Escolas Superiores de Educação que rapidamente ocuparam terenos que não eram da sua competência. Foi entregue a departamentos que germinaram nas Universidades, mas que nunca foram avaliados. A formação, nos dois casos, está entregue a professores que desconhecem o terreno que os formandos terão que pisar. Universidades e Institutos privados 'formaram' milhares de professores, sem qualquer enquadramento legal. Muitos dos formadores não eram sequer profissionalizados. Tal como acontece com os mestrados e os doutoramentos em curso, os candidatos a professores eram admitidos desde que pagassem as propinas - o famigerado auto-financiamento do ensino superior tem vindo a gerar prejuízos incalculáveis para as futuras gerações.
III - Algumas soluções
  • Acabar com a separação entre os ministérios da educação e do ensino superior...
  • Criar gabinetes de estudos no interior do ministério da educação.
  • Mudar o modelo de gestão das escolas, reduzindo as estruturas directivas.
  • Alterar o modelo de formação de professores, criando três ciclos de formação: pré-escolar, 1º ciclo e 2ºciclo; 3º ciclo e secundário; ciclo superior.
  • Apetrechar as escolas com os equipamentos necessários ao funcionamento de cada curso.
  • Não abrir cursos em escolas onde faltem recursos humanos e materiais.
  • Acabar com a promiscuidade entre o ministério da educação, as associações de professores, os sindicatos, as editoras de manuais escolares...
  • Acabar com qualquer tipo de acumulação, remunerada ou não.
  • Diferenciar remuneratoriamente em função dos cargos desempenhados.
  • Criar um modelo de avaliação do docente que tenha em conta o seu estado físico e mental, a sua eficácia pedagógica e não a idade.
  • Evitar todas as medidas avulsas...

14.7.06

O problema

No conjunto, os resultados dos exames do secundário não são "nem excepcionais nem muito preocupantes". Glória Ramalho, Presidente do Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE)
Um novo problema deu à costa: uma boa parte dos alunos não consegue concluir o ensino secundário na 1ª fase e muitos daqueles que o conseguiram não obtiveram os 9,5 necessários para aceder ao ensino superior. No entanto, se para a bem-aventurada Glória Ramalho esta situação não é 'muito preocupante", qual é a origem do problema?
Uma das respostas encontra-se no Ministério do Ensino Superior: O que é que as Universidades públicas e privadas, os Politécnicos, as Escolas Superiores de Educação, os Institutos vão fazer no próximo ano? Fecham as portas, engrossando as prateleiras dos supranumerários?
Inaceitável. A coragem escasseia.
Por isso, já abriu a caça às respostas (bruxas). A óbvia seria o professor. Mas teme-se, no contexto actual, que esse argumento esteja fragilizado. Por conseguinte, ensaiam-se novas respostas: a novidade e a extensão dos programas, os erros científicos e pedagógicos dos manuais, as incorrecções das provas de exame, a arbitrariedade (indisposição?) dos correctores, a falta de aplicação dos alunos...
Em muito pouco tempo, criou-se, na comunicação social, um cenário que potencia a ocultação da incompetência dos ministros, dos secretários de estado, dos assessores, dos directores gerais, dos autores dos programas, dos auditores científicos e pedagógicos, do GAVE, de uma horda de avençados... Perante o problema, o que pensaram todas estas luminárias?
A título excepcional (ou talvez não!), os alunos poderão repetir os exames na 2ª fase e candidatar-se ao ensino superior na primeira época. Como aqueles pretensos atletas que se infiltram na corrida, enganando os juízes de prova...
E porquê? Para não perturbar minimamente os maiores responsáveis pelo fracasso do país e que imperturbavelmente circulam dos corredores das academias para os corredores dos ministérios. Bípedes inteligentes, frequentemente, nem precisam de circular. Jazem, um membro na academia, outro no ministério.

13.7.06

Numa nuvem de poalha...

Desde 1998 que me habituei a observar, logo de manhã cedo, um casal de melros, que saltitavam, indiferentes a quem entrava no vetusto edifício desenhado pelo arquitecto Ventura Terra. Não creio que o casal fosse sempre o mesmo, mas estou certo que a atitude, essa, era (e é) a mesma.
Surpreendentemente, surgiu uma outra ave, de bico forte e curvo, nem sempre negra, mas predadora, que começou a reproduzir-se, de forma intensiva, gerando um bando omnívoro que emite estrategicamente sinais de inteligência, planeamento e comunicação...
Já esta semana, uma dessas experimentadas criaturas sofistas, num golpe de mestre, teve a audácia de se assenhorear do labor de alguns pequenos invertebrados que por ali restam.
( Relembro que o cada vez mais desacreditado S. Freud já explicou que 'um golpe' não é mais do que a repetição do 'golpe original'. Por isso, talvez, ainda valha a pena criar uma «área projecto« cuja única meta estratégica será descobrir o primeiro golpista.)
Mas o mais grave é que esta endémica holopatia alastra das galerias, ladeia os pátios norte e sul, na expectativa de destronar, em 2008 , o arquitecto Ventura Terra.
A entronização decorrerá nas caves e, nesse dia, numa nuvem de poalha, estarão presentes todos os ilustríssimos avoengos de bico forte e curvo, já quase todos negros...
Resta-me, porém, a esperança ( historicamente infundada!) de que não havendo mais presas, o bando levante voo, de vez...

11.7.06

O que é ser experiente?

«O incêndio deflagrara à hora do almoço. Eram cerca de 13h30 e os bombeiros tratavam de apagar mato, caruma, giestas. De repente, a direcção do vento alterou-se e a ordem ecoou:"Para trás!"(...) e os chilenos avançaram no sentido inverso, à frente do fogo."Ouve-se dizer que estes sapadores têm muita experiência", por isso o Sérgio foi com elesPúblico, 11.07.2006
Há séculos que alimentamos a ideia de que o que é estrangeiro é bom, é experimentado. Ou, pelo contrário, ressabiados e xenófobos, condenamos liminarmente tudo o que vem de fora ou vive lá fora. Talvez não valha a pena dar exemplos, mas basta pensar na carga de ambiguidade da palavra estrangeirado para perceber como somos capazes de idolatria ou de persecução de tudo o que não é genuinamente português. Agora, estamos numa fase de alguma idolatração do que é estrangeiro, de quem vive e trabalha lá fora. Veja-se o caso do Scolari, dos jogadores da selecção ou mesmo dos emigrantes - que não dos imigrantes! Defendemos modelos estrangeiros: da Irlanda à Finlândia, resignando-nos, mesmo, à cada vez maior presença espanhola em solo lusitano.
E os sapadores chilenos não escapam a esta presunção de experiência. Há vários anos que a comunicação social dá testemunho da sua presença sem a questionar. Sempre em nome da competência que essa, sim, faltará aos nossos bombeiros voluntários, amadores... No entanto, não é a primeira vez que experimentados (?) bombeiros chilenos morrem nas nossas matas porque não obedecem à ordem de arrepiar caminho.
Quando ignorarmos as coordenadas do terreno que pisamos, não há experiência que nos valha! O chefe dos bombeiros locais que deu a ordem "Para trás!" é bem mais experimentado que qualquer encartado (diplomado) noutras longínquas paragens.
E este fascínio pelo desajustamento, pelo esquartejar do saber acumulado ao longo de muitas gerações, alastra pelo país como o incêndio de Famalicão da Serra.

9.7.06

Tudo isto cheira a naftalina...

Felizmente, chegou ao fim um daqueles torneios em que os artistas estavam proibidos de actuar.
Mais importante do que atacar era defender, já que a sorte parece favorecer, não os audazes, mas os medíocres. Os treinadores e os árbitros, condicionados pelos jogos de bastidores, tudo fizeram corresponder aos superiores interesses do marketing: num ápice valorizaram e desvalorizaram jogadores, selecções, países... Valeria a pena saber quantos jogadores ficaram com a carreira amordaçada!? Não o iremos saber, a não ser que, um dia, um Zidane, um Figo, um Raúl decidam contar tudo o que sabem.
Quanto a Portugal, seria interessante que aqueles técnicos que melhor conhecem os jovens jogadores portugueses, pudessem formar uma nova selecção, liberta do espírito patrioteiro, corporativo e beato que ultimamente nos invadiu. Um país que se diz membro da União Europeia não pode comportar-se como se ainda vivesse em pleno Estado Novo, com colónias e tudo... O tempo dos sargentos, sem desprimor para os verdadeiros, chegou ao fim. Caso contrário, ainda voltaremos ao tempo dos famigerados condottieri ou, numa versão mais provinciana, ao tempo dos «padrinhos».
(Tristes vão os dias, de Timor ao Jamor!)
Tudo isto cheira a naftalina, desde o D. Afonso Henriques retido no túmulo às praias da Caparica cerceadas por paredões inúteis, passando pelo estádio do Jamor - panteão de vaidades oficiais, oficiosas e gratuitas.
E já agora, quem é que acredita que a ministra da cultura não soubesse que estava a ser preparada a abertura do túmulo do rei-fundador? Desculpa esfarrapada, que, caso fosse verdade, merecia, pelo menos, o despedimento de meia dúzia de assessores.
( Tanto riqueza esbanjada, num país tão pobre, dói... Quantos portugueses ficaram mais pobres neste último mês? Quantas famílias ficaram sem poder honrar os seus compromissos? E ainda vamos de férias!?)

7.7.06

Entre a pura actividade e a passividade pura...

«Esse est percipere et percipi.» Tese de Berkeley - Ser é perceber e ser percebido.
Separado de um pequeno grupo de caminheiros, entrara nos acessos às arribas da Praia Grande (Sintra), quando dei de caras com dois automóveis parados no meio de uma vereda. Ao de leve, coloquei a mão na bagageira do velho Renault 5 vermelho que, de imediato, galopou vertiginosamente sobre as fragas até se despenhar, na vertical, sobre o areal, junto à orla marítima. Surpreso e petrificado no ponto de partida daquele galope esfuziante e horrível, fixei a vista naquele ponte bem distante da praia e, num ápice, um corpo, semi-nu, masculino, elevou-se à altura do penhasco que separa as águas da terra, para voltar a cair, redondo, sobre o areal. Outros corpos, semi-nús, cercam-no e eu desperto, aturdido.
Agora, que pareço acordado, continuo sem saber o que fazia naquela hora indistinta na Praia Grande, quem eram aqueles andarilhos que me acompanhavam e de que perdi o rasto, qual era a marca e a cor do veículo que continuou imobilizado, que força accionou o velho Renault 5 vermelho e, sobretudo, se houve uma vítima e quem ela era, de facto.

4.7.06

Os predadores...

« Quando se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas...» Almeida Garrett, Viagens na minha Terra, 1843
Depois dos ministros Ferreira do Amaral e João Cravinho terem coberto o país de auto-estradas, passou a ser tão fácil percorrer o país de lés a lés que alguém, inefável, concluiu que não era mais necessário fazer a lei da responsabilidade ministerial.
E não fosse algum pateta das luminárias levar as cépticas palavras de Garrett a rigor, determinou-se que jamais se enfadasse a nossa juventude com algum capítulo daquele folhetim que dá por nome Viagens na minha Terra.
(Apesar de tudo, estou convencido que mais dia menos dia, a TVI acabará por instalar os estúdios lá para os lados da Ribeira de Santarém, bem pertinho da esquecida Santa Iria, presenteando-nos como uma bucólica Joaninha da Real Companhia das Lezírias! É apenas uma questão de tempo: o tempo necessário a que a Joaninha Moura Guedes aprenda a montar.)
Quando o Estado é laxista, a questão da responsabilidade ministerial é fulcral. Como é que se pode alterar este estado de coisas, se os ministros não são solidários com os ministros anteriores? Qualquer novo ministro alija a sua responsabilidade para cima do ministro anterior, revogando-lhe as leis que, na maioria dos casos, não chegaram a ser regulamentadas; e mais recentemente, criou-se o hábito de montar nos mass media um circo, onde os trabalhadores, em geral, e os funcionários do estado, em particular, não passam duns velhacos doentes e preguiçosos que só aspiram a opíparas reformas, exaurindo a burra do estado.
Já que a solidariedade ministerial não existe, poderia, pelo menos, fazer-se justiça: Por exemplo, julgar e prender todos aqueles ministros, secretários de estado, chefes de gabinete, assessores... que deixaram os sindicatos impor-lhes um estatuto (de igualdade remuneratória) da carreira docente, que deixaram os directores dos centros de formação distribuir verbas incalculáveis por formadores gananciosos que foram acreditando milhares de professores sem, de facto, os avaliar, que aceitaram (e defenderam hipocritamente) o modelo de gestão democrática. Este laxismo ministerial é que gerou os predadores que continuam à solta...
E é para não incomodar os predadores, que já começaram a recolocar-se à mesa do orçamento, que todos os dias o circo ministerial faz cair em descrédito os palhaços de 2006...

3.7.06

Casos na primeira pessoa...

(Casos na primeira pessoa)
Senhor Provedor da Portugal Telecom A minha filha que se encontra na Hungria, em 22 de Junho deixou de poder aceder à sua caixa de correio. Este impedimento criou-lhe uma situação muito desagradável, pois perdeu vários contactos universitários, importantes para a prossecução dos seus estudos na Europa Central.Tal como reservas de avião e de hotel... Entretanto, apesar da minha reclamação diária por telefone 707 22 72 76 e por e-mail (suporte@acesso.sapo.pt), sou simpaticamente convidado a ter paciência porque «estamos a efectuar todos os esforços para que a situação reportada com a identificação 2006-260468 seja resolvida o mais breve possível.» Por outro lado, na página do cliente, obtenho a seguinte inamovível informação: Nº SGS Tema Estado Data de Registo 2006-260468 Problemas técnicos Caixas de Correio Aberto 2006/06/22 Não sei se devo continuar a ter paciência, pois já em Dezembro de 2005 tive idêntico problema com a Netcabo, que nunca foi capaz ou quis resolvê-lo. Foram meses de respostas evasivas até que mandei desligar a netcabo. E nunca a Netcabo assumiu oficialmente qualquer responsabilidade. Como pode deduzir, troquei a Netcabo pela Sapo e, afinal, tudo parece funcionar do mesmo modo. A estrutura técnica parece não estar à altura de resolver as anomalias e, sobretudo, jamais esclarece o cliente sobre a sua incapacidade, para que este possa seguir o seu caminho... O que mais lastimo é a falta de transparência na relação com o cliente. Caso o entenda, gostaria que avaliasse esta espécie de disfuncionamento, pois, imagino que muitos outros clientes serão vítimas deste tipo de arbitrariedade que, penso, inaceitável numa sociedade que aposta cada vez mais nas novas tecnologias de informação.
Pelo menos é esse o desafio do engenheiro Sócrates, a quem peço, daqui, desculpa por o ter tratado, há uns dias, por "mestre", qualificativo desprezível nos tempos que correm... Embora, nesta questão, me sinta um pouco confuso, pois tenho visto engenheiros que o não são, e outros que, apesar do engenho lhes falta a arte. Porém, para me acalmar, o demónio de Sócrates ( o da cicuta!), murmura-me ao ouvido: - Impossível. Abandona esses teus lampejos.
Senhor Provedor do Instituto de Seguros de Portugal,
Senhor Ministro da Administração Interna,
Senhor Ministro da Justiça,
Se a lei me permite pagar o seguro de um veículo automóvel até 30 de Junho e o faço nessa data, através do multibanco, por que motivo a autoridade policial me pode autuar logo no dia 1 de Julho, pois me falta a correspondente carta verde?
E por que motivo, a Império Bonança (e as restantes companhias...) não envia previamente a carta verde a cada um dos seus clientes? Se não confia em mim, não me deveria aceitar como cliente!
Para que a voracidade da autoridade não desabe sobre mim, desloco-me à sede da Companhia a pedir a desditosa carta verde e por lá fico sessenta gloriosos minutos à espera...felizmente, na companhia de outros clientes mal-humorados. Vá lá saber-se porquê? (Durante todo aquele tempo pude contemplar uma senha branca que apenas registava: C63; o meu vizinho do lado, esse por lá ficou com uma senha verde em riste...)

Como, entretanto, me lembrei que o actual Ministro da Administração Interna e que já foi Ministro da Justiça, em tempos remotos - logo a seguir ao 25 de Abril - terá sido meu aluno ( ou será imaginação minha ou, talvez, do Passos Manuel?) dei comigo a pensar que eu sou o único responsável por esta forma de tratar os constituintes, os eleitores, os utentes, os clientes, os pacientes, os fregueses...

E por isso quero crer que a solução para o déficit está em colocar a CARUMA no quadro dos supranumerários. Um quadro virtual, já se vê, um pouco como o purgatório, essa instituição medieval, criada para que uns tantos virtuosos pudessem acumular capitais sem se verem condenados às penas infernais.

(A estas horas, a culpa judaico-cristã costuma atacar-me de forma violenta e por isso me sinto responsável por toda a impunidade que cresce sob as minhas agulhas nocturnas...)

EE E por isso, quero crer que se a CARUMA fosse colocada no quadro dos supranumerários o problema do déficit ficaria resolvido

1.7.06

Quem não embandeira não petisca...

Ultimamente, as aparas vêm-se avolumando: as boas classificações seja dos exames de Português seja da selecção nacional de futebol escondem os habilidosos que manipulam o sucesso e o nacionalismo serôdio. Bebe-se e grita-se numa linguagem reles contra adversários que deveriam merecer o nosso respeito.
Num tempo em que os habilidosos da política ameaçam correr à pedrada quem lhes contrarie os interesses, e em que outros mecenas autárquicos compram o silêncio dos subsidiados, a encenação da saída do ministro dos negócios estrangeiros, precisamente no momento em que o chauvinismo dos portugueses vive do futebol, é aplaudida como uma jogada de mestre Sócrates.
Cada vez mais a esperteza dos ardilosos, também chamada dos guerreiros, se afirma impunemente como um traço fundamental da cultura portuguesa.
Na escola, no futebol, na política, o truque compensa.
E o que mais arrepia é ver como a juventude tumultuosa está a ser educada no ardil e na baixeza.
( Este comentário agreste não visa retirar mérito a todos aqueles que na respectiva actividade dão sempre o seu melhor sem necessitar de embandeirar. Hoje, mais do nunca, quem não embandeira não petisca!)

27.6.06

Uma oportunidade perdida

«Nos mitos (Ícaro) e nos sonhos, o voo exprime um desejo de sublimação, de procura de harmonia interior, de superação dos conflitos; (...) as grandes nações voam por cima da terra, traindo a psicologia colectiva, pois a vontade de afirmar o poder no céu não é mais do que uma forma de compensar a impotência na terra.»
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, O Dicionário dos Símbolos, Voo
Num tempo em que a inteligência era perseguida, a Bartolomeu Lourenço (alter ego de Saramago) só restava o sonho de voar para tentar saber como é o sol por dentro, para poder mostrar como é a terra de Mafra (o estaleiro do sonho real!) por dentro... Só voando por cima - e não para longe! - lhe era possível ter uma perspectiva global da paranóia dos poderosos... No interior da caverna jamais se acede ao círculo exterior!
O voo temerário liberta, rasga o horizonte, desloca-nos (pequenos ícaros!) para círculos exteriores cada vez mais amplos que nos mostram o pavor interior da terra, mas, ao aproximarmo-nos do sol, talvez possamos ver a fonte da vida... se observarmos a lição de Dédalo.

24.6.06

Nestes dias de silêncio...

Nestes dias de silêncio, fazem-se ouvir os pássaros que chilreiam ininterruptamente. De repente, um aluno pergunta as horas. Substituíra o relógio pelo silenciado telemóvel!
Talvez, seja útil quantificar o rombo financeiro provocado pelos exames nacionais: 50% dos alunos faltam à 1ª fase, o que significa que metade das provas tornam-se desperdício; o mesmo se repete na 2ª fase, pois os alunos inscrevem-se novamente para exame - a floresta sofre!; os telemóveis silenciados durante horas-e-horas deixam de engordar as empresas de telecomunicações e o fisco...
Não vejo ninguém que beneficie com os exames, a não ser, talvez, os médicos: sempre passam mais uns atestados e receitam mais umas pílulas para fortalecer os cérebros dos incompreendidos adolescentes.
(...)
Uma vigilante arruma meticulosamente a secretária: ao centro, as folhas de prova; do lado direito, as folhas de rascunho; do lado esquerdo, a pasta azul que guarda a tesoura, o saco dos enunciados sobrantes e a pauta, onde 15 minutos depois do toque, ficaram assinalados todos os que faltaram na expectativa de que a 2ª fase seja mais simples.
O outro vigilante franze o sobrolho. A prova de Filosofia não difere das anteriores, pelo menos, desde 1998 : a mesma estrutura, os mesmos autores, as mesmas obras, as mesmas perguntas - gostei, particularmente, do argumento socrático de que «a missão do político é fazer de nós os melhores cidadãos possíveis.»
(...)
Creio, no entanto, que, apesar dos alunos poderem memorizar previamente 50% das respostas, os autores da prova se esforçaram por testar uma boa parte do programa de Filosofia. O mesmo não poderei dizer dos autores da prova de Português: qualquer 'corrector' sabe que a maioria dos alunos pode obter 60 pontos (em 200) sem escrever uma palavra; e também sabe que, ao contrário do que acontece na disciplina de Filosofia, o aluno não necessitou de ter lido qualquer obra...
Os exames actuais mais não são que um desaproveitamento de recursos... Que impacto podem ter, por exemplo, os exames de Português e de Filosofia na avaliação final do 12º ano dos alunos internos? Haverá alguém que consiga reprovar? Será que estes exames «fazem de nós melhores cidadãos»?
(Tristes vão os dias / de Lisboa a Timor / à mercê de homens sem valor... // Alegres vão os dias / de Lisboa a Berlim / num vai-e-vem sem fim/

22.6.06

Em que século estamos nós?

Proposta de jogo: Explicite duas das funções das falas contidas neste excerto.
« D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:
- Ó Meneses, aquilo que é?
- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.
- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
- Ah! Sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...»
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição
_________________________________________
Colocam-se 50 correctores (?) numa sala. Ordena-se-lhes que leiam, comentem e resolvam uma prova, por exemplo, de Português. Prisioneiros da Acta, estão obrigados a registar os seus estados de alma. Concluída a praxe, poderão rumar à sala-ao-lado, onde receberão as provas a classificar. Há anos que esta cerimónia se repete!
Ninguém preside ao acto. Agrupamento? GAVE? Recolhidos ..., admitem contacto telefónico, mais tarde. Na sala, durante 15 minutos, uns lêem, outros relêem e alguns aproveitam para pôr a conversa em dia com o parceiro de ocasião - há um ano que não se viam! Tudo em lume brando. Entretanto, o tom ciciante torna-se conspirativo - há quem comece a dizer em alta voz o que pensa da prova 639...
Uma jovem correctora, assustada com aquele misto de pasmaceira e de conspiração, procura puxar as rédeas para que o bota-abaixo não tome conta da assembleia: há quem não entenda a formulação das perguntas; não se percebe se a prova foi auditada... e se o foi, quem terá sido o auditor? Há quem tenha deixado de entender o significado da palavra «percepção». Não há tempo para distinguir a percepção sensorial da percepção intelectual. Terá o autor da prova pensado nos modos como se percepciona? O que é que aconteceu à clareza que deve caracterizar a pergunta ou qualquer outra «instrução»?
Apressando a conclusão da acta, e como a maioria das «instruções» era ambígua, os correctores reivindicaram, ali, o direito de «aceitar» todas as respostas, fazendo tábua rasa do princípio da uniformidade de critérios. O país começava e acabava para os lados do Jardim da Estrela!
Já em 1975, no anfiteatro do Liceu Passos Manuel, uma outra assembleia de correctores reivindicara a «aceitação» de todas as respostas, numa rejeição democrática de qualquer pretensão de resposta única. O ensino centrava-se definitivamente no aluno; os professores passavam a ser uma fonte - secundária - do conhecimento; os alunos rivalizavam com os professores, pois todos partilhavam as mesmas fontes.
Hoje, esses alunos de 1975 tornaram-se numa fonte única, elaborando provas que nada testam... visando apenas satisfazer a vaidade dos oportunistas e dos preguiçosos...
Creio, no entanto, que esta geração de 75 tem os dias contados. Há cada vez mais jovens que procuram o conhecimento e que se sentem traídos, quando colegas, que ao longo de um ciclo de três anos nada fizeram, acabam por ter classificações idênticas ou mesmo superiores.
Esse sentimento de traição começa a separar as águas. É ver como «respondem» ao trabalho que lhes é proposto. Como o fazem com gosto! Como envolvem os amigos e os familiares na pesquisa a que se aventuram! Como se preocupam com a apresentação do trabalho e, sobretudo, com a qualidade!
Entretanto, há quem diga que a geração de 75, num último estertor, decidiu proibir os trabalhos de casa. Afinal, os "tpc" só servem para acentuar as desigualdades!
Será verdade?

20.6.06

O sorriso escarninho virou esgar...

( Ao contrário de Alberto Caeiro, quero homenagear todos aqueles que, ainda, não desistiram de procurar o sentido íntimo das coisas...)
Neste tempo de imobilidade, enquanto que eles, padronizados, estão aplicados na resolução da prova de sociologia, desloco-me mentalmente na tentativa de compreender o sorriso escarninho que acompanha habitualmente a referência a qualquer ex-seminarista ou ex-padre, como se um ferrete os marcasse definitivamente, tornando-os objecto de uma curiosidade mórbida.
Apesar de se tratar de uma espécie em extinção, o estigma denuncia-os indelevelmente: no modo de falar, no tom, no olhar de soslaio, no andar, no vestir, no excesso do gesto... na forma de estar retraída ou afectada. Provavelmente, a dissolução provoca sempre um labéu e o sorriso escarninho irrompe sempre que a mancha infamante pede a nossa cumplicidade, nos arrasta para a esquerda de Deus... (asserção que não é possível comprovar na sura!)
(...)
Esse sorriso escarninho, que me persegue desde manhã cedo, virou esgar naquele acampamento de vozes desgrenhadas que clamamavam vingança... mas, à medida que a sombra avança, a caruma recolhe as beatíficas agulhas e regressa à imobilidade inicial...e não raras as vezes ao abjecto torpor do sono efémero...

19.6.06

A destruição do sentido... do trabalho...

Bastava ter lido o texto crítico «Memorial do Convento», em Os Sinais e os Sentidos, para não se cair no erro de banalizar o pensamento de Óscar Lopes. Como se a primeira metade do século XVIII fosse, de facto, extraordinária aos olhos de José Saramago ou de Óscar Lopes! O retrato do século XVIII traçado por Saramago é que poderá ser insólito, entre outros motivos, pela «emergência de caracteres populares individualizados no seio de uma grande movimentação multitudinária como que em busca de sentido próprio
A megalomania, a opulência, a hipocondria, a beatice, a libidinagem, o esclavagismo, a xenofobia surgem, no romance, como formas ordinárias, previsíveis do absolutismo grotesco que se abateu sobre o séc. XVIII português. Da procissão à tourada, passando pelos autos-de-fé e pelos lupanares conventuais.
Mesmo se não houvesse outro motivo, bastava a pergunta nº4 do I Grupo da Prova de Exame de Português (639) para concluir que o Ministério da Educação prestou um mau serviço aos alunos, a Saramago, a Óscar Lopes,... ao País.
Infelizmente, esta Prova de exame também presta um mau serviço à Língua Portuguesa porque a redacção dos enunciados é medíocre: I 1.; 2.1 - «Identifique duas das vozes aí presentes, exemplificando cada uma das vozes por si indicadas com duas transcrições do texto.»; 2.2.; 3.; III «apresente uma reflexão sobre a perspectiva referente à exploração do espaço, expressa no extracto do verbete..
E, sobretudo, esta Prova de exame não chega a testar 5% do Programa do 12º Ano. Que competências é que são efectivamente postas à prova?
Afinal, quem é que está interessado em valorizar o trabalho daqueles alunos que leram Pessoa, Camões, Saramago, Sttau Monteiro? E também dos que arduamente escreveram e reformularam múltiplos textos, obedecendo a técnicos e a métodos diferenciados? E de todos os que se empenharam em compreender e aplicar as regras do «funcionamento da língua»
Afinal, para que é que serviu a última revisão curricular?
E quanto à dedicação de muitos professores de Português, mais vale nada dizer!
É, contudo, pena que haja professores que se prestem a servir tão mal a Pátria que os viu nascer!

17.6.06

Poderia dizer-te...

Poderia dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...
Poderia dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes que ficas do que partes...
Poderia dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...»
Poderia dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes', que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004" -, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Tróia, que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...
Poderia dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.
Hoje, quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me deixou na caixa do correio, em Agosto de 1985:
Não sei ao que me disponho
Nesta angústia que me enlaça;
O tempo é só o que a alma passa
E eu só quero viver outro sonho.
Já não sei mais amar esta vida
Nem defender o que ela me oferece;
Minh'alma mora num corpo que arrefece
Favorecendo esta mágoa tão sentida.
Sou uma substância inerte em peso
Cujas qualidades se perderam na viela
Onde supus uma luz, a mais bela,
Mas que escureceu meu coração indefeso.
Já nem sei bem o que é sofrer;
Acabo por não ter o que me enlaça
E, cadáver rejeitado só de massa,
Esqueço a fonte que me fez viver.
Poderia dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu preferes que não seja totalmente verdade...

15.6.06

O Corpo de Deus e a inteligência lógica

«... por agora vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de Junho de mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades foram todas assinaladas...» José Saramago, Memorial do Convento
Hoje, 15 de Junho de 2006, também na minha memória difusa passa a procissão do Corpo de Deus; outros, talvez mais atentos à intempérie, nela tenham participado, integrados nas poucas irmandades que sobraram da laicização racionalista. Nos passeios, movem-se outros postulantes impacientes, capazes de insultar a custódia patriarcal, enquanto as floristas se esforçarão por vender aquela flor que um dia um menino de coro ofertou a um cano de espingarda.
Hoje, 15 de Junho de 2006, esse menino de coro, já crescidote, indisponível para acolitar qualquer D. Policarpo, rumou a Sul, na esperança de que o Deus Sol o torne num dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis: «Mas quando a guerra os jogos interrompa, / Esteja o rei sem xeque, / E o de marfim peão mais avançado / Pronto a comprar a torre
O que eu não entendo é que nesta república, em nome da liberdade de culto, se tenha banido o D. Policarpo do protocolo do Estado - ideia que, creio, jamais terá passado pelo cabeça do magnânimo Rei-Papa D. João V - e continuemos a aproveitar matreiramente os santos dias do calendiário eclesiástico católico!
Ainda consultei a crónica do Pacheco Pereira, na esperança de que ele questionasse o engenheiro Sócrates sobre a celebração do Corpus Christi num país que, na prática, rejeita as suas raízes, mas ele - P.P., hoje e nos próximos dias, teoriza sobre 'Blogues: a apoteose do presente"... o que me atira, prosternado, para o último parágrafo do Manifesto Técnico da Literatura Futurista (11 de Maio de 1912) de F.T. Marinetti: «Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão conhecer senão as reacções físico-químicas, nós preparemos a criação do homem mecânico de partes mutáveis. Nós o livramos da ideia da morte e, por conseguinte, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica

13.6.06

Há dias, há noites...

«Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se?» Eugénio de Andrade, Limiar dos Pássaros
I - Hoje, dia de Santo António, não pensei em nenhum arraial, não segui nenhuma liturgia.
Os ritos dizem-me cada vez menos, num mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo - da pátria, do futebol, dos santos populares. Junho inicia um ciclo de convite ao lazer, com uma acelerada degradação da produtividade. Sempre que o Estio se aproxima, a economia estiola, apesar da propaganda que defende o turismo como um esteio da nossa economia.
II - Hoje, dia de Eugénio de Andrade e de Álvaro Cunhal, ouvi dizer que deixaram de ser lidos, que os seus biógrafos são mais escutados. Preferimos, de longe, a iconofilia à poética, à ideologia! Não admira: estamos no mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo.
III - Hoje, quando passei, os nimbos ameaçavam despenhar-se sobre aquele silêncio de lápides. A tribo, taciturna, ignorava as serpentinas que caíam dos tectos, e seguia vagamente o voo mortífero das moscas...
IV - Amanhã, também é dia: a tribo vai desfilar, mortiça... atenta à iconografia...

11.6.06

A força do acontecimento...

Na minha infância não havia "Plano (projecto) nacional de leitura". A força do acontecimento foi de tal ordem que subitamente o jornal "O Século" entrou lá em casa no dia 4 de Junho de 1963(?) - morrera, no dia 3 de Junho, o santo papa: o papa João XXIII. Emprestado pelo logista da aldeia. Creio que, na primeira página, havia uma fotografia..., mas o que me ficou foi o formato daquele jornal. Mais tarde, já no Liceu de Tomar, à época secção do Liceu de Santarém, passei a comprar o jornal ( O Diário de Lisboa, o Diário Popular, A República, A Capital...), mas curiosamente nunca me senti atraído pelo formato de 'O Século'. Na escola primária, que me lembre, não entravam jornais. No Seminário de Santarém, lembro-me que os padres liam 'A Capital', cuja perigosidade política era reduzida, apesar dos 'fait-divers" poderem perturbar a alma. Havia, isso sim, muitos jornais de teor religioso que não me interessavam mínimamente. Nesse período de reclusão, a força do acontecimento não conseguia perfurar as muralhas que cercavam o antigo Colégio dos Jesuítas. Estavamos protegidos da torpe e imunda maré do mundo exterior!
Na minha infância também não havia Plano (projecto) nacional de escuta radiofónica. Havia a outra, entregue ao cabo da aldeia e, provavelmente, a um dos meus tios que era um polícia muito viajado... Só, em 1966, a rádio irrompeu pelos meus ouvidos... na taberna vizinha da mercearia, onde me deslocara para comprar um kilo de arroz. Subitamente, foi o delírio: a algazarra dos homens despertou-me para as ondas da rádio: José Torres acabara de marcar um golo, no Portugal - Rússia, aquele jovem que, ainda há pouco tempo, descalço,vendia peixe pelas ruas da aldeia. Era como se todos nós tivessemos vencido a Rússia, aquela por quem Nossa Senhora tinha vindo pedir a Fátima - «rezem pela salvação da Rússia», a vermelha, porque a branca fora esmagada pelos bolchevista, ou, então, emigrara, na terceira classe dos navios que José Rodrigues Miguéis tão bem havia de descrever...
Ali, naquela aldeia, os órgãos de comunicação eram postos ao serviço da comunidade como chamariz... Para que o aldeão pudesse comprar um transístor, era necessário que partisse, primeiro, para a França ou para a Alemanha... e, aí novamente sim, num sinal de riqueza, em casa, as ondas da rádio misteriosamente ocupavam todo o silêncio...
Hoje, parece que está em marcha um Plano (projecto) nacional de leitura, de escuta, de escrita... Creio, por isso, que, doravante, nenhuma outra criança poderá voltar a queixar-se de falta de informação, de discriminação...
Sobra-me, todavia, uma dúvida: Terá esse Plano (esse acontecimento) a mesma força que a morte do Santo Papa ou que o golo do José Torres?
Bem sei que não devo ter dúvidas, pois não passo de um «experto» em campo de «cientes»!

10.6.06

Neste campo de Marte...

(Dirigindo-se a D. Sebastião) «Todos favorecei em seu ofícios, Segundo têm das vidas o talento» Camões, Os Lusíadas, X, 150
Tudo leva a crer que D. Sebastião não era mais judicioso que os actuais governantes. Por mais que Pessoa lhe elogie a «loucura», o aventureirismo da sua decisão arrastou-nos para uma crise que jamais superámos. A decisão política ignora o talento e, sobretudo, mata os novos talentos, sujeitando-os a uma uniformização castradora.
Quais soldados num campo de batalha, os professores podem ser substituídos sem que haja qualquer prejuízo para os alunos, como se a aprendizagem não fosse mais do que a assimilação /repetição de uma instrução. Neste campo de Marte, aluno e professor perderam a identidade... são peças obsoletas de uma engrenagem puramente mecânica... sem alma. E onde não há alma, não há talento...
Hoje, dia de Camões, é de uma grande insensatez evocar não só a arte, mas, sobretudo, o engenho do Poeta. Continuamos a fingir que lhe seguimos o ensinamento, enquanto espezinhamos o talento num campo de Marte voltado para a foz do Douro...
(Kafka dirigindo-se a si próprio)
«Estou mais indeciso do que jamais estive, só sinto a violência da vida. E estou estupidamente vazio.» Diários, 19 de Novembro de 1913
A violência da vida, a indecisão, o vazio... o vazio, a indecisão, a violência da vida...
Definitivamente, a vida está a mais! Mas há quanto tempo?
Mas será justo pensar deste modo quando tantos jovens precisam de ajuda para desenvolverem os seus talentos?
Se nos concentrarmos nessa tarefa, não teremos tempo para nos ocuparmos da "loucura" de D. Sebastião, o príncipe que o Poeta pretendia desesperadamente educar: «Tomai conselho só d'experimentados,/Que viram largos anos, largos meses,/Que, posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe.» X, 152.

8.6.06

Ondaka

«Ouvir, ouvimo-la mas agarrá-la é impossível - Ondaka, a palavra ou a voz Provérbio umbundu
Ultimamente, o ruído tem vindo a aumentar. Deixámos de procurar 'Ondaka'. Não parece sequer que a consigamos ouvir, quanto mais prendê-la.
Querem, agora, que a aprendamos maoisticamente, no pré-escolar e no primeiro ciclo, em sessões de 60 minutos de revolução cultural. Um robot lerá por nós estórias de encantar e nós, religiosamente, escutaremos a maviosa voz que se anichará definitivamente no nosso pequeno cérebro.
Naturalmente, desenvolveremos a competência de escuta difusa - aquela em que a voz robótica se deixa interseccionar pelos olhos azuis-verdes que nos fitam do fundo de um galheteiro esquecido no canto da aranha...
(...)
Mais tarde, aconselhar-nos-ão a procurar um psicólogo que nos explique por que motivo nos recusamos a ler e, sobretudo, que nos ajude a vencer aquela dispersão que nos impede de distinguir as vozes.
(...)
Enquanto o ruído continua a aumentar, uma distante e irremediável voz ecoa em nós...

4.6.06

Educação à la carte...

«Eu não sei se há país da Europa, em que a criatura, que sobre o seu destino e o dos outros ousa meditar, sofra tão miseravelmente a angústia de pregar no deserto (quando prega) ou a de sentir que os outros falam outra língua (quando se cala e os ouve).» Jorge de Sena, Meditações Sobre a Lei Seca.
Pensar a educação em termos nacionais não é prioridade do Ministério da Educação. A senhora ministra, talvez por influência do ministro da saúde, prefere gerir o ministério como um hospital repleto de doentes e em que a maioria dos médicos também se encontra doente. Por isso, para cada situação clínica, avança com um diagnóstico, que pode ir do encerramento da unidade de saúde a uma sanção pecuniária - em casos extremos, algum médico amigo mais saudável poderá receber um bónus a definir... Mas o que lhe interessa, é assinar muitos contratos e protocolos com as forças vivas locais e regionais, esperando que essas forças sejam suficientemente sensatas, honestas e desinteressadas, que ponham o interesse nacional acima do interesse particular...
(Como é sabido, há muito que essas forças minam o subsolo nacional, deixando qualquer estrangeiro estupefacto face à impunidade reinante. Em Portugal, a impunidade tornou-se um dado cultural. E não se diga que vivemos no reino da estupidez ou num jardim inefável! Pobre Jorge de Sena!)
Desde 1974 que na escola portuguesa não há liderança porque o Estado não tem uma política educativa clara. Prefere que cada escola faça a sua escolha, deixando que o critério político, oportunista ou de simples caciquismo local ou regional se sobreponha à execução de um projecto educativo nacional. E fá-lo hipocritamente, porque esse laxismo lhe permite não pagar devidamente a quem deveria gerir as escolas.
Sem mudança no modelo de gestão das escolas, não é possível mudar o modelo organizativo. A escola não pode continuar a depender da iniciativa de indivíduos ou de grupos - do amiguismo -necessita de ser pensada globalmente por um conselho de gestão executivo e pedagógico, suficientemente ágil nas decisões, mas a quem possam ser imputadas responsabilidades... E esse órgão deverá ser remunerado, de forma diferenciada, como acontece em qualquer empresa pública ou privada.
Em fundo, ouço a senhora ministra perorar prolixamente sobre aspectos pontuais. Não lhe ouço, no entanto, qualquer palavra sobre um projecto educativo nacional. E esse é o problema nº1 da educação: o país não sabe o que quer; prefere andar à deriva, ao sabor dos impulsos dos assessores - especialistas (atomistas) que nunca dão a cara e são pagos principescamente!

3.6.06

Variante Mbala

Querendo fundar uma nova sociedade 'igualitária', os jovens decidem matar os chefes de linhagem - todos os pais (símbolo: cabeça) e todos os tios (símbolo: perna). Passado pouco tempo, e vendo-se perante um animal monstruoso sem cabeça e sem pernas, os jovens decidem restaurar a autoridade dos velhos.
Na situação actual, nem os jovens parecem querer matar os velhos, desde que estes lhes continuem a alimentar os vícios, nem o animal acéfalo e perneta que nos governa parece disposto a prescindir do seu trabalho..., mesmo que lhes reserve uma prateleira supranumerária no disco rígido do ministério da rapina.
Os velhos são os novos escravos do séc. XXI, irremediavelmente sujeitos ao contrato da mobilidade, e totalmente anatemizados se procurarem viver para além dos 65 anos. Não podendo ser suportados pela família que, entretanto, deixou de ser a célula matricial da sociedade, é lhes pedido um esforço derradeiro: - Em nome dos futuros pensionistas, devem continuar nos seus postos de trabalho até morrer!
Paradoxalmente, a maioria dos futuros pensionistas - os jovens, pelo menos, até aos 35 anos de idade - continua desempregada sem mostrar qualquer vontade de eliminar os chefes de linhagem.
Muitos daqueles jovens que entraram na vida activa em 1973-74-75, começaram por colocar a sua juventude ao serviço de um Ideal 'igualitário', suportaram todas as arbitrariedades de preclaras luminárias, para agora estas lhes dizerem: - Sois um fardo que a nação só pode suportar se continuardes a trabalhar, de preferência, até morrer.
Entretanto, os jovens de hoje continuam uma vida virtual, comportando-se como os negreiros...

1.6.06

Um país sem alma!

«Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» Álvaro de Campos, Ode Triunfal
O Governo em geral (o M.E., em particular) em vez de combater os factores que contribuem para o insucesso do sistema educativo, decidiu encabeçar uma cruzada contra os professores, responsabilizando-os pela insolvência do Estado. Quer, agora, reduzir a massa salarial global dispendida com os professores, aumentando aqueles que se encontram no início de carreira ( gesto hipócrita de quem não se propõe contratar novos professores!) e aumentando, também, os quadros superiores da Administração Pública ( o que esconde um efectivo aumento das medíocres hostes partidárias que ocupam todos os lugares de relevo - da Assembleia da República aos Ministérios, passando por todas as correias de transmissão...). Quanto aos restantes professores, reformula-lhes as carreiras de modo a que progressão seja mais lenta, isto é, reservando os lugares do topo, certamente melhor remunerados, para aqueles que se disponham a servir, não o Estado, mas os partidos (talvez, se pudesse, aqui, falar em castas!) que controlam a vida política.
O que está em causa não é a reforma da educação, não é a formação dos jovens de modo a que se possam integrar cedo na vida activa, contribuindo para o rejuvenesciento laboral, não é ajudar os professores a alterarem os seus métodos de trabalhar e, também, não é, ao contrário do que se veicula através das televisões, dar mais intervenção aos encarregados de educação na avaliação do trabalho realizado pelos professores. O que se esconde é a decisão de distribuir a riqueza, nacional ou europeia, por todos aqueles que zelosamente suportam o poder. É a partilha da pimenta, do ouro, do açucar, da borracha, dos diamantes, do petróleo, das remessas dos emigrantes, dos fundos europeus, dos subsídios, dos impostos... IVA, IRS, IRC...
É o salve-se quem puder num país que nunca conseguiu, por si, equilibrar o deve e o haver, e que não querendo (ou não podendo?) mudar de rumo, decide tudo fazer para desacreditar os seus funcionários...
Um país sem alma!
( Delírio)
E não vale pena dizer que vendemos a alma ao Diabo. Porque o Diabo é muito mais inteligente do que aqueles que, despuradamente, nos insultam e nos envergonham. É vê-los nos estádios, nas praças, nas televisões... sempre a trabalhar pela nação!
O que vinha a calhar era uma invasão estrangeira! Talvez os galheteiros fossem definitivamente corridos...
Post scriptum: Não sei se posso continuar por muito mais tempo contra-a-corrente. Já começo a sentir-me excedentário!

30.5.06

Homens que nunca tiveram escrúpulos...

«As grandes obras constroem-se no silêncio, e a nossa época é barulhenta, terrivelmente indiscreta. Hoje não se erguem catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem teatros, multiplicam-se os cinemas. Não se compõem obras, fazem-se livros. Não se procuram ideias, procuram-se imagens.» Salazar, Extracto de entrevista publicada no Diário de Notícias em 16 de Outubro de 1938.
A multiplicação dos estádios, dos cinemas, dos livros e das imagens provocou a substituição da 'vida interior' pelo vedetismo, pelo voyeurismo, pela bisbilhotice, pela superficialidade. A morte da "alma" tornou-nos sobranceiros, violentos, maledicentes, vesânicos e, sobretudo, fez-nos perder a integridade.
A sobranceria permite-nos hostilizar grupos profissionais, étnicos e religiosos como se a decadência da nação fosse culpa deles e não dos sucessivos carreiristas sem escrúpulos que nos têm governado em nome de Abril.
Era bom que olhassemos sistemicamente para o interior das instituições de modo a separar o trigo do joio. Caso contrário, corremos o risco de sermos apenas um 'campo de joio'.
O joio alastra asfixiando os poucos grãos de trigo que compõem, por entre os escolhos, obras /ideias que, se lidas /ouvidas, bem nos poderiam ajudar neste implacável tempo de sujeição do homem.
E se não aprendermos a ser íntegros, os jovens responder-nos-ão com a violência, como aconteceu com aqueles que eram jovens em 1975 e que hoje nos governam.
Post Scriptum: A citação de Salazar é propositada. Ignorar o passado é hipotecar o futuro.

29.5.06

Exclusão e desertificação

(Expressão clara e revoltada)
Tenho 80 anos. Sou retornada de Angola. Recebo 240 euros de reforma. Tomo conta de um filho que a pátria sacrificou na guerra de Angola. Ele recebe 99 euros de pensão de invalidez. Vive fechado em casa. Não fala com ninguém nem mesmo comigo, a não ser para me dizer que não gosta deste ou daquele prato. Ainda ontem telefonei para a minha filha, não me atendeu. Também telefonei para a minha neta, com o mesmo resultado. Ninguém me ajuda. Há muito tempo que estou doente. A tomar conta deste filho que a pátria sacrificou e esqueceu. Fui à segurança social pedir ajuda, não quiseram saber. Voltei lá, disseram-me que como era dona de um apartamento não me podiam ajudar. Um apartamento que paguei com o suor do meu rosto e do meu marido, já falecido, há muito. Acabaram por me pedir os ordenados de todos os meus filhos. Os meus filhos têm a vida deles. Nasceram em Angola. Procuraram melhor vida na África do Sul. Não tiveram sorte. Partiram para o Brasil, também não. Um deles sei que regressou a Angola. Não sei se já tem emprego. Ele tem muitos filhos. Para que é que a segurança social quer os ordenados deles? Como é que eu posso preencher os papéis, se não sei deles, se eles não me respondem. O senhor presidente, que também serviu a pátria, eu sei, está preocupado com a exclusão daqueles que se encontram nos lares, e eu, senhor presidente, porque é que ninguém se preocupa comigo? Eu tenho 80 anos e o meu filho não tem vida, senhor presidente. O que vai ser de nós? E, sobretudo, dele? A segurança social não quer saber de nós! E o senhor presidente?
(Nocturno)
Deixo o carro no cimo do monte, e avanço, a pé, pela vereda que há muito não percorro. Reparo que o trilho está coberto de cartuchos de munições gastas em recentes caçadas. À volta, ergue-se o mato cada vez mais denso. Percorridos 800 metros, sob um calor de maio escaldante, apercebo-me que me encontro na outra extremidade da propriedade que queria visitar. Contemplo-a e apetece-me voltar para trás: o solo ressequido começa a abrir rachas, as figueiras e as oliveiras estão cercadas por densas plantas agrestes. É quase impossível avançar. Penso no futuro daquelas oliveiras, algumas com centenas de anos, e naquelas figueiras que, no passado, tanto odiei - as figueiras malditas. E vejo todo trabalho de gerações anteriores à minha a arder!
E, hoje, não tive coragem para me aproximar do poço que se encontra junto à ribeira, seca. Nem sequer o vi, completamente escondido pela exuberante e predadora vegetação.

28.5.06

Nunca soube...

Já não sei se parta se fique... ............................................................ Raramente estive na primeira linha e das poucas vezes que lá cheguei compreendi o incómodo de lá estar
Sempre fui um céptico
a quem exigiam certezas que eu não podia ofertar Faltava-me conhecer a terra vivi demasiado tempo longe do mar Só tarde me dispus a voar - as aves já não tinham onde pousar.

27.5.06

Os galheteiros

«O que faz suspeitar que os pedagogos não gostam é dos autores que ficaram no programa, estão a querer comprometê-los aos olhos dos putos e, na próxima reforma, catrapus, tudo dos textos dos media. Para já, a lírica de Camões fica diluída em “aspectos gerais” e “Os Lusíadas” passa a fazer galheteiro com a “Mensagem”, talvez para o Pessoa ser o azeite que ajude a tornar o vinagre do Camões mais palatável, mais actual.» Helder Macedo, Público 28/09/2001
Tal como as coisas se anunciam, os professores do ensino básico e secundário nem para galheteiros servirão. O caminho mais fácil é fingir que se lê, que se interpreta, que se questiona, que se redige, mas sem que os alunos se confrontem com outras ideias - artistas, escritores, filósofos, cientistas ... para quê? - aquelas ideias que poderiam pôr em causa os interesses instalados.
Nada melhor que o inquérito para elevar o sucesso escolar! Pergunta-se aos encarregados de educação se estão satisfeitos com os professores dos seus educandos. E eles responderão de acordo com as classificações atribuídas...
Apesar do estrebuchar de uns tantos, qual será a reacção dos professores? (Belíssima catáfora!!!) Leccionar e classificar como, há muito, acontece no ensino privado: aplica-se-lhes a cartilha e sobe-se-lhes as classificações.
1º objectivo: nivelar por baixo.
2º objectivo: criar falsas elites.
3º objectivo: desmobilizar todos aqueles que sempre recusaram o carreirismo.
4º objectivo: ...
No entanto, não se compreende que as luminárias - entenda-se: pessoas de grande saber - que nos governam ainda não tenham perguntado aos (seus) alunos do ensino superior se estão satisfeitos com os respectivos professores. Se esses alunos conhecem, de facto, os professores, se costumam ter aulas e, quantas, por semestre. Se têm a certeza que esses professores lêem os trabalhos, na maioria copiados, as provas de frequência, as provas de exame... Se os professores os conhecem?
(À parte)
Qualquer aluno do ensino, dito, superior poderá responder: a maioria das luminárias continua a papaguear conteúdos mal assimilados enquanto vai redigindo dissertações e teses, numa língua de trapos, que serão aprovadas por catedráticos infalíveis e inamovíveis.
E esse é um dos principais problemas do ensino superior: a infalibilidade e a inamobilidade dos catedráticos, agregados, extraordinários, auxiliares (vitalícios!), assistentes... conselheiros, adidos, deputados, presidentes de ..., jornalistas, esposas de...
(De regresso)
Estarão as luminárias dispostas a resolver os problemas que lhes chegam às mãos: alunos que não sabem interpretar um enunciado, fazer um cálculo, traçar uma recta... ou, para não perder alunos, e consequentemente o lugar, continuarão a mentir-lhes... a eles, a nós todos. E a culpar os professores do ensino básico e secundário, com a cumplicidade dos encarregados de educação...
Mas de que educação?
Numa escola, onde não há lugar para a formação no terreno, onde objectivamente não há formadores, não é possível responsabilizar qualquer decisor. Por isso castiguem-se os galheteiros!
Paradoxalmente, a figura do galheteiro começa a tornar-se no logótipo do ME: Tal como Fernando Pessoa acolita Camões também os exames acolitarão os encarregados de educação (isto é, as associações de pais).
PS, isto é, Post scriptum: Substituamos a desacreditada caça aos gambozinos pela caça aos pares de galhetas!

26.5.06

Ensinar-lhes a mentir...

«Se o meu filho fosse vivo (...) havia de lhe ensinar a mentir, a cuidar mais do fato que da consciência e da bolsa que da alma.» Matilde, in Felizmente Há Luar!, de Luís Sttau Monteiro
Estão diante de mim, risonhos, alinhados em conversas privadas. Sorriem-me, acenam-me com a cabeça e, despreocupados, ouvem-me repetir e exemplificar o que são aliterações, assonâncias, catáforas, anáforas (linguísticas com sabor palimpséstico!), pleonasmos e outras redundâncias (in)finitas...
Perante a fastidiosa iteração, interrompem-me para me perguntar se não ficava bem rirmo-nos um pouco dos eufemismos e eu corrijo-os porque o disfemismo é que é a expressão favorita dos 'alarves' que todas as noites vão ao teatro ou ao cinema «fingir nada terem a ver com o que se passa em cena».
(Uns minutos mais tarde...)
Esforçadamente, um aluno lê um monólogo sobre como educar numa sociedade que valoriza a aparência, o dinheiro, a mentira, enquanto que outros simulam uma leitura risível, alarve do que se passa em cena, dentro e fora da sala de aula...
( Toca a campainha: sorrateiramente, abandonamos o palco... para acordar na parada do Rock In Rio-Lisboa ou no Parque Tejo com o Super Bock Super Rock)
Post Scriptum: Já sei como explicar a neologia... basta dar-lhes a palavra no nosso próximo encontro... e ficar a ouvi-los, a ouvi-los... e então descobrirei uma nova realidade ou, pelo menos, que as palavras existentes adquiriram significados novos neste fim-de-semana!

25.5.06

Ó Terra, a arte está tão perto e eles já o sabem...

«E a primeira cousa que se punha aos amigos na mesa era o sal; costume que ainda agora se usa, posto que se não saiba, em muitas partes, a razão dele, nem a porque se enojam e enfadam os hóspedes de se derramar o sal pola mesa...» Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, 1619
Embora a Caruma seja pouco dada a celebrações e deteste o vedetismo, não pode deixar de assinalar o significado da iniciativa II Concurso Literário Camões 2005/2006, cujos prémios, nas modalidades poesia e conto, foram, hoje, entregues no Auditório Camões. Este tipo de iniciativa mostra que se deve apostar numa escola participativa, onde os alunos surjam como sujeitos capazes de escrever, compor, ler, representar, partilhar, assistir...respeitar os outros. E, hoje, foi possível testemunhar essa nova dinâmica de participação, mesmo que possa parecer incipiente. Esse é o caminho... é o sal da terra!
É, no entanto, fundamental que não se enojem nem se enfadem estes novos hóspedes derramando o sal pela mesa!

24.5.06

Escrever é um registo maçónico...

Saramago coloca-se, com Memorial do Convento, na rampa iniciática do Grande Arquitecto maçónico, que com o esquadro e o compasso determina a estrutura e os limites do céu e da terra. No entanto, o seu convento não é o convento de D. João V, apesar de ‘João’ ser o nome próprio dos santos padroeiros da maçonaria (S. João Baptista e S. João Evangelista). Santos esses que Saramago poderia ter associado ao deus Jano Bifronte, que tinha a faculdade de ver o passado e o futuro. Porém, o projecto de Saramago era o oposto: mostrar a cegueira do rei ao mandar erigir o convento. O convento é fruto do sonho megalómano de um rei que gostaria de ser o Grande Arquitecto e de um vicioso sonho da província franciscana. D. João V continua, ainda hoje, a construir infantilmente o puzzle da Basílica de S. Pedro de Roma enquanto que os franciscanos jamais poderão dar uso às 300 celas que lhes foram destinadas! Para Saramago, a Basílica não se projecta para os céus. O que lhe interessa são as fundações – o que acontece na terra dos homens que, forçados, se vêem envolvidos num projecto em que não se revêem. Mas, na outra frente (janela) da obra, encontramos os "franc–maçons" que, de facto, se projectam para os limites do céu: Sebastiana Maria de Jesus, António José da Silva, Domenico Scarlatti, Blimunda (Sete-Luas), Baltasar Mateus (Sete-Sóis), o padre Bartolomeu Lourenço ( o arquitecto-voador). Em qualquer destas figuras, notamos, e de acordo com as suas competências, uma visão niveladora, um gesto criativo, uma vidência letal e regeneradora, um braço fautor de morte e de vida, um espírito torturado e inventivo. A ambição de Saramago é um construir um memorial em cuja pedra se materializem todas as incoerências dos grandes e todos os sonhos dos pequenos. Ele quer ser a voz dos esquecidos, dos perseguidos, dos desterrados, dos executados em todos os autos-de-fé. O Grande Arquitecto.

23.5.06

Filha da noite...

Filha da noite e irmã do sono - és tão discreta que se pode dizer que não estamos à tua espera A ti, qualquer dia te serve Nós preferíamos um outro olhar menos discreto... O olhar líquido dos nenúfares.

22.5.06

Há algo de errado em Al-Kassar!

«Era o ano no mês de Abril, quando enflorescem as árvores, e as aves, que até então estiveram caladas, começam d'andar fazendo suas querelas doutro ano por entre o arvoredo deste vale, que bem podeis ver quejando seria então, pois agora o é tanto.»
Bernardim Ribeiro, Menina e Moça
Embora não tivesse visto, em Al-Kassar, qualquer sombra dos salacianos Bernardim Ribeiro e Pedro Nunes - certamente porque não me esforcei o suficiente! - continuo a pensar que há algo de errado por estas paragens outrora tão interessantes para romanos, árabes e cristãos. A água abundante dos rios Sobrena, Sado, Xarrama e das ribeiras do Areão, Algalé, da Ursa e de S. Domingos deveria atrair mais dos que os cerca de 13 800 habitantes que povoam o concelho de Alcácer do Sal.
Não me parece que o clima mediterrânico possa ser responsabilizado por uma certa atmosfera de incúria: a vegetação já ressequida, em Maio, invade a cidade, tal como o lixo, parecendo anunciar uma próxima abertura de telejornal - Sem se compreender bem, o fogo grassa na cidade de Alcácer, não poupando sequer as moradias...
Ironicamente, o terreno, destinado às futuras instalações dos bombeiros, poderá muito bem ser o rastilho, tal o estado de abandono em que se encontra.
Mas Alcácer é apenas um mau exemplo entre milhares, num país, onde os governadores raramente deixam o ar condicionado dos seus torrões... e continuam, impunemente, na praça pública, a agitar milhões de euros para o combate aos incêndios que eles próprios ateiam...